A rã na panela (que já está a ferver)
Está quase a completar-se um ano desde a publicação do artigo “A rã na panela”, que me valeu o muito simpático convite para ser orador na Conferência de Natal Ciência Viva. Quase 52 greves de Greta à sexta-feira depois, tivemos a (recente) Conferência dos Oceanos promovida pelas Nações Unidas em Lisboa, durante a qual quase sete mil delegados debateram formas de proteger os oceanos, que são o coração da máquina que regula o clima do planeta. Adorava dizer que foram feitos enormes progressos durante esta última volta ao Sol, mas todos sabemos que o nariz me iria crescer até derrubar o monitor de computador que tenho à frente.
Sou o primeiro a admitir que, nesta matéria, oscilo entre o optimismo moderado e o pessimismo exacerbado. Por um lado, vemos soluções tecnologicamente cada vez mais avançadas no domínio do hidrogénio, que se afirma progressivamente como a solução mais robusta no combate à nossa colossal pegada de carbono. Curiosamente, é a China que lidera esse processo, enquanto a América do Norte continua teimosamente agarrada à queima de combustíveis fósseis.
Por outro lado, à beira de chegarmos ao quarto deste século ainda temos um coro de vozes que clamam que nada disto merece a relevância que os “cientistas” lhe dão porque se tratam, afinal de contas, de fenómenos cíclicos e as últimas ondas de calor que assolaram o nosso continente não são, de forma alguma, as primeiras que enfrentámos. Mas muitas das metas recentemente ultrapassadas, como no Reino Unido, foram efectivamente inéditas, como os 40 graus que esta ilha – sem ares condicionados – saboreou pela primeira vez e múltiplos outros recordes.
Como explicar a estas almas que uma concentração de dióxido de carbono na atmosfera superior a 410 ppm (partes por milhão) é algo que nunca ocorreu nas dezenas de milhares de anos ao longo dos quais a nossa espécie tem percorrido os montes, vales e planícies deste planeta? Mas será assim tão difícil aceitar a correlação entre esse aumento de 47% no último século e o efeito acumulado da actividade industrial da espécie humana? Como pode uma mente com o mínimo de lucidez achar que as duas coisas são uma coincidência?
E que dizer aos teimosos que pintam essa mesma actividade cíclica histórica como negligenciável, face à grandiosidade da natureza? Talvez os devamos lembrar que os clorofluorcarbonetos (CFC) que tínhamos nos sprays desodorizantes, lacas e afins abriram um buraco épico na camada de ozono em poucas décadas. Podíamos ainda lembrar que as frotas de pesca industrial do planeta provocaram reduções nos principais stocks de peixes em muitos casos na ordem dos 80% (ou mais), como é o caso dos atuns, espadarte, bacalhau e tubarões. E não esqueçamos a percentagem da imensa floresta amazónica que já foi perdida, particularmente no reinado bolsonarista, com relatos mais austeros a falarem em 17%.
Então tentemos raciocinar um pouco: se ninguém duvida dos efeitos perturbadores – à escala planetária – anteriores, que estão mais do que documentados e à vista da miopia mais traiçoeira, como é que alguém ainda tem coragem de afirmar que um século e meio a retirar carbono que esteve alojado na crosta terrestre e a mandá-lo para uma atmosfera finíssima não tem impacto nenhum num sistema tão delicado como o que regula o clima terrestre?
Proponho um teste simples: deixem um carro a trabalhar no interior da garagem do vosso prédio durante dez minutos e digam se o ambiente fica agradável. Agora imaginem mil e quinhentos milhões de carros, camiões, aviões, navios, fábricas e motores de combustão variados a trabalharem há 150 anos. Para onde foram esses gases? Dica: não foram para o espaço; ficaram todos cá e foram-se acumulando por cima das nossas cabeças, aquecendo a nossa panela lenta e gradualmente.
Surpreender-vos-á aprender que a diferença entre o deserto do Sara e a floresta amazónica é de dois ou três graus centígrados? Ambos têm temperaturas similares, mas com uma diferença significativa, que é a quantidade de água em cada um. O primeiro tem árvores e vegetação variada, com as camadas de folhas superiores a disponibilizarem sombra às inferiores, o que ajuda a reter humidade. Mas basta aumentar o termómetro dois ou três graus e as folhas superiores secam, definham e deixam de fazer sombra, o que provoca um efeito bola de neve que culmina na ausência de água e desertificação de um espaço numa questão de décadas, ou menos.
Já o vimos em diversas partes do planeta e estamos a observá-lo na Amazónia, mas mesmo assim continuamos a achar que estes fenómenos são lentos e temos muito tempo para resolver isto antes que se torne um problema sério. Mas não temos. As mentes mais brilhantes andam a dizê-lo há décadas e nós a ignorá-las.
Os habitantes das ilhas remotas do Pacífico sabem-no bem, porque perdem território para o mar anualmente. Não falta mesmo nada para que os seus países desapareçam sob um mar que não pára de subir, porque o gelo terrestre do Árctico e a Antárctida não páram de derreter e água não pára de se expandir.
