Restaurar pradarias marinhas é importante, mas conservar as que restam é ainda mais

As pradarias marinhas, importantes sequestradoras de carbono e abrigo de muitas espécies, perderam metade da sua cobertura nos últimos 40 a 50 anos. Têm surgido em Portugal projectos de restauro destes ecossistemas, mas a maioria, por ser de curta duração e não monitorizar o progresso, não produz os resultados desejados. O modelo destas iniciativas de replantação tem de ser repensado — e a conservação das pradarias que ainda não se perderam não pode ser esquecida.

Foto
Ovos de choco numa pradaria na ria Formosa Rui Santos

Constituídas por plantas aquáticas que formam um complexo sistema de rizomas — caules que crescem na horizontal —, as pradarias marinhas são fundamentais no combate às alterações climáticas, pois são importantes sequestradoras de carbono. Porém, estas florestas azuis perderam metade da sua cobertura nos últimos 40 a 50 anos no mundo. Um relatório co-assinado por investigadores da Universidade do Algarve e publicado em 2020 na revista científica Nature Communications indica que, na Europa, estes ecossistemas começam a recuperar. Mas continua a ser crucial encetar esforços para, por um lado, conservar as pradarias que restam e, por outro, restaurar as que a actividade humana ajudou a destruir.

Promover o restauro destes habitats não é fácil, contudo. Antes do arranque da Conferência dos Oceanos, que findou em Lisboa esta sexta-feira, o PÚBLICO ouviu especialistas para entender o que costuma falhar em projectos de restauro. A sua curta duração explica parte do insucesso. Mas há uma outra questão: tão importante como replantar florestas azuis é monitorizar as pradarias que estão a ser restauradas. E isso não tem acontecido de forma satisfatória, acusam algumas das vozes auscultadas.

O que pode afectar as pradarias?

São vários os factores que podem exercer pressão sobre as pradarias marinhas. A (má) qualidade da água é um deles. O fitoplâncton, que fica por cima das ervas marinhas que formam as pradarias, alimenta-se dos nutrientes presentes nos adubos e fertilizantes que vão parar ao mar, crescendo rapidamente — e sombreando as ervas marinhas, que, sendo fotossintéticas, são sensíveis à perda de luz.

Foto
Ria Formosa, onde há neste momento um projecto de restauro de pradarias marinhas (e protecção de cavalos-marinhos Rui Santos

Certas artes de pesca também levam à remoção mecânica das pradarias. Ester Serrão, investigadora do Centro de Ciências do Mar (CCMar), da Universidade do Algarve, dá o exemplo da ganchorra, que, revolvendo o fundo marinho para capturar bivalves, arranca os rizomas e as raízes das ervas marinhas.​

“As ganchorras são do pior que há para as pradarias”, diz a bióloga, que surge associada àquele que será o maior caso de sucesso nacional quando se fala sobre restauro de florestas azuis. Trata-se do Biomares, projecto que visou preservar e recuperar a biodiversidade do Parque Marinho Luiz Saldanha, área marinha protegida que integra o Parque Natural da Arrábida, em Setúbal.

Implementada em 2007, a iniciativa, que era financiada em grande parte pelo projecto LIFE, da União Europeia, não foi criada apenas para devolver as pradarias àquela área marinha protegida. Mas também o fez, porque, segundo Ester Serrão, as ervas da espécie Zostera marina haviam, ao longo dos anos anteriores, praticamente desaparecido do habitat, devido a factores como práticas pesqueiras destrutivas.

A bióloga lembra que foram realizados vários “tratamentos experimentais”. Uma das estratégias passou por “plantar pedacinhos pequenos de pradaria”, distribuídos por um território relativamente vasto. Outra foi, cobrindo uma área menos extensa, “plantar tudo junto”, criando “manchas grandes”.

Foto
A bióloga Ester Serrão Ester Serrão

As manchas resistiram a tempestades e herbívoros, enquanto os tais “pedacinhos pequenos de pradaria”, embora também tenham crescido, mostraram-se mais vulneráveis a correntes marítimas e a peixes como salemas (Sarpa salpa), que quase só se alimentam de plantas aquáticas. “É o efeito de massa crítica”, comenta Ester Serrão, para quem a experiência permitiu perceber que, quando se começa a restaurar uma pradaria, é preciso “plantar bastante no mesmo espaço desde o início, de modo a que aquele ecossistema se torne resiliente”.​

Falando sobre o porquê de algumas iniciativas de restauro fracassarem, Rui Santos, que, como Ester Serrão, é investigador do CCMar — e que está a coordenar um projecto de restauro na ria Formosa —, acaba por ir ao encontro da tese defendida pela sua colega. “Quando as ervas marinhas estão saudáveis e em áreas muito grandes, resistem naturalmente a uma tempestade, por exemplo. Mas se falamos de uma área pequena que está a ser restaurada, um fenómeno meteorológico extremo pode anular todo o esforço de replantação”, afirma.

Foto
O investigador Rui Santos Nuno Ferreira Santos

“Quando iniciamos um projecto de restauro, estamos a introduzir plantas marinhas num local onde não estão presentes no momento. Se, numa fase inicial, há poucas ervas, existe o risco de os herbívoros, que são muito mais numerosos, comerem as plantas todas”, diz, continuando a dar razão a Ester Serrão.

Projectos muito curtos e monitorização insuficiente

Outro problema que leva a que alguns projectos não consigam bons resultados: tem de haver um grande esforço de monitorização e nem sempre existe um investimento nesse sentido, diz Bernardo Duarte, investigador do Centro de Ciências do Mar e do Ambiente (Mare) da Faculdade de Ciências de Lisboa.

