Interior, frio e outros mitos

Quem se bate pelo interior, com maior ou menor apego à palavra, dificilmente se queixa da distância que está obrigado a percorrer da Covilhã a Lisboa, ou da Guarda a Aveiro. Queixa-se, isso sim, do custo da travessia que bloqueia, qual doença venosa, a circulação regular, criando barreiras que escapam ao escrutínio dos geógrafos.

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Raghvendra Dubey/Unsplash

Numa entrevista concedida há dias a Vítor Gonçalves, Francisco Assis, presidente do CES, tratou de lembrar que um pequeno país como Portugal, com uma profundidade de 200 quilómetros – distância entre a faixa atlântica e a fronteira com Espanha –, não tem interior. Comentou, aliás, em defesa desta sua tese, que há na cidade da Guarda um restaurante da sua predilecção que tem na ementa peixe fresco vindo diariamente de Aveiro.

Apesar de prosaico, este seria um exemplo eloquente de como Portugal não tem interior. O mantra da pseudo-interioridade não é novo. Há muito que se vem dizendo que o interior constitui uma distracção inútil que nos faz perder de vista o nosso potencial estratégico, que está no mar, a única orientação que pode devolver-nos a centralidade que a geografia recusou.

Não sei se a Conferência dos Oceanos das Nações Unidas, que Portugal acolheu há poucos dias, actuou subterraneamente na reflexão de Assis, mas assinale-se, ao menos, a coincidência. Não se pense, no entanto, que é apenas na estreita faixa litoral de Portugal que estão os adversários da ideia de interioridade. Não faltará quem, a partir dos territórios mais afastados da costa, pense que a palavra interior estigmatiza as regiões que ela designa, contribuindo mais para perpetuar problemas do que para enfrentá-los decididamente. Num e noutro caso, isto é, do lado dos causídicos do mar, mas também do lado quem se deixa vexar pela ideia de interioridade, o problema é comum: ignorar a realidade, juntando-lhe, como prescreve o célebre adágio, alguma verdade à mistura.

Com efeito, se a nossa concepção de interioridade for meramente geográfica, será difícil não concordar com Assis. Faltam os critérios da largura e da profundidade que justificariam, existindo, esta obsessão pela interioridade.

Mas quem se bate pelo interior, com maior ou menor apego à palavra, dificilmente se queixa da distância que está obrigado a percorrer da Covilhã a Lisboa, ou da Guarda a Aveiro. Queixa-se, isso sim, do custo da travessia que bloqueia, qual doença venosa, a circulação regular, criando barreiras que escapam ao escrutínio dos geógrafos. É um custo que se repercute em todas as dimensões da vida nestas regiões, configurando evidentes situações de desigualdade e de exclusão: na oferta cultural disponível, não obstante o esforço abnegado de pessoas e estruturas que fazem o (im)possível para atenuar essa diferença; no acesso a serviços elementares do Estado – na saúde, na educação, na justiça; na falta de jovens e na dificuldade de fixá-los nestes territórios; no dilema vivido pelas universidades destas regiões para competirem nacional e internacionalmente com as suas congéneres, suportando suplementarmente inaceitáveis e crónicos problemas de subfinanciamento; na falta de toda a sorte de escolhas que a impiedosa lei da oferta e da procura tornou permanente; até, com grande probabilidade, no preço do prato de peixe servido na Guarda.

Mas como a interioridade não existe, dir-se-á que os problemas que lhes estão associados serão também da ordem do ficcional. Isso traz-me à lembrança as palavras argutas de um amigo que me acompanhou numa subida à Serra da Estrela. Ludibriado pelo tempo ameno que se fazia sentir na cidade da Covilhã, fiz a subida em mangas de camisa, escolha imprevidente que me fez começar a tremer de frio depois de sentida a primeira brisa da Serra. Trajando um casaco quente e impermeável, o meu amigo entendeu consolar-me. Emprestando-me o seu casaco? Não, lembrando-me que o frio é psicológico. Assim vai a discussão sobre o interior em Portugal. Alguns lembrando que não existe, que será psicológico, e tantos outros com tremores, sentindo-lhe o efeito. Se a receita resultar, proponho-a aos economistas para combater a inflação.

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