Defesa da honra da Serra Leoa
O debate do Estado da Nação serve sobretudo para governos e oposições divulgarem todas as suas estatísticas e soundbites predilectos ao mesmo tempo.
“A Serra Leoa tem uma esperança média de vida de 38 anos”. Foi deste modo promissor que começou o debate sobre o estado de uma nação a 3500 quilómetros da Serra Leoa, numa alteração à ordem de trabalhos provocada por mais um nobre esforço regimental do Chega para falar sobre crianças mortas.
Com a voz trémula, Ventura evocou “a pequena Jéssica” e insurgiu-se contra a “tirania absoluta” que o impede de aparecer todos os dias na TV a falar em castração química. Não é sequer um choque descobrir que a esperança média de vida na Serra Leoa é na verdade de 55 anos – seria um perigoso sinal de incoerência que o partido começasse agora a usar números correctos.
O resto do debate decorreu sem surpresas. O exercício serve sobretudo para governos e oposições divulgarem todas as suas estatísticas e soundbites predilectos ao mesmo tempo, em vez de um a um, em telefonemas para as redacções. O primeiro-ministro debitou alguns números, com a compenetração de quem recita o catálogo dos navios na Ilíada (“7700 partos…2,5% ou mesmo 3,6%…85%!”), defendeu-se de gravíssimas injúrias (“eu nunca defendi o investimento nas resinosas!”) e declarou o seu compromisso com “a defesa das palavras”.
A sua relação com as vogais átonas parece de facto menos beligerante que no passado recente, e chegou a pronunciar 100% dos “i” na palavra “administração”, no que será um recorde pessoal. Foi só com o avançar da tarde que a hostilidade regressou, fazendo as vítimas de sempre (inxtções, dxcentrlzção). Até os “produtores” da 1.ª parte do discurso foram implacavelmente despromovidos a “prdtorx” por volta das 17h. Para o ano há mais, assim a conxttção permita.