A água do rio Colorado está a esgotar-se, procuram-se ideias para a partilhar melhor
A agricultura é a principal devoradora de água do rio que serve 40 milhões de pessoas. Agência governamental dos EUA pediu ideias para conservar a água e a capacidade de produzir electricidade em duas barragens.
O rio Colorado está a ser afectado de tal forma pela exploração em excesso das suas águas que há fortes probabilidades de que dentro de cinco anos não tenha caudal suficiente para produzir electricidade. Por isso, a entidade que gere e protege a água e as barragens do Oeste dos EUA deu um prazo limite até 15 de Agosto para que os sete estados norte-americanos que são atravessados pelo rio Colorado, ao longo dos seus 2330 quilómetros de percurso, apresentem planos que permitam poupar entre 2500 milhões e 4900 milhões de metros cúbicos de água por ano.
Os lagos Powell e Mead formaram-se, respectivamente, com as barragens de Glen Canyon e Hoover, no rio Colorado, e são os dois maiores reservatórios dos EUA. Mas as rochas que delimitam os lagos mostram as marcas do que tem sido o progressivo esvaziamento destas grandes superfícies de água: linhas esbranquiçadas marcam o nível até onde a água já chegou, bem mais acima do que está hoje. E até ao fim de 2022, a água armazenada nos lagos Powell e Mead deverá reduzir-se até 25% da sua capacidade.
Perante esta situação, e para tentar impedir que os reservatórios cheguem a um nível tão baixo que se torne impossível mover a água e produzir electricidade, a comissária do Bureau of Reclamation – a agência que gere e protege a água e as barragens nos EUA – deu um ultimato aos estados para encontrarem forma de fazerem cortes radicais no seu uso da água do rio: “É necessária a redução entre 2500 milhões e 4900 milhões de metros cúbicos de água para garantir os níveis críticos em 2023”, disse a comissária Camille Calimlim Touton.
Mas é um desafio imenso: só o consumo anual de água do rio do estado do Colorado é praticamente igual ao mínimo de 2500 milhões de metros cúbicos que é preciso cortar, diz um artigo da KUNC, a rádio pública do Colorado. “Vamos precisar de fazer coisas que nunca fizemos antes”, disse a subsecretária para a Ciência e a Água do Departamento do Interior dos EUA, Tanya Trujillo, em declarações a esta rádio.
Pressão agrícola (e não só)
Há muitos anos que os cientistas prevêem que a catástrofe aconteça no rio Colorado e temem os efeitos da seca que dura desde a viragem do milénio (por isso também é conhecida como a “Seca do Milénio").
O fluxo do rio já diminuiu em cerca de 20%, em média, em relação ao que era durante o século XX, de acordo com um estudo de 2020 dos Serviços Geológicos dos EUA, que relaciona esta redução com o aquecimento global. As alterações climáticas tornam cada vez mais escassa a neve nas Montanhas Rochosas, onde nasce o rio, e potenciam a seca no Oeste da América que dura há duas décadas, bem como ondas de calor repetidas e mega-incêndios.
Mas, para além disto, há a exploração em excesso. O desenvolvimento urbano nas margens do rio Colorado, do qual dependem 40 milhões de pessoas, tem sido enorme. Phoenix cresceu mais do que qualquer outra cidade nos Estados Unidos nos últimos dez anos, diz o New York Times, e várias outras áreas urbanas nos estados do Arizona, Nevada, Utah e Califórnia (banhados por este rio) estão entre as que mais rapidamente crescem.
Mas as cidades não são as maiores consumidoras da água do rio Colorado. A voragem vem sobretudo da agricultura, que ocupa 2,3 milhões de hectares de terrenos em torno do rio e implica múltiplos desvios da sua água.
Entre 75% e 80% da água do rio Colorado é usada para cultivar alfaces, luzerna para alimentar o gado e pomares. As cidades têm conseguido crescer controlando o seu uso da água. “Pode-se acabar com todo o uso municipal da água e não se chega ao corte pretendido entre 2500 milhões e 4900 milhões de metros cúbicos de água. Todos os sectores vão ter de participar”, disse à KUNC Colby Pellegrino, vice-directora da Agência da Água do Sul do Nevada, responsável pela rede pública de água da área metropolitana de Las Vegas.
Leis do rio
O Pacto do Rio Colorado, assinado em 1922, é o documento que estabelece as regras de partilha da água do rio entre os sete estados norte-americanos (Arizona, Califórnia, Colorado, Nevada, Novo México, Utah e Wyoming) pelo qual ele passa, juntamente com o Tratado da Água entre os Estados Unidos e o México de 1944 (pois o rio banha ainda dois estados deste país, e desagua lá).
O Pacto estabelece duas bacias do rio, a bacia superior (Novo México, Colorado, Utah e Wyoming) e a bacia inferior (Nevada, Califórnia e Arizona). Estipula a quantidade de água a que têm direito (9200 milhões de metros cúbicos por ano cada bacia) e as regras para que os utilizadores da bacia superior não gastem mais do que aquilo a que têm direito, com mecanismos que podem obrigar a fazer compensações, se houver abusos.
