Confundir a beira da estrada com a Estrada da Beira, a propósito de Chagas Freitas
Numa iniciativa para revelar “novos e emergentes talentos literários europeus”, a Representação Permanente de Portugal junto da UE apontou como exemplo de “novo e excitante talento” Pedro Chagas Freitas. A displicência, o “analfabetismo funcional” literário e a falta de hábitos de leitura não afectam a imagem de quem o fez, mas prejudicam a imagem da mais recente literatura portuguesa.
A notícia espalhou-se há dias pelas redes sociais: numa iniciativa para revelar “novos e emergentes talentos literários europeus”, a Representação Permanente de Portugal em Bruxelas, junto da UE, tinha apontado como exemplo de “novo e excitante talento” Pedro Chagas Freitas e o seu livro A Raridade das Coisas Banais. Confesso que, nos momentos iniciais, sorri por achar que era mais uma das imaginativas fake news que o Facebook habitualmente dissemina, mas achando que de tão anedótica dificilmente seria levada a sério. Ainda pensei que a haver um segundo escolhido seria o autor mais vendido em Portugal: Raul Minh'Alma. Foi um pensamento que durou apenas dois segundos. E se a notícia fosse verdadeira?
Confirmei quase de imediato que sim. Depois lembrei-me de que há gente que escolhe livros com mais displicência ainda do que aquela que têm ao escolher uma saia, ou umas calças, para um jantar chato em casa do primo de um amigo aonde não vai ninguém que interesse — por vezes, a saia é demasiado travada, ou as calças excessivamente curtas a deixar ver a canela, e daí não vem grande mal ao mundo. O problema é que neste caso a displicência, o “analfabetismo funcional” literário, a falta de hábitos de leitura (presumo, pela escolha feita, que o último livro lido que esteve mais próximo da literatura terá sido o resumo de Os Maias no último ano do secundário), o típico confundir a beira da estrada com a Estrada da Beira — que é como quem diz, o lixo com a literatura — não afectam a imagem de quem o fez (para o público são apenas uns desconhecidos bem vestidos que ganham a vida em Bruxelas entre sorrisos sem vontade e flûtes) mas afectam, prejudicam, a imagem da mais recente literatura portuguesa. Pelo menos, Portugal perdeu uma oportunidade de nomear um autor que dignifique o que por cá se vai escrevendo — e sabemos como é difícil, por inúmeras razões, a literatura em língua portuguesa afirmar-se na maior parte dos países europeus.
Sabemos bem que muitas escolhas são difíceis e discutíveis. Neste caso, também eram. Mas quando o próprio autor escolhe o seguinte diálogo para apresentar o livro numa rede social, deixa de haver dúvidas:
“— O que queres ter quando fores grande?
— Um brilho nos olhos.”
A justificação da escolha prossegue o tom hilariante da mesma. Para se validar recorre a um livro de que toda a gente gostou em algum momento mais frágil (ou apenas infantil), ou nem uma coisa nem outra, da sua vida: O Principezinho, de Saint-Exupéry. De qualquer forma, encontrei aqui alguma coerência, pois foi um dos livros mais idiotas que me foram dados a ler — aquilo hoje parece-me a semente dos actuais livros de “auto-ajuda”, a irradiarem gratiluz à mistura com problemas cognitivos e, claro, a “ideologia” do pensamento positivo, essas chagas que mancham a psicologia.
Agora em tom mais sério: se um dia estas representações diplomáticas de Portugal quiserem promover a nova literatura portuguesa, há por aí algumas embaixadas, conselheiros culturais e outras instituições, como o Instituto Camões e a Direcção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas (DGLAB), que fazem um trabalho esforçado e muito capaz. É pena que se tenha perdido esta oportunidade para se divulgar nomes como Sandro William Junqueira, Joana Bértholo, Patrícia Portela, Rui Manuel Amaral, Joana M. Lopes, Raquel Gaspar Silva.