Cenários de catástrofe mundial climática estão a ser ignorados, avisam cientistas

Artigo lança uma proposta à comunidade científica para estudar os piores cenários causados pelas alterações climáticas e, assim, evitar o risco de sermos “dolorosamente surpreendidos”.

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Mulher somali junto a uma carcaça de gado – efeitos da seca na região de Gedo Feisal Omar/Reuters

A possibilidade de catástrofes em série geradas pelo aquecimento global, capazes de levar ao colapso das sociedades e, em última análise, à extinção da espécie humana está “perigosamente” pouco estudada, alerta uma equipa de cientistas num artigo publicado nesta segunda-feira na revista Proceedings of the National Academy of Sciences.

O trabalho é uma análise e propõe uma “agenda” à comunidade científica para avaliar os piores cenários das alterações climáticas e as suas ramificações nas sociedades humanas, tendo em conta as fragilidades sociais já existentes, como os países que têm estruturas estatais fracas e doenças endémicas graves, e outros desafios que podem surgir ligados a mudanças dos ecossistemas naturais, à geopolítica e à tecnologia. “Enfrentar um futuro com a aceleração das alterações climáticas e, ao mesmo tempo, mantermo-nos cegos em relação aos piores cenários possíveis é ingénuo, no melhor dos casos, e, no pior dos casos, uma insensatez fatal”, lê-se na conclusão do artigo.

“O nosso artigo não exagera os riscos [existentes] ou afirma que vamos todos morrer”, escreveu numa publicação no Twitter Luke Kemp, primeiro autor do artigo. “Observamos que há razões plausíveis para acreditar que existe um risco climático catastrófico plausível que requer mais estudos”, acrescentou o investigador do Centro para o Estudo do Risco Existencial da Universidade de Cambridge, no Reino Unido.

A equipa internacional argumenta que relatórios como os que são lançados pelo Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC, sigla em inglês) das Nações Unidas se têm concentrado principalmente nos efeitos do aquecimento global para temperaturas entre 1,5 e dois graus Celsius. “Estudos de como o impacto das alterações climáticas podem desencadear efeitos em cascata ou provocar crise maiores são espaçados”, alerta o artigo.

No entanto, os autores relembram que se continuarmos na actual trajectória das emissões de gases com efeito de estufa, em 2100 o aumento da temperatura média da superfície terrestre será entre 2,1 a 3,9 graus Celsius superior aos valores pré-industriais. E mesmo que todas as promessas de corte das emissões daqueles gases sejam cumpridas, o aumento da temperatura irá situar-se entre os 1,7 e 2,6 graus. “Mesmo estas suposições optimistas levam a trajectórias perigosas do sistema da Terra”, defendem os autores.

“Os caminhos de desastre não se limitam aos impactos directos das altas temperaturas, tais como os fenómenos meteorológicos extremos. Os efeitos colaterais, como as crises financeiras, os conflitos e as novas epidemias, podem desencadear mais calamidades”, acrescenta Luke Kemp, citado pela agência Lusa.

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A seca é um dos efeitos mais evidentes das alterações climáticas DAVID MERCADO/REUTERS

Nesse sentido, a equipa propõe uma agenda de estudo sobre as possibilidades mais negras das alterações climáticas sustentada em quatro linhas de investigação: compreender as dinâmicas das alterações climáticas extremas e os impactos a longo termo; explorar quais são os processos desencadeados pelas eventos climáticos que podem provocar a mortalidade e morbilidade em massa; investigar a fragilidade social, ou seja, quais são as vulnerabilidades das sociedades e o risco de acontecimentos em cascata; e integrar o risco das alterações climáticas com outros riscos sistémicos, como as guerras e a tecnologia.

“Se não olharmos para os riscos interseccionais, vamos ser dolorosamente surpreendidos”, diz por sua vez Kristie Ebi, co-autora do artigo e especialista em clima e saúde pública na Universidade de Washington (Estados Unidos), citada pela agência Associated Press.

A investigadora recorda o que se passou antes de a covid-19 se alastrar. Quando pensaram nos efeitos de uma possível pandemia, os profissionais de saúde debruçaram-se apenas na propagação da doença, não falaram dos confinamentos, dos problemas das cadeias de abastecimento de produtos nem da degradação das economias. Por isso, no caso das alterações climáticas, é necessário ter em conta a possibilidade de se desencadearem guerras, haver fome e da economia entrar numa espiral descendente.

“Este artigo não exige ter-se uma perspectiva apocalíptica [sobre as alterações climáticas]. Também não diz que necessitamos de ter mais conhecimento antes de podermos agir”, defende, por sua vez Joeri Rogelj, investigador que não fez parte do estudo e é director de investigação do Instituto Grantham (do Imperial College), dedicado ao estudo da acção climática. “Em vez disso, [o artigo] pede para haver mais investigação dedicada a compreender como as nossas sociedades irão evoluir caso tenhamos muito azar na forma como o clima responde às nossas emissões”, acrescenta, citado pelo Centro de Comunicação de Ciência do Reino Unido.