Outrora quase extintos, hoje os bisontes são heróis do clima
Os bisontes funcionam como grandes prestadores de serviços nos ecossistemas. A reintrodução deste animal no Oklahoma é um raro bom exemplo de como a conservação e a protecção ecológica podem trabalhar em conjunto.
Quilómetros de pradaria estendem-se pelo Refúgio de Vida Selvagem nas Montanhas Wichita, no Sul do Oklahoma, nos Estados Unidos. Hectare após hectare de arbustos, gramíneas e vegetação rasteira em direcção às montanhas graníticas que se vêem ao longe. Como em grande parte do Oklahoma, aqui a estrada é plana, mas o limite de velocidade permanece de 50 quilómetros por hora. Isto por causa dos bisontes.
Os bisontes (ou bisões) surgiram aparentemente do nada: dezenas de animais robustos subiam pela berma da estrada para atravessar para a vegetação fresca do outro lado. A manada movia-se lentamente, com os olhos calmos, que mal pareciam reparar nos carros parados que aguardavam a passagem do grupo. Chegaram ao outro lado e rapidamente começaram a triturar a erva fresca da Primavera.
A mastigação silenciosa do bisonte faz mais do que nutrir os corpos destes animais – é uma das muitas coisas que fazem para nutrir todo um ecossistema, que está cada vez mais ameaçado pelas mudanças climáticas. Os bisontes que devoram hectares de vegetação deixam mais do que esterco para trás: esta forma agressiva de comer estimula o crescimento de novos rebentos de plantas nutritivas, assim como alguns dos comportamentos habituais destes mamíferos acabam por beneficiar toda a cadeia alimentar. Os bisontes criam micro-habitat ao rolarem no chão, por exemplo, e também estabelecem relações simbióticas com várias aves. Outrora à beira da extinção, os bisontes prestam agora grandes serviços aos ecossistemas, sendo um exemplo de como a conservação animal e a protecção ecológica podem trabalhar em conjunto.
“O búfalo é por natureza um regulador climático”, disse Troy Heinert, membro da tribo Sicangu Lakota (Rosebud Sioux) e director executivo do Conselho Intertribal para o Búfalo, uma aliança que trabalha para reintroduzir o animal em terras tribais. “Só pela forma como usam a relva, como pastam, como projectam os cascos, a maneira como se movem. Eles fizeram esse trabalho para nós quando permitimos que fossem [apenas] búfalos [e não produtos com valor económico ou estratégico].” As tribos estão a liderar uma iniciativa para trazer de volta o bisonte, diz Heinert, o que, por sua vez, permitirá o retorno de outras gramíneas, animais e insectos nativos – seres vivos que, garante, “ajudarão a combater a mudança climática”.
Diferentes visões do mesmo animal
Os bisões, chamados de búfalos por alguns povos indígenas, são criaturas gigantescas. Constituem o maior mamífero terrestre da América do Norte, podendo pesar mais de 900 quilos. As cabeças com chifres gigantes equilibram-se em ombros volumosos e inclinados. Esta parte superior maciça do corpo sustenta-se sobre finas pernas de cabra, uma discrepância que lhes confere uma qualidade sobrenatural – assemelham-se mais a um Minotauro do que a um alce. Apesar do tamanho, têm um ar gracioso.
Sabia que...
... o bisonte (ou bisão) é o maior mamífero terrestre da América do Norte, podendo pesar mais de 900 quilos?
Há dois séculos, os bisontes dominavam grande parte do continente americano, do Canadá ao México. Dezenas de milhões de indivíduos da espécie vagavam pela América do Norte. Eram tão numerosos que o bater dos cascos na terra mais parecia um trovão. Para as muitas tribos da região das planícies – os Lakota, os Shoshone, os Arapaho, por exemplo –, o búfalo era um animal sagrado que alimentava o povo e desempenhava um importante papel cerimonial. Para os colonizadores europeus, o bisonte era percepcionado tanto uma mercadoria como uma arma. Massacraram-nos aos milhares, vendendo depois as peles e organizando vastas caçadas desportivas.
