Marcas que os canteiros deixaram na torre de menagem de Beja serviam para que fossem pagos à peça
Para combater o absentismo, os que trabalhavam a pedra deixavam marca própria para identificar a sua autoria, de forma a determinar o valor a receber por cada peça executada.
Na torre de menagem do Castelo de Beja há uma profusão de sinais inscritos nas pedras. São as marcas que os canteiros deixavam para assinar o seu trabalho e assim poderem cobrar por cada bloco concluído. Em vez de receberem à jorna, estes trabalhadores altamente especializados recebiam à peça. A estes símbolos juntou-se, ao longo dos séculos, vários grafitos. Uma prática que persiste, surgindo amiúde novas inscrições, em nada relacionadas com a empreitada que ali teve início no século XIII.
Mas o que são marcas de canteiro? Símbolos gravados nas pedras a cinzel, buril ou ponteiro para comprovar o trabalho realizado por cada um dos que as talharam durante a Idade Média e a Renascença, quando na Europa se assistiu a um boom de construção de arquitectura gótica. Com efeito, em apenas um século, entre 1140 e 1240, foi aplicada mais pedra na construção de pontes, igrejas, palácios e castelos no continente europeu do que em qualquer período da antiga história egípcia.
Uma das consequências deste fenómeno está hoje patente na profusão de marcas de canteiro inscritas nas estruturas góticas, sobretudo de cariz religioso, dispersas pelo continente europeu e também de norte a sul de Portugal, onde se encontre uma construção gótica. Um desses testemunhos está bem visível nas pedras de mármore que estruturam a torre de menagem do Castelo de Beja, cuja construção teve início no século XIII e se prolongou até ao século XV. Os sinais inscritos pelos canteiros são letras e cruzes, ferramentas e instrumentos de trabalho, armas ou outros de mais difícil interpretação, que são a maioria. Também são abundantes as marcas identitárias associadas à maçonaria.
Quem pretenda subir os 183 degraus para chegar ao topo da torre de menagem, uma obra-prima da arquitectura militar gótica europeia, encontra em cada pedra que circunda a escada diferentes marcas de canteiro.
Foi há cerca de três décadas que “as assinaturas pessoais” dos canteiros que trabalhavam na construção do Castelo de Beja, começaram a despertar curiosidade. O historiador Leonel Borrela decidiu avançar, em meados dos anos 90 do século passado, para o levantamento da “diversidade de siglas” na cantaria da torre de menagem. Contou mais de 300 sinais, um número indiciador da “grande quantidade de canteiros ou confrarias de obreiros” que trabalharam na construção da fortaleza de Beja, salientou o investigador num documento sobre a tarefa que levou a cabo sozinho.
O arqueólogo Miguel Serra acompanhou o PÚBLICO numa visita guiada para interpretar algumas das marcas de canteiro. A observação incluiu símbolos fálicos e grafitos dos séculos XVII e XIX e contemporâneos, que a “criatividade” popular foi deixando da sua passagem pelo Castelo de Beja. Hoje, os autores dos grafitos impressos nas pedras da torre de menagem recorrem aos marcadores de tinta acrílica e as inscrições ficam condenadas ao desaparecimento rápido.
O último grafito que recorreu ao cinzel é dos anos 40 do século passado. “E o mais recente é de 2021”, registou o arqueólogo. “Desloquei-me ao castelo para fazer um levantamento de inscrições mais recentes e quando desci já tinha uma marcação na pedra que tinha sido colocada enquanto subia as escadas da torre de menagem.”
Só lamenta que os canteiros do século XXI não tenham deixado a sua marca em quase meio milhar de blocos de mármore com pesos que variam entre 300 e 500 quilos quando reergueram o varandim sul do machicoulis que envolve a torre de menagem. A estrutura, provavelmente instalada no século XV, tinha ruído na tarde de 13 de Novembro de 2015 e foi reposta à força de braços e de cadernais, a única maneira de executar uma tarefa que foi feita tal como na altura da sua construção.
Mas há a constatação generalizada de que a significação utilizada na marcação das pedras se destinava a estabelecer uma “contabilidade para cobrar o salário correspondente” e também identificar as confrarias a que pertenciam, acentua o arqueólogo.
Num trabalho publicado em 1997, na revista Al Madan, com o título Siglas Medievais de Estremoz, Leonardo Charréu descreve pormenores da relação laboral. O salário do canteiro medieval era geralmente pago de 15 em 15 dias, mas os “constantes atrasos” na retribuição devem ter imposto um sistema aceite por ambas as partes e tido como vantajoso: o trabalho seria pago à peça.
O sistema combatia igualmente, “com alguma eficácia, uma das maiores chagas do estaleiro de obras da idade média: o absentismo”. Estes trabalhadores percorriam a Europa para exercer una profissão que seria “muito bem paga, por ser altamente especializada para os padrões medievais”. Todavia, como apontam alguns autores, esta especialização comportava igualmente os seus segredos que conduziram rapidamente ao “aproveitamento esotérico”, pelas sociedades secretas maçónicas, “até aos dias de hoje”, conclui Leonardo Charréu.