Empresa que arrasou habitats raros e ameaçados em Odemira vai ser acusada

Eram os últimos cinco charcos de um grupo superior a 30 que existiam numa das mais importantes concentrações deste tipo de ecossistemas a nível nacional. Agora estão lá morangos.

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Os charcos são ecossistemas frágeis e únicos LPN
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Os charcos são ecossistemas frágeis e únicos LPN

Entre as praias do Carvalhal e da Zambujeira do Mar, uma empresa produtora de morangos decidiu, em 2019, expandir a sua área de plantação deste fruto vermelho mas a presença de cinco charcos temporários mediterrânicos (CTM) sobreviventes de uma das mais importantes concentrações (mais de 30) a nível nacional dificultava-lhe a tarefa. Optou pelo facto consumado. “Sem ter obtido licenciamento nesse sentido”, nivelou o terreno e, desta forma, foram destruídos os últimos charcos temporários que restavam naquela zona, adiantou ao PÚBLICO Rita Alcazar, dirigente da Liga para Protecção da Natureza (LPN). Agora, foi concluída a acusação pelos responsáveis do Ambiente, estando o processo “em instrução para decisão”.

A participação criminal contra os responsáveis agrícolas pela destruição dos charcos deu entrada no Departamento de Investigação e Acção Penal de Odemira e foi movida pela LPN. Rita Alcazar adiantou ainda que a situação foi denunciada pela organização de que faz parte junto da Comissão Europeia em Março de 2021, e tem por base o facto de os CTM serem um habitat de conservação prioritário, ao abrigo da Directiva Habitats, transposta para legislação nacional e com “claras obrigações para a sua salvaguarda”.

Mas também o Ministério do Ambiente agiu. Em resposta ao PÚBLICO, o Instituto de Conservação da Natureza e Floresta (ICNF) confirma que realizou, no dia 11 de Outubro de 2021, e na sequência da denúncia feita pela LPN, uma acção de fiscalização, “tendo verificado que cinco charcos temporários ficaram soterrados”.

Da fiscalização efectuada resultou uma “participação interna” que deu origem a um processo de contra-ordenação. O processo encontra-se “em instrução para decisão”, explica o ICNF, acrescentando que “foi elaborada e remetida a acusação para o arguido em Março de 2022” pela acção que praticou em 2019. Este organismo lembra que o licenciamento da actividade agrícola “não compete ao ICNF”. Mas compete-lhe dar “parecer vinculativo” no âmbito da aplicação do plano de ordenamento do Parque Natural e da Rede Natura 2000, “o que não aconteceu”, refere.

“Não existem razões que justifiquem esta perda”, sublinha a dirigente da LPN. Face ao “relativo desconhecimento” sobre o estado de conservação deste habitat na região, foi feito um levantamento entre 2013 e 2018, no âmbito do projecto europeu Life Charcos coordenado pela LPN, em parceria com diversas instituições públicas e privadas, designadamente a Universidade de Évora, a Universidade do Algarve, a Câmara Municipal de Odemira e a Associação de Beneficiários do Mira. Este esforço permitiu identificar 133 lagoas temporárias mediterrânicas.

Mesmo assim, a identificação dos CTM não obstou à sua destruição para dar lugar à instalação de culturas agrícolas, “ao arrepio e em clara violação das disposições legais e regulamentares em vigor”, denunciou a liga através de comunicado. A lei prevê que quem “destruir ou deteriorar significativamente habitat natural protegido causando perdas em espécies protegidas da fauna ou da flora selvagens (…) é punido com pena de prisão até cinco anos”.

Com este processo, a LPN diz que “procura responsabilizar a ocorrência e os seus autores” para que o “restauro das lagoas destruídas” tenha lugar. Ao mesmo tempo, “apela” para a rápida aplicação da legislação que “não está a ser cumprida” no Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina (PNSACV), onde está localizada a maioria destes charcos, “evitando que continuem a ocorrer actos ilegais e danosos para a natureza”.

Rita Alcazar lembra que “só são obrigados a obter licenciamento” para intervenções nos solos agrícolas os agricultores que recorreram ao financiamento público (nacional e comunitário). Quem não precisa de financiamento consegue avançar sem licenciamento, mas, mesmo assim, tem de ter parecer do Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF).

Desarticulação

O que se passa nesta região é também reflexo da “desarticulação entre o Ministério da Agricultura e o Ministério do Ambiente”, acrescenta a dirigente da liga, interpretação que é partilhada por Carla Cruz, bióloga e professora na Universidade de Évora, que identificou os 133 charcos. “Assistimos a um acumular de situações que exigiriam a criação de um grupo de trabalho que colocasse em discussão os diferentes interesses em jogo, sem posições extremadas”.

Fazendo uma retrospectiva ao panorama que encontrou enquanto decorria o projecto Life Charcos, diz ter-se deparado com situações onde era patente que, por vezes, os agricultores “destruíram os charcos inadvertidamente, por falta de informação”.

“Vimos coisas que não gostávamos de ver”, conta, referindo-se ao período de investigações que as duas biólogas desenvolveram nos cinco anos do projecto. Mas acrescenta: “[O desaparecimento dos charcos temporários] “não é sempre resultado da actividade humana. O agravamento da situação também é resultante da pressão que estamos a sentir com as alterações climáticas.”

O Sudoeste alentejano “já suporta cinco anos de seca consecutiva”, observa Carla Cruz. “[Nestas circunstâncias], temos de nos preocupar para o que possa vir a acontecer com a manutenção dos charcos, dada a pressão adicional e o efeito cumulativo provocado pelas alterações climáticas.” Estando a desaparecendo por diversas causas para dar lugar a “áreas cobertas de estufins e estufas numa escala enorme”, a investigadora deixa outra interrogação: “O que é que vamos fazer com os charcos que restam?”

Nestas bolsas de água, cujo tamanho pode variar entre poucas dezenas de metros quadrados a um hectare, vivem crustáceos que existem desde o tempo dos dinossauros. Além de plantas e animais únicos, os charcos temporários têm a particularidade de ser locais privilegiados para a reprodução de anfíbios (sapos, rãs, salamandras e tritões), porque neles não existem peixes nem lagostins, predadores dos ovos e das larvas.