Usamos 50 mil espécies selvagens – o desafio é fazê-lo de forma sustentável
Relatório de organização intergovernamental quantifica usos de plantas, animais e fungos, identifica factores ambientais que põem em causa o seu uso sustentável e faz recomendações sobre como os poupar à exploração excessiva.
A humanidade usa cerca de 50 mil espécies de animais, plantas e fungos espécies para as suas necessidades diárias, sejam elas a alimentação, energia para cozinhar e se aquecer, construção e vários usos recreativos, como o ecoturismo. Uma em cada cinco pessoas depende de espécies selvagens para rendimento e alimentação. São usadas dez mil espécies só para a alimentação, diz um novo relatório divulgado nesta sexta-feira que traça um retrato da exploração excessiva das espécies selvagens em todo o planeta.
“O uso de espécies selvagens tem sido largamente subestimado”, afirmou Anne Larigauderie, secretária executiva da Plataforma Intergovernamental de Política de Ciência sobre Biodiversidade e Serviços do Ecossistema (IPBES, na sigla em inglês), a organização independente criada em 2012 e apoiada pelas Nações Unidas que lançou o relatório.
“Espécies selvagens” são definidas no relatório como “populações de qualquer espécie de ser vivo que não tenha sido domesticado através da selecção [pelos humanos] ao longo de várias gerações para a escolha de determinadas características, e que consiga sobreviver sem a intervenção humana”. O relatório concluiu que só cerca de 34% das espécies selvagens são usadas de forma sustentável, baseando-se na avaliação de 10.098 espécies de dez grupos taxonómicos incluídos na Lista Vermelha das União Internacional para a Conservação da Natureza.
Nesta classificação pode caber a pesca – os 90 milhões de toneladas de peixe apanhados todos os anos nas últimas décadas, dois terços dos quais se destinam à alimentação humana e o resto para alimentar os peixes de aquacultura e o gado. Há bons exemplos, como a pesca do atum-rabilho do Atlântico, que na última década deu grandes passos para se tornar sustentável, graças a uma melhor gestão, salientou Jean-Marc Fromentin, do Instituto Francês de Investigação para a Exploração do Mar (Ifremer), um dos cientistas que co-secretariou o relatório, numa conferência de imprensa online feita para o divulgar. Este foi elaborado por 85 cientistas, que tiveram a colaboração de várias comunidades indígenas e locais e que contribuíram com os seus conhecimentos, ao longo de quatro anos de trabalho.
Mas não faltam maus exemplos da crise de desaparecimento da biodiversidade que o mundo enfrenta – esta organização quantificou em um milhão o número de espécies ameaçadas de extinção, no seu anterior relatório, em 2019. O que se passa com os tubarões e as raias é um caso gritante: há 448 espécies destes peixes classificados como ameaçados (37,5% de 1199 espécies recentemente avaliadas), na maior parte dos casos devido à captura acidental na pesca. Mas 99% das espécies de tubarões e raias que são capturadas são valiosas comercialmente – o que tem levado a um declínio acentuado nas espécies desde a década de 1970, em especial nas águas tropicais e subtropicais.
Na classificação de espécies selvagens que são fundamentais para o bem-estar humano cabe também, por exemplo, as árvores que nos dão lenha, da qual 2400 milhões de pessoas – cerca de um terço dos habitantes do planeta – dependem para cozinhar, sobretudo nos países em desenvolvimento. Mais de 12% das 7400 espécies de árvores selvagens que usamos estão em risco por causa da extracção de madeira não sustentável, diz o relatório. A recolha insustentável é uma das maiores ameaças à sobrevivência de vários grupos de plantas, como cactos, cicadáceas e orquídeas. Há 1341 espécies de mamíferos selvagens ameaçadas pela caça insustentável.
Apesar desta imagem que nos mostra uma exploração pouco sustentável da vida selvagem, há, no entanto, uma falta de indicadores que nos dêem um retrato fiel e abrangente da situação. “Das centenas de indicadores codificados em metas e objectivos acordados de forma multilateral, como os Objectivos de Desenvolvimento Sustentável ou as Metas de Biodiversidade de Aichi, só uma pequena percentagem diz respeito, especificamente, ao uso sustentável de espécies selvagens”, lê-se no relatório.
Jean-Marc Fromentin explicou melhor, respondendo a uma pergunta do PÚBLICO: “Para as pescas, há muita informação. Mas isso não acontece noutras áreas. Sobre cerca de 22 mil espécies, metade das que utilizamos, não sabemos o suficiente sobre a sua situação e a forma como são usadas”, disse. E Elizabeth Barron, da Universidade Norueguesa de Ciência e Tecnologia, uma das principais autoras do relatório, completou a resposta na conferência de imprensa: “Não há muita informação sobre plantas e fungos, embora o número de espécies usadas seja enorme. É necessário um maior esforço das ciências materiais e sociais.”
Este relatório foi pedido pela Convenção Internacional sobre o Comércio de Espécies Selvagens Ameaçadas (Cites, na sigla em inglês), e vai ajudar a tomar decisões na 19.ª Conferência sobre a Vida Selvagem, no Panamá, em Novembro, e contribuirá também para as negociações de novo quadro, pós-2020, da Convenção sobre a Diversidade Biológica – as conversações decorrem no mesmo mês, em Montreal. “O uso sustentável das espécies selvagens é vital para todas as pessoas, em todas as comunidades – e este relatório vai ajudar os decisores a escolher políticas”, disse Anne Larigauderie.
O documento apresenta os factores ambientais que põem em causa o uso sustentável das espécies selvagens, como as alterações climáticas, o comércio global e a recolha ilegal de espécies. O comércio ilegal em espécies selvagens é a terceira maior classe de todos os comércios ilícitos, após o tráfico de drogas e de armas, com um valor anual estimado de 199.000 milhões de dólares (196.000 milhões de euros).
Por outro lado, são feitas uma série de recomendações sobre como conseguir um uso mais sustentável das espécies selvagens, que passam, por exemplo, por respeitar os direitos das populações locais e das mulheres, não criminalizar os marginalizados (como povos indígenas) e não apoiar-se em demasia nas leis e regras, salientou John Donaldson, do Instituto Nacional de Biodiversidade da África do Sul, outro dos co-secretários do relatório.
São ainda reconhecidos vários elementos fundamentais para reforçar o uso sustentável das espécies selvagens, como um processo inclusivo e participativo de tomada de decisões, a abertura a múltiplas formas de conhecimento (o de povos indígenas e locais é fundamental) e distribuição equitativa dos custos e benefícios do uso das espécies. “Na Europa de Leste, em África e na América do Norte, as comunidades locais usam espécies selvagens diferentes, mas o que aprendemos é que os desafios que enfrentam para continuar a usá-las de forma sustentável são muito semelhantes e as soluções provavelmente também o são”, comentou Marla Emery, dos Serviços Florestais dos Estados Unidos e a terceira co-secretária do relatório.