Lisboa é uma das cidades europeias mais expostas às ondas de calor e tarda a preparar-se para o futuro
Lisboa é a sétima cidade europeia mais exposta a ondas de calor. Mas a questão coloca-se em muitas outras: estão as zonas urbanas preparadas para as altas temperaturas? Temos planos de fuga ao calor? Como vamos arrefecer as cidades? Viagem pelas ilhas de calor de Lisboa, à boleia das brisas do Tejo e da nortada e entre prédios escuros e envidraçados com quem não consegue fugir ao calor.
Quando comprou a sua casa no Parque das Nações no início dos anos 2000, Filipa Taipina ainda tinha uma vista desafogada para o Tejo. Os poucos vizinhos eram os pavilhões que tinham ficado da Expo’98. “O Pavilhão da Ciência e o Oceanário. Tudo o resto não existia”, diz a musicóloga e professora na Escola Artística do Instituto Gregoriano de Lisboa. Mudou-se para o prédio da Avenida D. João II no final de 2001.
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Era altura de tempo frio, por isso não se apercebeu logo de que os meses de calor que se seguiriam tornariam a vida naquela casa quase insuportável. “Achava que, sendo perto do rio, seria mais fresco. Mas no Verão nada se mexe e isto aquece porque é tudo pedra, alcatrão. Vem calor do chão...”, diz a moradora, de 54 anos.
Da nova cidade projectada quase do zero há pouco mais de duas décadas, para o centro histórico, centenário, de Lisboa: André Machado também não escapa ao calor. Varre a Rua da Escola Politécnica sob o sol do meio-dia, enquanto quem ali passa segue no outro lado da rua em busca de alguma sombra.
“O sol é um perigo. É tentar trabalhar o máximo possível à sombra. Já viu trabalhar ao sol com 30 e tal, 40 graus?”, diz o varredor, de 29 anos, enquanto agarra na garrafa de água que guarda no bolso da farda e que serve para aliviar um pouco o calor de um início de tarde de Julho.
Falámos com Filipa e com André durante os dias quentes que se registaram nas últimas semanas e que deixaram a Europa em estado de alerta. Em Portugal, o período de 1 a 17 de Julho foi o mais quente desde 2000. Bateram-se recordes de temperaturas mínimas em várias estações e estabeleceu-se um novo extremo da temperatura máxima já registada em Portugal em Julho: 47°C no Pinhão.
Filipa e André tentam fintar o calor numa cidade onde os edifícios, o asfalto, os carros e a falta de espaços verdes amplificam essa sensação. Em Lisboa, o Parque das Nações e a Baixa são as ilhas — ou melhor, os “arquipélagos” — de calor urbano que apresentam maior intensidade, que em períodos de ondas de calor como o que vivemos aquecem ainda mais.
No futuro, este fenómeno vai tornar-se mais intenso, mais frequente e mais longo, especialmente nas áreas urbanas, em grande parte devido a mão humana e ao agravamento da crise climática. Entre mais de 600 cidades europeias, Lisboa é a sétima mais exposta a estas ondas de calor, mesmo tendo uma extensa frente de rio e estando muito próxima do oceano. Porque é que isso acontece?
Deixar passar as brisas
O termo-higrómetro de António Lopes, que mede a temperatura e a humidade do ar, marcava 32,2ºC junto ao rio, por volta das 16h30 de 14 de Julho. Estamos no Parque das Nações, a dois passos do Pavilhão Atlântico, e recuamos mais de duas décadas à altura em que se projectava uma nova cidade para aquele lugar. “Quando a Expo ’98 foi planeada, sabia-se que ia ser no Verão. Por isso, os pavilhões foram projectados para terem uma determinada posição em relação ao rio, de modo a que as brisas do Tejo e do mar da Palha pudessem arrefecer os espaços”, explica o investigador em Climatologia Urbana e Local do Instituto de Geografia e Ordenamento do Território (IGOT).
Mas, após o grande evento, aquela frente de rio foi sendo preenchida com prédios altos, lojas e restaurantes. Cresceu para um centro empresarial cosmopolita. Mas com consequências para quem ali vive e trabalha. “Quando a Expo terminou, uma frente de edifícios tapou as brisas, não deixando que penetrem mais para o interior”, enquadra o investigador.
Sem a frescura que as brisas trazem, a temperatura aumenta entre os prédios, formando as chamadas ilhas de calor, a que António Lopes prefere chamar “arquipélagos”, uma vez que são vários os núcleos que aquecem mais do que outros fora da cidade. Numa explicação simples, seria imaginarmos um determinado território e qual seria a sua temperatura se não existisse construção e se se mantivesse rural.
“Os estudos apontam para cerca de dois a três graus, em média, em que a temperatura é mais elevada no centro do que fora da cidade”, diz o investigador. O que não é particularmente problemático para a saúde humana quando falámos de temperaturas de 20 graus, mas que o pode ser quando os termómetros rondam os 40 graus durante vários dias consecutivos.
