O fogo na serra da Estrela atingiu as altitudes onde estão as espécies mais raras
Incêndio tem assolado regiões onde é conhecida a presença de algumas espécies que são endémicas da cadeia montanhosa.
As chamas do incêndio que deflagrou na Covilhã no último sábado (6 de Agosto), e está a lavrar em localidades como Manteigas — concelho conhecido como “o coração da serra da Estrela” —, já ascenderam a altitudes na ordem dos 1500 metros, segundo o Centro de Interpretação da Serra da Estrela (CISE). Nessas regiões, estão presentes espécies cujas populações em Portugal apresentam números baixos. Por exemplo, o teixo (Taxus baccata), espécie vegetal de porte arbustivo ou arbóreo, a víbora-cornuda (Vipera latastei), serpente endémica da Península Ibérica e do Noroeste de África, o insecto Iberodorcadion brannani, endémico do maciço central da serra da Estrela, ou a lagartixa-da-montanha (Iberolacerta monticola monticola), réptil também ele endémico do planalto central da serra.
Ainda segundo o CISE, o fogo já atingiu com severidade habitats florestais caracterizados por uma predominância de azinheiras (Quercus rotundifolia), carvalhos-negrais (Quercus pyrenaica) e castanheiros (Castanea sativa).
Terão, seguramente, ardido mais azinheiras, carvalhos-negrais e castanheiros do que teixos, mas isso tem que ver com o facto de o número de teixos ser muito mais reduzido, comenta José Conde, biólogo do CISE. “Como a população de teixos em Portugal é muito pequena (poucas centenas de indivíduos), a perda de um só indivíduo que seja é importante”, explica ao PÚBLICO, dizendo ser “muito provável que alguns teixos tenham ardido” no vale do Beijames, em Manteigas.
O biólogo assinala que, em Portugal, o teixo “ocorre de forma espontânea apenas no Parque Nacional Peneda-Gerês, na serra da Estrela e na serra do Caramulo — sendo que aqui existe apenas um exemplar”. “A espécie é relativamente comum noutros países europeus, mas, efectivamente, a sua população em Portugal é reduzida”, reforça Joaquim Sande Silva, da direcção da Liga para a Protecção da Natureza (LPN). O doutorado em engenharia ambiental diz que o facto de as folhas do teixo serem venenosas explica o cenário actual. “Os pastores queriam proteger o seu gado e então abateram, ao longo dos anos, um número relevante de indivíduos”, conta.
As chamas ainda não chegaram à mancha de faias (Fagus sylvatica) que há na encosta de São Lourenço, em Manteigas, mas estão a galgar terreno. E isso preocupa Manuel Franco. O vice-presidente da associação Guardiões da Serra da Estrela diz que, embora a faia não esteja numa posição tão crítica como o teixo em termos populacionais, o incêndio pode vir a ter um impacto grande caso atinja o bosque em São Lourenço. “Depois de um fogo florestal, ocorre a erosão dos solos, que ficam desprotegidos. E isso vai dificultar a regeneração que virá depois. Seria uma tragédia se o fogo afectasse as faias das Manteigas. Estamos a falar de um bosque com mais de 80 anos”, afirma.
Espécies raras (e portanto vulneráveis)
Passando da flora para a fauna, Manuel Franco diz que “o incêndio surge numa altura [do ano] em que as crias de muitas espécies [de aves] já estão a conseguir voar”. “Felizmente, estarão a conseguir fugir do fogo. Mas, mesmo assim, é evidente que algumas espécies animais sairão afectadas”, diz, referindo que algumas espécies que “dependem de ambientes florestais estavam a aumentar em número na serra da Estrela”. É o caso do gamo (Dama dama), mamífero que apresenta características similares ao alce e que, sendo um herbívoro, é “muito importante para a limpeza dos matos”. “Mesmo que os gamos não morram na sequência do incêndio, o fogo vem destruir os seus corredores de circulação”, sublinha.
O Parque Natural da Serra da Estrela (PNSE), que inclui o ponto mais elevado de Portugal continental, a 1993 metros de altitude, constitui uma área protegida de quase 89 mil hectares. Olhando para a sua progressão em termos de altitude, é possível definir três grandes andares de vegetação: o andar basal (desde o sopé da montanha até aos 800-900 metros de altitude), o intermédio (entre os 800-900 e os 1600-1800 metros) e o superior (acima de 1600-1800 metros).
“O PNSE caracteriza-se por uma grande diversidade não só de habitats, como de espécies de flora e fauna, algumas das quais endémicas”, diz José Conde, salientando que as espécies “mais raras” (e, portanto, mais vulneráveis) estão nos andares intermédio e superior.
Referindo que o fogo atingiu “áreas próximas dos 1500 metros de altitude” em algumas regiões, o biólogo diz também ser possível que, esta quarta-feira, essa barreira dos 1500 metros tenha sido ultrapassada no planalto da Santinha (Guarda). “Mas não posso confirmar. O fumo não nos permitia ver em condições”, aponta.
O biólogo explica que a víbora-cornuda, “sendo rara a nível nacional” — a espécie é classificada como vulnerável pela União Internacional para a Conservação da Natureza —, “ocorre com alguma frequência em Manteigas”. “É muito provável que a população de víboras possa ter sofrido um impacto negativo na sequência do fogo”, diz.
O insecto Iberodorcadion brannani, espécie endémica do maciço central da serra da Estrela, e o grilo Ctenodecticus lusitanicus, que também é exclusivo da montanha, também poderão ter sido afectados, assinala José Conde, que acrescenta: “Só falei dos invertebrados pois são os animais que têm menor capacidade de fuga a um incêndio. Não quer dizer que os mamíferos e as aves também não tenham sofrido impactos.”