Tchizé dos Santos: televisão, jet set e pêra rocha

Foi actriz numa telenovela e gestora do segundo canal da televisão pública de Angola, organizadora de eventos, dona de revistas de celebridades e de vinhos, deputada, proprietária de um restaurante em Luanda e co-proprietária de uma empresa de frutas em Portugal.

Foto
Tchizé dos Santos é filha de Maria Luísa Abrantes João Relvas/LUSA

Quem acompanha Tchizé dos Santos nas redes sociais, sabe que ela continua a ter negócios em Angola, apesar do seu auto-exílio em Londres. O restaurante TEN – abreviatura de The Executive Network –, na marginal de Luanda, com vista privilegiada para o mar, é alvo de partilhas constantes, quase sempre uma fotografia do prato requintado fotografado numa mesa junto à janela com a baía de Luanda como pano de fundo.

O TEN é também um espaço para casamentos e festas de gala destinado à elite de Luanda, onde Welwitschea (como a planta nacional de Angola, que cresce no deserto do Namibe em condições adversas e pode durar mil anos) sempre se mexeu muito bem ou não fosse ela a filha do então Presidente José Eduardo dos Santos, morto na semana passada aos 79 anos. Se é certo que quando nasceu, em 1978, – a mãe é Maria Luísa Abrantes –​, o pai ainda não tinha ascendido ao cargo mais alto em Angola, a verdade é que viveu quase a vida toda com o privilégio de ter nascido filha de chefe de Estado, entre as festas da elite que ganhou muito dinheiro nos 38 anos de poder do pai

Num resumo biográfico, publicado na sua página de Facebook há dois anos, consta uma trajectória profissional que começa com a organização de um réveillon aos 17 anos no Miami Beach, o bar na ilha de Luanda da qual a irmã se havia tornado sócia. E aí se afirma que Tchizé dos Santos se tornou a partir daí uma das “principais promoters de algumas das mais famosas e lucrativas festas de fim de ano” no país e até refere que cobravam 100 dólares de entrada — em 2020, antes da pandemia, quatro em cada dez angolanos viviam com menos de 20 dólares por mês.

A carreira de Tchizé dos Santos está dedicada, por isso, desde muito nova à elite de Angola, mesmo antes de se ter formado em Comunicação Social, com especialização em produção de imprensa, na Regent’s University, em Londres, e já quando estudava na Escola Internacional Americana de Lisboa.

Aos 22 anos já tinha criado uma revista, Tropical, antes de começar a publicar a Caras Angola, a versão angolana da revista portuguesa sobre histórias de jetset, dois anos depois. Pelo meio a filha de José Eduardo dos Santos estreou-se como actriz na telenovela da TPA Vidas Ocultas, onde contracenava com o actor Fredy Costa e cujo protagonista era Raul Danda, o deputado da UNITA falecido o ano passado.

Era o princípio do projecto de reconstrução nacional, dois anos depois de o pai ter assinado a paz com a UNITA, morto o seu principal rival, Jonas Savimbi: a torneira do petróleo começava a jorrar milhares de milhões de petrodólares e o investimento internacional (nomeadamente o português) via o país como um eldorado.

Foto

Uma elite subitamente endinheirada, que viajava mais para a Europa e os Estados Unidos que para lá do Bengo ou a barra do Kwanza e se divertia nas festas exclusivas do Mussulo ou da ilha de Luanda, gostava de consumir as revistas e os programas de televisão que retratavam o seu sucesso e ascensão social.

Com o irmão José Paulino – Coréon Dú, de pseudónimo, cantor e criador de moda – fundou a Semba Comunicação, que se transformou numa das maiores empresas privadas de media em Angola – e se estendeu a Portugal, através da Massemba, com títulos como a Lux, a Lux Woman e a Revista dos Vinhos (entretanto vendida à Essência do Vinho).

A Semba Comunicação produziu um filme sobre uma das figuras míticas da história do país –​ Njinga, Rainha de Angola –​, criou telenovelas, que chegaram a ser transmitidas em Portugal e foram candidatas a prémios Emmy, como Windeck e Jikulumessu. Produtos televisivos inovadores para o panorama do país e que até tentaram romper as barreiras dos costumes, com o primeiro beijo homossexual na televisão angolana que causou polémica, motivou a suspensão da transmissão durante dias e obrigou Coréon Dú a pedir desculpas públicas pela ousadia.

Foi à empresa dos filhos do Presidente que o Estado angolano entregou a renovação do segundo canal da televisão pública em 2007 e depois o lançamento da TPA Internacional (em 2008), o que permitiu a Tchizé organizar no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, a Gala de Lançamento que se destinava, segundo uma notícia da Lusa da altura, de elevar a TPA ao estatuto de “televisão de referência” em África e no mundo, algo que nunca chegou a acontecer.

Media e organização de eventos, assim se tem dividido a sua carreira ao longo de duas décadas. E se tem uma participação na empresa portuguesa Central de Frutas do Painho, que exporta sobretudo pêra rocha para seis países (Angola não está incluída), isso tem mais a ver com a vida pessoal – casada em 2002 com o engenheiro agrónomo português Hugo Pêgo, de quem teve os seus dois filhos e de quem se divorciou em 2015.

Num país onde o partido único continua a dominar a vida política e social, Tchizé dos Santos também não descurou o seu lado político. Tendo entrado para o MPLA dois anos depois do fim da guerra, em 2004, seria sucessivamente eleita por três vezes como deputada na Assembleia Nacional de Angola.

Nesta última vez, que coincide com a saída do seu pai da presidência e a eleição de João Lourenço, em 2017, a experiência não lhe correu bem, acabando por perder o mandato depois de sucessivas faltas injustificadas. Falando em perseguição política à família Dos Santos, alegadamente gerida directamente a partir da presidência, Tchizé dos Santos manteve-se mais dias seguidos fora de Angola que o regimento parlamentar permite e, a 19 de Outubro de 2019, a Assembleia deliberou a perda de mandato.

A filha de José Eduardo dos Santos ainda recorreu para o Tribunal Constitucional que, no entanto, haveria de rejeitar o seu pedido de impugnação da decisão, a 15 de Abril de 2020, por considerar que “não violou preceitos constitucionais”, apesar de a ex-deputada alegar que não lhe foi dada a oportunidade de se defender.

Na altura dessa decisão, já o MPLA a tinha expulsado do comité central do partido, numa reunião ordinária do Bureau Político presidida por João Lourenço. Como a sua militância foi suspensa por 24 meses, o seu nome fica de fora das listas do partido para as eleições de 24 de Agosto pela primeira vez desde 2008.

Seguramente também ficaria de fora, mesmo não estando suspensa, tal a animosidade que tem demonstrado em relação ao sucessor do seu pai, que ela e a irmã ajudaram a eleger e, por isso, ainda as faz sentir mais traídas. Tchizé dos Santos culpa João Lourenço pelo agravamento do estado de saúde do pai e, se for por ela e pela irmã Isabel dos Santos, José Eduardo dos Santos jamais será enterrado em Angola enquanto aquele estiver no poder.

Sugerir correcção
Ler 32 comentários