Ondas de calor marinhas no Mediterrâneo estão a pôr em risco a biodiversidade

Investigação reuniu trabalho de dezenas de cientistas que trabalham em 11 países, incluindo Portugal. A sucessão frequente das ondas de calor não permite a recuperação das comunidades de corais e esponjas.

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Um exemplar da gorgónia-vermelha (Paramuricea clavata) afectado pelas altas temperaturas no mar Mediterrâneo Mario Munaretto
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Um exemplar da gorgónia-vermelha (Paramuricea clavata) saudável Quim Garrabou
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Um pormenor de um indivíduo da gorgónia-vermelha (Paramuricea clavata) com região necrótica Mario Munaretto
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Uma esponja da espécie Agelas oroides que sofreu branqueamento DR

Até há poucas décadas, as ondas de calor marinhas no mar Mediterrâneo eram um fenómeno raro. Mas, nos últimos anos, este fenómeno tornou-se frequente, afectando, a cada Verão, várias regiões do Mediterrâneo e causando episódios de mortalidade nas comunidades marinhas, como as esponjas e os corais. A conclusão é o resultado de um estudo publicado recentemente na revista Global Change Biology, que avalia este fenómeno com uma abrangência inédita.

“A principal conclusão do estudo é que as ondas de calor marinhas, que há 10 anos eram um fenómeno extraordinário no Mediterrâneo, agora são a norma”, resume ao PÚBLICO Jean Baptiste Ledoux, ecólogo molecular francês que trabalha no Centro Interdisciplinar de Investigação Marinha e Ambiental (Ciimar) da Universidade do Porto, que contribuiu para o trabalho liderado por Joaquim Garrabou, investigador do Instituto de Ciências do Mar (Barcelona), que pertence ao Conselho Superior de Investigações Científicas de Espanha. O artigo conta com o nome de dezenas de investigadores de 11 países e várias instituições, de Marrocos à Turquia, passando por França, Itália, Croácia, Arábia Saudita, entre outros.

A ambição da pesquisa era, por um lado, retratar a gravidade das ondas de calor marinhas no Mediterrâneo ao longo do tempo. E, por outro, avaliar os impactos daquele calor na biodiversidade submarina que vive junto ao leito.

Para isso, a equipa avaliou as temperaturas do mar Mediterrâneo entre 2015 e 2019, especificamente os meses de Junho a Novembro, quando a temperatura da água aumenta devido ao calor do Verão. Além das temperaturas de superfície do mar, medidas por satélite, os investigadores contaram com medições da temperatura até aos 45 metros de profundidade, em sete locais específicos em regiões costeiras da Espanha e da França.

Deste modo, obtiveram um perfil das temperaturas do mar à superfície e em profundidade, podendo avaliar a existência de ondas de calor marinhas. Segundo o artigo, estamos perante uma onda de calor marinha quando a temperatura da água excede um limite superior de temperatura, especificado matematicamente, durante mais de cinco dias seguidos.

Coral da espécie Cladocora caespitosa, que faz parte de habitats coralígenos do Mediterrâneo, em estado saudável Jamila Ben Souissi
Coral da espécie Cladocora caespitosa com branqueamento parcial Annalisa Azzola
Coral da espécie Cladocora caespitosa com branqueamento total D. Kersting
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Coral da espécie Cladocora caespitosa, que faz parte de habitats coralígenos do Mediterrâneo, em estado saudável Jamila Ben Souissi

A partir destas medições, foi possível estabelecer o número de dias cumulativos de ondas de calor num determinado lugar, a uma determinada profundidade, num determinado ano. Ao longo dos cinco anos, as ondas de calor marinhas afectaram 90% da bacia mediterrânea, atingindo temperaturas superiores a 26 graus Celsius.

Por outro lado, os pesquisadores monitorizaram a saúde das comunidades bentónicas (que vivem junto ao leito marinho), até uma profundidade de 45 metros, em 142 lugares ao longo da zona costeira do Mediterrâneo (e de algumas ilhas), naqueles cinco anos. Apenas uma parcela das localizações foi monitorizada durante os cinco anos, mas a abrangência permitiu obter um retrato profundo da situação no Mediterrâneo.

No passado, os trabalhos que foram feitos sobre o impacto da temperatura do mar nas comunidades marinhas eram limitados a nível temporal e a nível da localização. Agora, “em vez de termos uma ideia pontual do que se passa, obtivemos uma ideia geral”, explica Jean Baptiste Ledoux. A análise biológica abrangeu tanto o nível das espécies: corais, esponjas, macroalgas, equinodermes e plantas; como o nível das comunidades que vivem em prados marinhos e em ecossistemas coralígenos, compostos por corais, esponjas e algas. Estas comunidades coralígenas constroem um habitat colorido e chegam a albergar mais de 1600 espécies, explica o investigador. Por isso, o trabalho oferece “uma perspectiva geral, quer a nível geográfico, quer a nível dos animais e das algas”.

Os resultados não são animadores. Em cada ano, 23 grupos taxonómicos foram afectados pelas ondas de calor. “Há uma grande probabilidade de desaparecerem até uma certa profundidade”, admite o cientista, explicando que as ondas de calor estão a causar com frequência fenómenos de mortalidade.

Espécie de coral Corallium rubrum em estado saudável Quim Garrabou
Espécie de coral Corallium rubrum doente Quim Garrabou
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Espécie de coral Corallium rubrum em estado saudável Quim Garrabou

Muitas espécies de corais e esponjas têm um crescimento anual lento, de apenas milímetros ou centímetros. “Depois de um evento de mortalidade, aquelas espécies necessitam de 10 ou 20 anos para recuperar [a área perdida]”, explica. Mas quando aqueles fenómenos extremos se repetem em poucos anos, “não há tempo”, acrescenta. “Os corais e as esponjas são formadores de habitat. Quando existem, há outras espécies que aproveitam o espaço formado para o habitarem. São o equivalente às árvores da floresta. Quando estas ‘árvores’ desaparecem, o ecossistema muda”, diz.

Foco de esperança

É possível que esta tendência também tenha impacto nas comunidades humanas costeiras. Por um lado, o mergulho submarino para visitar estes ecossistemas, que promove o turismo de regiões, pode ser posto em causa. Por outro, espécies de importância comercial, como a garoupa-preta (Epinephelus marginatus) e o crustáceo Scyllarides latus, que usam aquele habitat como berçário, podem ser secundariamente afectadas pelas ondas de calor.

Há, no entanto, um foco de esperança no meio deste panorama cinzento. Alguns indivíduos das espécies de corais e de esponjas parecem ser mais resistentes ao stress térmico. Jean Baptiste Ledoux está a estudar a espécie de coral gorgónia-vermelha (Paramuricea clavata), à procura de características genéticas associadas à resistência ao calor.

Se os cientistas conseguirem identificar estes indivíduos naturalmente resistentes às altas temperaturas, será possível colonizar artificialmente áreas com corais capazes de sobreviver às futuras ondas de calor, formando comunidades duradouras. Mas o cientista avisa para os limites desta técnica.

“Os trabalhos de restauração de habitats serão sempre muito localizados. À escala do Mediterrâneo, não é possível [fazer a restauração dos habitats], quer em termos logísticos, quer por causa dos recursos necessários. Não é realista. A única resposta é trabalhar nas causas das ondas de calor marinhas, as alterações climáticas”, afirma Jean Baptiste Ledoux. Ou seja, é necessário haver uma “resposta política para haver uma diminuição do que causa as alterações climáticas”, acrescenta, referindo-se à emissão dos gases com efeito de estufa.