Mas nós, aqui na Europa e América do Norte, continuamos a assobiar para o lado, precisamente porque o problema está muito distante. Sim, levámos com quase 50 graus há uns dias e isso assustou-nos. Mas já voltámos a ter de levar um casaquinho quando vamos jantar, por isso está tudo bem. Em Washington D.C. também se torra durante o dia quando se anda ao sol, mas há sempre uma loja ou escritório de ar condicionado tão gelado que temos de vestir uma sweatshirt quanto entramos.
O próprio Presidente Joe Biden tinha prometido tomar medidas decisivas para acalmar o fim do mundo que se avizinha, esperando que a China e Índia lhe seguissem o exemplo, mas índices de popularidade cada vez menores, e falta de apoio político, levam-no a focar-se noutros aspectos que o levem a ser reeleito. Ironicamente, são os países asiáticos que, cada vez mais, apontam o caminho e não o contrário.
Ou seja, as dificuldades que enfrentamos no Velho e Novo Mundo não se comparam com as que países como a Síria, Somália e Iémen vivem. Nesses sítios, que conhecem secas tão profundas que levaram a êxodos em massa, as crianças roem os dedos de tanta fome. Aqui temos incêndios, que são cada vez mais devastadores, como vimos em Pedrógão Grande há cinco anos, ou na Austrália há dois. Mas, no mundo ocidental, os incêndios são apagados e a vida continua, apesar da devastação (física, financeira e emocional) que deixam para trás. Também temos seca, mas uma fila de camiões-cisterna dos bombeiros resolve esse problema. Mas há sítios no mundo que ardem até já não terem nada para além de pedra. Há sítios onde ninguém vai lá levar cisternas cheias de água.
Nesses sítios não há o luxo de votar em candidatos que sejam contra ou a favor das ciclovias, como em Lisboa, onde a última eleição autárquica se focou nesse ponto e todos vimos como acabou. Ainda me recordo do desconforto que senti ao ler cartazes com frases como “Vamos devolver Lisboa aos automobilistas”, que mais valia dizerem “Vamos aumentar o lume na panela…”
Posso acrescentar que, antigamente, os almoços de domingo da minha família (ribatejana) eram pautados pelo quentíssimo (ironicamente…) tema “touradas”, sendo eu o único a defender o fim de uma prática tão flagrantemente abominável cuja proibição imediata devia ser evidente para além de qualquer argumentação. Hoje em dia sou o chato que defende as ciclovias, porque precisamos de tirar carros particulares das cidades e apostar no transporte público. Mesmo que isso diminua o número de faixas da Av. Almirante Reis [em Lisboa] e dificulte o tráfego, até ao momento glorioso em que já não lá poderão circular veículos particulares, como vai sucedendo em cada vez mais capitais.
Não tenhamos ilusões quanto ao facto de que travar as emissões de carbono para a atmosfera vai requerer sacrifícios pesados a um segmento da humanidade cuja maior dificuldade que enfrentou nos últimos anos foi prescindir dos sacos de plástico descartáveis e passar a usar palhinhas de papel, de integridade tão precária que raramente aguentam – sem colapsar – duas horas de uma produção de Hollywood. Doravante precisaremos de fazer mais; infinitamente mais. Usar transportes públicos em vez de privados é só o início. É imprescindível reduzir o consumo de energia e garantir que a produção desta não envolve transferir (mais) carbono do solo para o céu. É urgente reduzir (e muito) o consumo de água. Reduzir o consumo de tudo, ponto.
Temo-nos safado – à grande e à francesa – de torturas deste género, porque é o resto do mundo que as está a sofrer por nós e sem qualquer escolha. Nós ainda vamos podendo fazer escolhas, mas isso não irá durar para sempre.
A pergunta de um milhão de dólares é se vamos esperar por um futuro distópico em que estas concessões nos serão impostas sob lei marcial, para garantir a sobrevivência da humanidade, ou se teremos o juízo que demonstrámos quando foi hora de prescindir dos CFC para salvarmos o buraco do ozono, que está felizmente a regredir.
Foi um dos momentos mais decisivos da nossa história colectiva e passou despercebido à maioria da população. Tal como em tantas outras ocasiões, a ciência deu-nos uma solução, que nos salvou não só das chuvas ácidas, mas, também, de um aumento estratosférico na taxa de melanomas a nível global, entre tantos outros problemas. A ciência já nos apontou caminhos que travam a taxa a que transferimos carbono do solo para o ar. Resta ver se vamos ouvir as (muitas) vozes que nos tentam meter juízo na cabeça, ou se vamos continuar a ser surdos, cegos e mudos.
Como pai de uma criança de três anos, a minha escolha foi feita muitos anos ainda antes do seu nascimento. Mas eu sou um dos privilegiados que compõe um terço da população do planeta que pode fazer escolhas. Os outros dois terços lutam diariamente com essa falta de escolha, enquanto os filhos lhes morrem nos braços, de sede, fome e calor.
Já estava na hora de deixarmos de pôr likes nos seus pedidos suplicantes e tomarmos medidas efectivas que aliviem o sofrimento em que vivem porque, quanto mais temos, mais lhes tiramos.
Temos de ter menos. Temos de ser menos.