Morreu o artista plástico Eurico Gonçalves, o surrealista português do Dadá-Zen

A sua obra está representada nas colecções de algumas das mais importantes instituições portuguesas de arte e era especialista em educação plástica da criança. Tinha 90 anos.

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Eurico Gonçalves, fotografado em 2005 Nelson Garrido

O pintor, crítico de arte e professor Eurico Gonçalves morreu este domingo aos 90 anos. Um dos nomes do surrealismo português, pioneiro na educação artística em Portugal, autor de uma estética pessoal baptizada como o Dadá-Zen, tinha 90 anos e mais de 70 de carreira. O seu óbito foi confirmado pela sua mulher, a pintora Dalila d’Alte Rodrigues.

Eurico Gonçalves nasceu em 1932 em Abragão (Penafiel). A sua obra está representada nas colecções de algumas das mais importantes instituições portuguesas de arte — no Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian, no Museu Amadeo de Souza Cardoso, na Culturgest, no Museu do Chiado, no Centro de Estudos do Surrealismo - Fundação Cupertino de Miranda.

Em 2005 foi-lhe atribuído o Grande Prémio da XIII Bienal Internacional de Artes de Vila Nova de Cerveira, evento em que participara até então em todas as edições e cujo reconhecimento considerou, com humor e pragmatismo, “tardio” mas “especial”. Tinha então 73 anos e era fluente na expressão estética que tinha feito sua — “Dadá-Zen foi a designação criada por Eurico para relacionar o vitalismo dada e a atitude filosófica zen. Ambos propõem uma arte despreconceituada e espontânea, aberta à intervenção do acaso e à revelação dos dados imediatos do inconsciente”, escreve Dalila d'Alte Rodrigues na sua tese de doutoramento A obra de Eurico Gonçalves na perspectiva do surrealismo português e internacional.

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NELSON GARRIDO

A sua filosofia artística abarcava então o dadaísmo, a corrente antiacadémica nascida no dealbar do séc. XX, e a prática espiritual do budismo. Como escrevia o PÚBLICO em 2005, quando do prémio em Cerveira, o prefixo “des” era particularmente importante para o pintor: “Segundo o zen, é pela negação do sinal que se cria um novo sinal”. Falava-se em “despintar” — tirar a cor —, em “descolar”, tirar o que foi colado, e em “desdobrar”. “Picasso também destruiu figuras para criar novas a partir das destruídas”, disse na altura. Era surrealista desde os 17 anos. Unia a escrita à pintura.

“Demoro muito tempo a olhar para a superfície do quadro, até conseguir criar a vacuidade absoluta; depois executo rápida e incisivamente os traços na tela”, disse em 2005 ao PÚBLICO. “[Era] autor de uma obra que se define entre dois vectores convergentes, a inocência original e a poética do maravilhoso, numa inter-relação com o automatismo psíquico, a exploração do acaso e o vazio libertador zen”, resume Dalila d'Alte Rodrigues na sua tese.

O grande prémio em Cerveira foi uma espécie de corolário das suas várias distinções: entre 1966 e 67 foi bolseiro da Fundação Gulbenkian em Paris, onde trabalhou com o pintor francês Jean Degottex e frequentou a Universidade de Sorbonne, onde teve como mestres Jean Francastel e René Huyghe, lê-se num seu currículo enviado às redacções. Em 1998 recebe o Prémio de Pintura Almada Negreiros.

Como artista plástico teve dezenas de exposições a título individual, entre as quais as realizadas na Galeria Presença, no Porto (1996), ou a antológica Estou vivo e escrevo Sol, 1949-2006 (2007) ou Dada-Zen/Pintura-Escrita (2010), bem como Eurico Gonçalves, Pintura Gestual, Informal e/ou Caligráfica de Inspiração Zen (2018). Entre as mostras colectivas, comissariou O Erotismo na Arte Moderna Portuguesa a convite de Cruzeiro Seixas, integrou a representação portuguesa na XVII Bienal Internacional de S. Paulo (1983) ou a Primeira Exposição do Surrealismo ou Não, comissariada por Mário Cesariny e Cruzeiro Seixas. Em 1972, prefaciou a importante exposição de Henri Michaux, na Galeria S. Mamede em Lisboa.

Além de ter feito crítica de arte para vários jornais e revistas portuguesas, assinou ainda os livros A Pintura das Crianças e Nós –​ Pais, Professores e Educadores (Porto Editora, 1976), A Arte Descobre a Criança (Raiz Editora, 1991), A Criança Descobre a Arte (Raiz Editora, 1991/93), Narrativas de Sonhos, Poemas e Textos Automáticos 1950/51 (Edições Prates, 1995), Dádá-Zen/Pintura-Escrita (Edições Quasi, 2005), e participou com O Erotismo na Arte Moderna Portuguesa na obra Sexologia em Portugal (Texto Editora, 1987).

Era especialista no conhecimento da expressão plástica da criança, descreve Dalila Rodrigues, que recorda que o artista deu nome à Escola Básica Eurico Gonçalves, em Lisboa.

Eurico Gonçalves era irmão de Rui Mário Gonçalves, decano dos críticos de arte contemporânea, que morreu em 2014.

De acordo com a agência Lusa, o velório de Eurico Gonçalves está agendado para terça-feira, a partir das 18h na Basílica da Estrela, em Lisboa. Na quarta-feira, seguirá para o jazigo da família, em Penafiel.

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