No pico da onda de calor de meados de Julho, a temperatura às 15h no Parque das Nações era de 36 graus — em Belém, de 31. “Esta zona do Oriente e da Baixa, sobretudo no trecho entre a Baixa e o Campo Grande e entre a Baixa e a Avenida Almirante Reis, estão normalmente mais aquecidas do que fora da cidade, comparando com o aeroporto, que é a estação de referência”, diz o investigador.
Estas conclusões, em particular a identificação destas duas áreas críticas, estão plasmadas no Plano de Acção Climática do município, que integra os resultados do projecto Ondas de Calor, no qual António Lopes participou. Nele estão aprofundados os cenários actuais e futuros deste fenómeno na capital, à boleia dos efeitos das alterações climáticas projectadas para o final do século.
Anticiclone dos Açores e ares de África
Para vivermos uma onda de calor, é preciso que a temperatura máxima diária seja superior em cinco graus ao valor médio diário do período de referência. Quando falámos com Ricardo Deus, climatologista do Instituto do Português do Mar e da Atmosfera (IPMA), em meados de Julho, algumas regiões do país iam já em 12 dias de onda de calor. “É uma altura em que uma onda começa a ter alguma expressão. É mais uma onda de calor, mas num clima que é diferente”, enquadra o climatologista.
As ondas de calor registam-se há décadas, mas até aos anos 90 eram mais “excepcionais”. Hoje chegam a zonas do país onde não era normal, como é o caso do Norte Litoral. “Não era normal chegarem à zona do Minho. Sempre foi uma zona de ‘porto seguro’ e deixou de ser”, observa o climatologista.
O Plano Metropolitano de Adaptação às Alterações Climáticas (na área metropolitana vivem 2,8 milhões de pessoas), no qual António Lopes também participou, prevê que a zona oriental da cidade seja a mais afectada pela chegada do ar quente e seco que vem do interior da península ou do Norte de África. “Seja qual for essa trajectória, vai ser a zona oriental [a mais afectada] porque está mais perto, apesar de termos o efeito do Tejo. Mesmo assim, podemos continuar a beneficiar das brisas. É preciso é não as bloquearmos quando precisamos delas”, observa o investigador.
Nesta equação, entra ainda a orografia da cidade. O planalto retalhado por vários vales que é Lisboa influencia também o aquecimento de certas zonas. Umas têm mais sombra, outras estão mais expostas, é certo, mas o fenómeno é sem dúvida agravado pela densificação urbana.
Durante o dia, os edifícios — alguns envidraçados ou escuros —, as estradas e o trânsito, os espaços impermeabilizados, com poucas áreas verdes, os ares condicionados que utilizamos para arrefecer os interiores acumulam energia e libertam-na para a atmosfera, mantendo as temperaturas elevadas nestas ilhas de calor. Durante vários dias de calor intenso, o ar pode ficar mais quente em três graus.
Em meio urbano, tal pode ter um efeito mais gravoso — e até mortal — nos grupos mais vulneráveis. Sobretudo à noite, se não houver um alívio e um refrescamento da cidade. “Quando estamos perante um evento muito, muito extremo, com ausência de arrefecimento durante a noite, pode ter impactos na saúde humana”, nota, por sua vez, a investigadora em dados espaciais e clima do Colab Atlantic, Ana Oliveira.
Sessenta dias de calor
Em Lisboa, quase um quarto dos seus 545 mil habitantes tem mais de 65 anos. Os dados mais recentes da Direcção-Geral da Saúde revelaram que, entre 7 e 18 de Julho, morreram em Portugal 1063 pessoas, cuja causa está relacionada com as temperaturas extremas sentidas.
“Somos dos países que têm uma população mais idosa e, portanto, torna-nos muito mais vulneráveis ao calor do que outros países ou outras cidades”, diz a investigadora. Mais exactamente em sétimo lugar, de acordo com um estudo que Ana Oliveira publicou recentemente na revista científica Weather and Climate Extremes, no qual estudou a exposição às ondas de calor em 603 cidades europeias, cruzando-a com a população idosa, mais vulnerável, que nelas reside. E que colocou a capital só atrás de Milão, Madrid, Vale do Ruhr, Paris, Roma e Frankfurt.
Perante este cenário, não nos restará opção que não a adaptação. “Não há outra forma. Temos que nos adaptar, arranjar mecanismos para viver num clima diferente. As cidades são um sítio onde, com um clima mais quente e mais seco, se vai sofrer mais impactos”, nota o climatologista Ricardo Deus.
A Área Metropolitana de Lisboa tem já um plano de adaptação às alterações climáticas, que, diz Ana Oliveira, “começa a reconhecer as fragilidades da maneira como ocupar o território e a produzir cenários”. Que não são animadores: a temperatura do ar aumentará em todas as estações do ano, podendo chegar a mais 3,5˚C no final do século. Teremos mais dias muito quentes, mais noites tropicais. As ondas de calor serão mais frequentes e persistentes. A duração média de uma onda de calor na Grande Lisboa é de 11 dias por ano e algumas projecções apontam para que em 2050 seja de 38 dias por ano e, no final do século, de 64 dias, com temperaturas médias de 4o˚C.