À medida que os Estados Unidos avançavam para o Oeste no século XIX, o bisonte tornou-se um instrumento estratégico para desenraizar as tribos indígenas dos seus lares ancestrais. Ao matar o maior número possível de bisontes (o governo dos EUA chegou a fornecer certa vez munições para que caçadores privados invadissem ilegalmente terras tribais e matassem búfalos), colocava-se em prática o plano de matar as comunidades indígenas à fome. No virar do século XX, milhões de bisontes foram mortos. Em 1900, dos 30 a 60 milhões de bisontes que havia outrora já só restavam menos de mil, muitos deles em jardins zoológicos.
O Presidente Theodore Roosevelt ordenou a criação de rebanhos de bisontes federais (alguns, como os do Parque Estadual de Custer, no Dakota do Sul, foram ironicamente provenientes de rebanhos tribais). Os bisontes observados na reserva natural das montanhas Wichita são descendentes de 15 animais requisitados do Zoológico do Bronx, em 1907, e trazidos para Oklahoma num vagão ferroviário. Ao longo do século, rebanhos federais, tribais e privados trouxeram de volta uma espécie que já estava no limiar da extinção. Hoje o número estimado de bisontes no país ronda alguns centenas de milhares.
Os povos indígenas têm sido parte integrante desse esforço de repovoamento desde o início, tanto na gestão dos rebanhos quanto na introdução de legislação para proteger e expandir o território dos bisontes. Nas últimas décadas, o número de rebanhos tribais disparou: o InterTribal Buffalo Council, que começou como uma modesta aliança entre menos de dez tribos, no início dos anos 90, em breve contará como membros com 76 tribos em 20 estados desde Nova Iorque até ao Havai, sendo responsável pela gestão de um total de mais de 20 mil animais em 13 milhões de hectares.
A onda verde que se gerou
O regresso do bisonte é uma vitória não só para a biodiversidade, mas para todo o ecossistema em que vive. Como espécie-chave, o bisonte sustenta o ambiente em seu redor de cima para baixo. “Eles movem-se, pastam tudo. É um tipo de distúrbio – como o fogo seria”, disse Dan McDonald, biólogo principal do Refúgio de Vida Selvagem nas Montanhas Wichita. “O verde fresco [atrai] outros animais que se alimentariam dele: alces, veados e todos os outros animais de pastagem que apreciam as novas forragens.”
O rebanho em Oklahoma é de aproximadamente 625 animais, mas quando grandes rebanhos se movem sincronicamente pela Terra, eles criam o que os cientistas baptizaram de “onda verde”. O pastoreio vigoroso do bisonte estimula o crescimento das plantas, criando uma enxurrada de nova vegetação. Este rasto verde deixado pelo bisonte é aproveitado por animais grandes e pequenos. As ondas verdes podem ser tão dramáticas que algumas –como aquelas criadas pelo rebanho de bisontes da reserva de Yellowstone – podem até ser vistas do espaço.
Embora os bisontes produzam uma quantidade de metano semelhante à do gado bovino, os padrões de pastoreio e o facto de serem animais selvagens que geralmente vagueiam por centenas, senão milhares, de hectares significa que geralmente são muito menos destrutivos para o ambiente do que as vacas domésticas. E o abate desta espécie gera maior quantidade de carne, e mais magra.
A reintrodução do bisonte como fonte de alimento tem sido essencial nos rebanhos tribais. Os povos indígenas têm a maior taxa de diabetes de qualquer grupo étnico nos Estados Unidos, em parte porque muitas reservas estão localizadas em “desertos alimentares”, onde o acesso a supermercados – e a alimentos saudáveis, em particular – é extremamente limitado. Esse problema foi exacerbado durante a pandemia de coronavírus, quando as cadeias de abastecimento em todo o país desmoronaram. Graças aos rebanhos locais, algumas tribos colocaram a carne magra de búfalo no menu da cantina escolar. E a tribo Rosebud Sioux, por sua vez, conseguiu alimentar habitantes que lutam contra a falta de casa recorrendo ao primeiro búfalo produzido do rebanho de Wolakota.
Ao mesmo tempo, técnicas holísticas de gestão de rebanhos liderados por tribos operam com base no seguinte princípio: o bisonte é vida selvagem, e não gado. Estes animais requerem muita terra para manter o equilíbrio ecológico e evitar o sobrepastoreio. As planícies do Sul são especialmente vulneráveis às mudanças climáticas, onde períodos de seca hidrológica extrema e inundações surgiram com mais frequência nos últimos anos.
