Políticos têm de perceber que o valor da natureza vai muito para além do dinheiro

Relatório da organização intergovernamental IPBES analisa as diferentes formas como avaliamos a natureza e conclui que a crise da biodiversidade tem muito a ver com estar ser subestimada

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Crianças a pescar num arrozal, na Tailândia: "Há alguns valores comuns, como a justiça intergeracional, que nos podem ajudar a alcançar os objectivos do desenvolvimento sustentável", disse Unai Pascual TOM

A natureza não é suficientemente valorizada nos processos de tomada de decisões políticas e económicas, que se concentram nos indicadores económicos, e isso é um dos motores da crise de desaparecimento da biodiversidade que estamos a viver, conclui um relatório lançado nesta segunda-feira pela Plataforma Intergovernamental de Política de Ciência sobre Biodiversidade e Serviços do Ecossistema (IPBES, na sigla em inglês), a organização independente criada em 2012 e apoiada pelas Nações Unidas.

“Vemos que a natureza e a biodiversidade estão a ser degradadas a um grau e uma escala sem precedentes, como demonstrou o nosso relatório de 2019 [que concluiu que um milhão de espécies estão ameaçadas de extinção], e isso acontece porque não incluímos os valores da natureza nas nossas decisões políticas e económicas”, afirmou Anne Larigauderie, secretária-geral da IPBES, uma organização que engloba 139 países, numa conferência de imprensa online para apresentar o sumário para decisores políticos do Relatório de Avaliação dos Diversos valores e Valorização da Natureza.

“Vemos que as decisões políticas têm sido baseadas num conjunto muito limitado de valores relacionados com o mercado e que isso está relacionado com a crise de biodiversidade”, explicou Unai Pascual (Centro Basco para as Alterações Climáticas), que co-secretariou a elaboração do relatório, o segundo em poucos dias: na sexta-feira, o IPBES fez uma avaliação das espécies que os seres humanos utilizam. “Mas também verificámos que existem muitas oportunidades para incluir diversos valores da natureza no processo de tomada de decisões”, salientou.

“O foco predominante tem sido no crescimento económico e na obtenção de lucros a curto prazo, que se baseia em indicadores macroeconómicos como o Produto Interno Bruto. Estes indicadores normalmente só consideram os valores da natureza, não reflectem as alterações na qualidade de vida”, lê-se no relatório, que tem 82 autores, cientistas e também representantes de comunidades indígenas e locais, cujo conhecimento é muito valorizado pelo IBPES. “Não levam em conta a exploração em excesso da natureza e dos ecossistemas, e os impactos na biodiversidade e na sustentabilidade a longo prazo”, diz o documento.

“Os valores da natureza são muitas vezes ignorados, e privilegiado o lucro a curto prazo e o crescimento económico. E está bem documentado que ignorar ou marginalizar populações indígenas ou locais é algo que leva a conflitos socioambientais”, salientou Unai Pascual.

“O relatório dá métodos e ferramentas para que os decisores possam compreender melhor os valores que as comunidades atribuem à natureza e a forma de os medir”, explicou Patricia Balvanera, do Instituto para a Investigação de Ecossistemas e Sustentabilidade da Universidade Nacional Autónoma do México, que também co-secretariou o relatório.

“Por exemplo, um projecto de desenvolvimento pode ter benefícios económicos e criar emprego, para os quais se podem avaliar os valores instrumentais da natureza. Mas também pode levar à perda de espécies, que está associada aos valores intrínsecos da natureza, e à destruição de sítios patrimoniais importantes para a identidade cultural, o que afecta os valores de relação da natureza. Este relatório dá orientação para combinar estes valores muito diversos”, explicou a cientista mexicana, citada num comunicado de imprensa.

Nas mãos de quem decide

“Há técnicas que possibilitam combinar valores muito diversos, mas em último caso, o processo não é técnico, é político. Têm de ser os decisores a comparar valores e consequências de os respeitar ou não, quem recebe benefícios e quem paga os custos”, salientou Unai Pascual na conferência de imprensa. “Para alcançarmos futuros justos, é preciso reconhecer e integrar valores diversos. Apesar da diversidade, há alguns valores comuns, como a justiça intergeracional, por exemplo, que nos podem ajudar a alcançar os objectivos do desenvolvimento sustentável”, afirmou.

O objectivo é que este relatório contribua para alcançar um acordo na revisão da Convenção da Diversidade Biológica, que será discutido em Montreal, em Novembro, e que dê pistas para cumprir os Objectivos do Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas. Por isso, salientou Unai Pascual, é preciso ir para além de indicadores macroeconómicos como o Produto Interno Bruto (PIB). “Acaba por incentivar as pessoas a apoderar-se de forma imprópria da natureza”, frisou o cientista espanhol.

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“O que é inédito neste relatório é que não reduzimos tudo a valores quantificáveis em dólares ou euros, disse Sander Jacobs IPBES

O relatório define quatro tipos de relações das pessoas com a natureza, que reflectem “diferentes formas de ver o mundo e diferentes sistemas de conhecimento, que têm influência na maneira como as pessoas interagem e valorizam a natureza”.

São eles: “viver da natureza”, que põe a ênfase na capacidade da natureza fornecer recursos para as necessidades dos seres humanos, como alimentos e outros bens; “viver com a natureza”, que põe o foco na vida de outros seres vivos para além dos humanos, por exemplo reconhecendo o direito intrínseco dos peixes de um rio a viver lá, para além das necessidades dos homens; “viver na natureza” refere-se à importância da natureza como a base do sentimento de identidade das pessoas; “viver como natureza” vê o mundo natural como uma parte física, mental e espiritual de si próprio.

“O que é inédito neste relatório é que não reduzimos tudo a valores quantificáveis em dólares ou euros. Para além da economia, abrimos espaço para considerar valores biofísicos, por exemplo, considerando os efeitos de uma acção sobre as espécies num local”, explicou Sander Jacobs, do Instituto de Investigação da Natureza e da Floresta da Bélgica.