O Verão será mais longo. Haverá menos precipitação, menos água no solo, mais secas e mais intensas. “Vamos ter que conviver mais dias com temperaturas mais elevadas para todos nós. As nossas construções terão de ser adaptadas para consumir menos energia”, afirma Ricardo Deus. E o ar condicionado não é uma solução. “Consumindo mais energia, não estamos a ser eficientes.”
Pobreza energética
No prédio de Filipa Taipina não há estores nas janelas ou qualquer protecção. “Vivemos num país nórdico, como sabemos...”, ironiza. Por isso, viu o chão ficar queimado logo no primeiro Verão que ali passou. A tinta das caixilharias de metal foi desbotando, queimou-se. “Se colocássemos a mão no vidro, queimava, fazia a bolha. Era um bafo de calor, uma onda que vinha dos vidros. Quem é que poda viver assim?”
A primeira onda de calor que ali passou foi a de 2003. “Foi um horror.” Não conseguia dormir no quarto, por isso a solução era a sala onde ainda hoje há um aparelho de ar condicionado. Mas que tem um senão: aquece muito a cozinha. “Fica impossível entrar.”
Filipa chegou a ponderar a mudar de casa. Dormia mal, andava constantemente com a tensão baixa, bebia muito café. Mas adaptou-se. Engendrou uma solução para tentar travar a entrada de luz solar e do calor em casa, com uma tira de madeira e um material térmico, semelhante às protecções que se colocam nos pára-brisas dos carros. “Com este sistema, a temperatura reduziu-se dez, 12 graus dentro da sala”, garante a musicóloga.
Filipa tem consciência de que, apesar de todos os problemas com a sua casa, está numa zona privilegiada, com boa construção, tem acesso a um ar condicionado, mas que, ainda assim, não a impede de sentir desconforto térmico.
De acordo com dados do Eurostat, Portugal é o segundo país da União Europeia onde mais pessoas afirmam estar desconfortavelmente quentes nas suas habitações no Verão, apenas atrás da Bulgária (em relação ao frio, é o quinto país).
O conceito de pobreza energética é muitas vezes apenas associado ao frio, mas, para o investigador em alterações climáticas, João Pedro Gouveia, deve ser também estendido ao calor. Sobretudo quando estima que 80% da população portuguesa tenha falta de conforto térmico nas suas casas.
“É uma questão no Inverno e no Verão. Não é uma questão só ambiental ou energética, é uma questão social e económica, porque as pessoas passam frio, passam calor em casa e, muitas vezes, não estão em condições de trabalhar”, refere o investigador, que tem trabalhado no mapeamento da pobreza energética em Portugal. E é também uma questão que vai muito além do rendimento. “É um dos factores, mas é sempre importante fazer a ligação à parte dos edifícios, dos equipamentos e de outras dimensões socioeconómicas”, diz.
Em Lisboa, cerca de 40% das casas foram construídas até à década de 50, muito antes de existir um regulamento que definisse requisitos de conforto térmico aos novos projectos de edifício, que só surgiria em 1990. “Até lá, foi-se construindo barato, rápido, com zero preocupações em termos de conforto térmico e da performance energética”, nota o investigador.
Cidades, o futuro da sobrevivência
Com a cidade a crescer para norte, corre-se o risco de novos prédios se tornarem um obstáculo que as brisas e os ventos não conseguem transpor, formando novas ilhas de calor, mais quentes, além de não conseguirem cumprir a sua missão de limpar o ar que respiramos. Para João Pedro Gouveia, as novas construções estão a ser feitas de forma pouco ambiciosa, “um bocadinho nos mínimos”, e os apoios à adaptação das casas são “insuficientes”.
Caminhando entre os prédios do Parque das Nações, as brisas do Tejo deixam mesmo de ali chegar. A temperatura sobe pelo menos dois graus, regista o termómetro de António Lopes.
Na varanda voltada ao Tejo, vista hoje interrompida por outras construções, é impossível ter flores, porque se queimam com o calor. Mas virando-lhe as costas e olhando para as vistas da Avenida D. João II é como se entrássemos noutra casa.
As árvores que Filipa viu serem plantadas há 20 anos cresceram e alcançam hoje as janelas do seu segundo andar. Criam sombra, mais frescura e trazem até o canto dos passarinhos que por ali param. “É um luxo incrível”, diz, no meio de todo aquele betão e alcatrão, que nunca pára de surgir. É por isso que pede que se plantem árvores e mais árvores, que acredita que a têm ajudado a suportar estas últimas semanas de calor.
António Lopes pede também mais árvores, não só em grandes áreas, mas sobretudo à escala do bairro. Mas também que as novas construções não obstruam os corredores de ventilação da cidade, as áreas onde o vento entra mais facilmente e que são fundamentais para remover poluição e refrescar as ruas.
“As cidades, hoje, são as maiores emissoras de carbono e emitem mais de 70% do carbono que agrava o efeito antropogénico das alterações climáticas. Mas as cidades também são áreas de grande imaginação, de grande revolução”, diz o investigador. É aqui que se joga o futuro da nossa sobrevivência.