Há exemplos após exemplos de como o bisonte desempenha um papel crucial num ambiente ameaçado: os cascos empurram as sementes para uma camada mais funda do solo, que acaba por ficar mais arejado também. Pequenas aves costumam voar em torno dos tornozelos dos bisontes, porque os seus passos pesados levantam insectos dos quais as aves se podem alimentar. Os chupins-mulatos (Molothrus ater) apreciam andar à boleia nas costas do bisonte, arrancando parasitas da pele. Até o esterco do bisonte – que contém altos níveis de nitrogénio, um nutriente vital para o crescimento das plantas – fertiliza o solo enquanto pastam.
Os “poços” de bisontes – enormes depressões criadas quando estes animais rolam no solo – podem servir como micro-habitat para outros animais. Após fortes chuvas, enchem-se de água e transformam-se em charcos que acolhem insectos, sapos e outros anfíbios, segundo McDonald. Num exemplo pungente de um animal quase extinto que sustenta uma espécie ameaçada, os charcos criados por bisontes servem como um habitat ideal para certas violetas (Violeta pedata). Estas flores são a fonte de alimento preferida da larva da fritilária-real, uma borboleta rara.
O bisonte também sofre com os efeitos da crise climática. As temperaturas mais altas fizeram com que a comunidade de bisontes encolhesse, de acordo com vários estudos recentes. Isto porque as mudanças climáticas têm um impacte sobre as gramíneas que estes animais comem, reduzindo o teor de proteína. Um estudo revelou que para cada grau Celsius de aumento de temperatura, o bisonte macho pesava em média nove quilos a menos. Estima-se que as temperaturas possam subir quase três graus Celsius até 2050 em relação à época pré-industrial.
Há ainda outros desafios. O Indian Buffalo Management Act – uma legislação que garantiria recursos constantes para o manejo do rebanho tribal – está parada no Senado dos EUA depois de passar pela Câmara dos Representantes. Heinert diz que os proponentes do projecto foram capazes de aplacar as dificuldades e está optimista no que toca à possibilidade de o projecto de lei se tornar uma realidade. Paralelamente, a negociação dos gestores de rebanhos com os fazendeiros, por forma a convencê-los de que há terra suficiente para gado e bisontes, é um trabalho que nunca acaba. Ainda assim, muitos especialistas em bisontes estão esperançosos em relação ao futuro. A reintrodução contínua deste animal é uma rara história de sucesso na área da conservação da natureza. Passar de algumas centenas de bisontes para vários centenas de milhares em todo o país, em pouco mais de um século, é algo surpreendente. Este triunfo, por sua vez, trouxe o ressurgimento da flora e fauna locais nas regiões habitadas pelos bisontes, incluindo gramíneas nativas e insectos raros.
O búfalo, a exemplo das águias ou cavalos selvagens (Mustang), são um daqueles símbolos potentes da cultura americana que contêm uma infinidade de significados. As histórias contadas sobre os bisontes são infinitas, embora algumas sejam mais verdadeiras do que outras. Para as tribos, eles eram geradores de vida, um membro querido da comunidade. Para os colonizadores, um troféu, e depois uma mercadoria e uma ferramenta geopolítica. Os bisontes acabaram por se tornarem “párias na própria terra de origem”, assim como as tribos que viveram seguindo os padrões de migração destes animais e, agora, são instrumentais no esforço de conservação.
Olhar para o futuro do bisonte num contexto de crise climática requer olhar para trás, porque recuperar os rebanhos não é apenas salvar animais – é também envidar esforços para recuperar o ambiente onde os rebanhos viviam até ao ponto em que o ecossistema volte a regular a si próprio. Isto significa recuar a uma época em que o bisonte não era um símbolo, mas parte de uma paisagem rica em biodiversidade.
“À medida que olhamos para o futuro, qualquer contributo que as tribos estejam a dar para trazer os búfalos de volta às suas terras será benéfico para todos, porque é uma visão holística e inteligente, do ponto de vista climático, da nossa relação com a natureza”, disse Heinert . “Se continuarmos a ver o búfalo como uma mercadoria, não alcançaremos o objectivo final de restaurar e curar as nossas paisagens.”