Só que os negociadores do Pacto foram demasiado optimistas quanto ao caudal futuro do rio: presumiram que o fluxo em Lees Ferry, o local onde foi colocado um medidor de fluxo que é considerado o ponto de divisão entre as duas bacias, seria de 21.500 milhões de metros cúbicos por ano.
“Mas o fluxo natural em Lees Ferry durante o século XX foi em média de 18.700 milhões de metros cúbicos por ano”, diz um artigo na revista Science, que tem Kevin Wheeler, do Instituto de Alterações Climáticas da Universidade de Oxford (Reino Unido), como primeiro autor, e que apresenta vários cenários de reduções no uso da água e o seu impacto na estabilização do nível dos reservatórios.
O cenário contemplado no Pacto não corresponde, portanto, à realidade actual, e esse desfasamento vai-se acentuando com as múltiplas pressões sobre o rio. Mas existem tensões porque, apesar de terem direito a quantidades idênticas de água do rio Colorado, a bacia superior e a bacia inferior do rio não aproveitam com a mesma intensidade a água a que têm direito.
As grandes cidades e explorações agrícolas de irrigação do Nevada, Califórnia e Arizona (bacia inferior) consomem a maior parte da água que lhes é destinada, enquanto os estados do Colorado, Utah, Wyoming e Novo México têm mantido o uso bem abaixo dos limites.
Estas diferenças fazem com que responsáveis pela gestão da água na bacia superior tenham sugerido que o maior esforço de redução deveria ser feito na bacia inferior. Além disso, têm planos para grandes obras que, se forem mesmo para a frente, vão aumentar a dependência da água do rio Colorado, em vez de reduzir o seu consumo. “Uma vez que é a bacia inferior que tem um volume de usos mais significativo, faz sentido que seja de lá que vem a maior parte da solução”, disse Chuck Cullom, director executivo da Comissão do Rio Colorado Superior à KUNC.
Fazer o impensável e rápido
Na verdade, é preciso um esforço das duas bacias, e muito grande, maior do que tudo o que tem sido contemplado até agora, diz o artigo na revista Science. Os cientistas modelaram 100 possíveis cenários e estratégias de gestão do rio e concluíram que é preciso agir rapidamente para contrariar a crise.
Num cenário de status quo, em que os usos continuam mais ou menos como agora, haverá um acentuado declínio nos reservatórios Powell e Mead, a ponto de pôr em risco a produção de electricidade: se a “Seca do Milénio” persistir, os reservatórios podem chegar a 12% da sua capacidade antes de estabilizarem. “Com este volume [de água], tanto a barragem Glen Canyon como a barragem Hoover deixariam de gerar electricidade”, escreve a equipa na Science.
Mas se os estados da bacia superior limitarem o uso da água a 65% dos 9200 milhões de metros cúbicos por ano a que tem direito, os da bacia inferior e o México devem comprometer-se a mais do que duplicar os actuais níveis máximos de redução que aceitaram discutir. Neste cenário, a bacia inferior receberia 66,7% da água a que tem direito, uma quantidade próxima da da bacia superior.
Se a bacia superior se limitar a usar 53,3% da água a que tem direito (o que é, mesmo assim, mais 370 milhões de metros cúbicos do que a utilização que tem feito recentemente), então a bacia inferior só teria de reduzir o seu uso em 2400 milhões de metros cúbicos de água, garantindo 77,8% daquela a que tem direito.
“Os nossos resultados mostram que, embora as actuais políticas não sejam adequadas para estabilizar o rio Colorado, se a ‘Seca do Milénio’ continuar, há várias estratégias de consumo que podem estabilizar o sistema. Mas estas medidas têm de ser aplicadas rapidamente”, escrevem os autores. Mas estas medidas implicariam cortes profundos no uso da água que fazem os estados da bacia inferior actualmente e travar investimentos previstos para as próximas décadas nos estados da bacia superior.
Não há muitos detalhes sobre as negociações para se chegar aos cortes necessários, mas alguns utilizadores agrícolas da água do Colorado sugerem deixar terrenos por cultivar, mediante o pagamento de uma indemnização – mas não é claro quem pagaria essa compensação, que pode chegar a muitos milhares de milhões de dólares, diz o New York Times.
E para que isto possa funcionar, os cientistas partem do princípio de que nesta situação de crise não será accionado o mecanismo do Pacto do Rio Colorado destinado a garantir que sejam saldadas as “dívidas de água” entre as duas bacias.
O documento, assinado há 100 anos e com perspectivas demasiado optimistas sobre o fluxo do rio, prevê uma divisão em partes iguais da água entre as duas bacias, e torna obrigatório que os estados mais a Norte deixem fluir 9200 milhões de metros cúbicos por ano de água para a bacia inferior, e outros 1200 milhões para chegar aos dois estados mexicanos banhados pelo Colorado. Mas a verdade é que o fluxo do rio já não corresponde ao que era previsto no Pacto.
Não será fácil chegar a acordo, mas é indispensável, avisa a equipa de Kevin Wheeler na Science: “Embora estas concessões por ambas as bacias possam parecer impensáveis neste momento, serão necessárias se persistirem as actuais condições.”