Explicando que a replantação de uma pradaria envolve o transplante de ervas adultas ou, então, a deposição de sementes no fundo marinho, o especialista em ecotoxicologia observa que o ecossistema é sempre frágil durante o início do restauro. “Quando usamos sementes, as plantas são muito jovens. Quando transplantamos ervas adultas, estamos a mudar o seu habitat, o que pode causar stress. De qualquer modo, o ecossistema é vulnerável. Assim sendo, a zona tem de ser gerida de forma a que possamos reduzir as pressões ao máximo”, refere.​

Foto
Ria Formosa, onde decorre um projecto de restauro de pradarias marinhas (e protecção de cavalos-marinhos) Rui Santos

O investigador do Mare sugere que a ineficácia de replantações passadas deveu-se ao facto de, após o restauro e devido a uma gestão insuficiente, terem ressurgido os factores que haviam levado ao desaparecimento original das pradarias. E um projecto de restauro não pode começar sem que exista a certeza de que as causas do declínio já não são um problema no território a reabilitar.

Bernardo Duarte também é crítico da curta duração dos projectos de restauro em Portugal. “Em 2009, estive na Alemanha numa conferência sobre reabilitação de ecossistemas. Lá, não havia projectos com menos de dez anos. Aqui, se chegarem aos cinco já é muito”, lamenta.

Foto
Bernardo Duarte, especialista em ecotoxicologia DR

Voltando ao Biomares, Ester Serrão lembra que, durante os primeiros anos, o crescimento das ervas foi notório. Mas o Inverno de 2010 para 2011, marcado por tempestades extremas, foi uma “lástima”. “Se só tivéssemos monitorizado o crescimento das plantas durante três anos, teríamos declarado o projecto um sucesso total. Mas a tempestade arrancou tudo — ficaram só as ervas maiores. Tivemos de começar do zero.”

​A equipa voltou a depositar as sementes no fundo marinho e a replantação compensou. “Todos os anos, a mancha da pradaria aumenta”, garante a bióloga, dizendo que, embora o projecto já não tenha os fundos europeus de que dispôs no início, continua a haver uma monitorização, financiada pela cimenteira Secil, que detém pedreiras no Parque Natural da Arrábida.

Foto
Pradaria do Parque Marinho Luiz Saldanha antes de a espécie Zostera noltii ter quase desaparecido do território Ester Serrão
Foto
Pradaria do Parque Marinho Luiz Saldanha após o restauro Ester Serrão

O restauro importa, mas não faz magia

Rui Santos considera o Biomares “talvez o projecto mais emblemático” em Portugal, mas, como os restantes especialistas ouvidos pelo PÚBLICO, afirma também que não há muitos casos de sucesso no país. “É preciso conhecer-se bem o ecossistema que será restaurado e, muitas vezes, isso não acontece”, diz, alertando que nem sempre é fácil detectar os factores responsáveis pelo desaparecimento de uma floresta azul — bem como nem sempre é fácil travar a sua ressurgência quando são detectados.

O investigador diz que o projecto que está a coordenar na ria Formosa tem corrido bem, mas frisa também que a sua escala é pequena. Lembra ainda que a iniciativa foi implementada para proteger a população de cavalos-marinhos na ria, que devido à poluição, à diminuição de pradarias — o habitat dos cavalos-marinhos — e, possivelmente, à pesca ilegal, sofrera uma redução drástica. O que quer isto dizer? As ervas marinhas estão a ser replantadas num local que “está actualmente interdito a actividades pesqueiras”, diz Rui Santos. As condições são, portanto, “excepcionais” — e favoráveis.​

Foto
Pradaria intertidal (isto é, passível de ser avistada à superfície quando a maré está baixa) na ria Formosa Rui Santos

Argumentando que o restauro não pode substituir a conservação das pradarias que andam a sequestrar dióxido de carbono (CO2) “há milénios”, Ester Serrão considera as iniciativas de replantação importantes, mas diz que não se pode pensar que elas mitigarão por magia as alterações climáticas. “As empresas que querem compensar o CO2 que emitem, pois querem obter os seus créditos de carbono, pensam que se investirem em projectos de restauro os resultados serão imediatos. Mas as pradarias não sequestram carbono como as florestas terrestres. No caso das florestas terrestres, o carbono fica retido nas folhas e no tronco das árvores. Mas o CO2 que as pradarias absorvem não fica nas plantas. Se ficasse, era libertado novamente sempre que elas fossem comidas por herbívoros”, explica.

O carbono vai-se acumulando no fundo do mar, onde há pouco oxigénio e, por isso, a matéria orgânica morta — desde as próprias ervas marinhas a outros animais aquáticos — não se decompõe (ou decompõe-se pouco). O que quer isto dizer? O CO2 que se encontra no fundo marinho anda a ser armazenado há milhares de anos. É por isso que falamos das pradarias como grandes sequestradoras. Não é por sugarem magicamente o muito CO2 que emitimos, porque isso não acontece.

PÚBLICO -
Aumentar

A “curiosa” pradaria no estuário do Tejo

Falando do facto de as pradarias começarem a exibir sinais de recuperação na Europa, Ricardo Melo, investigador do Mare na Faculdade de Ciências de Lisboa), lembra “uma história curiosa” ocorrida no estuário do Tejo (Lisboa), onde existe há anos uma pradaria que em 1984 cobria uma área de 35 hectares. Esse ecossistema sofreu, em termos de cobertura, uma redução drástica em 1995, ano em que se iniciou a construção da Ponte Vasco da Gama, mas recuperou imenso desde então. Em 2019, a mancha verde media mais de 67 hectares.

Foto
O investigador Ricardo Melo

Explicações? Ainda não há muitas. Sabe-se que, quando encontra as condições ideais, a erva marinha da espécie Zostera noltii, que é a que está presente na pradaria, consegue espalhar-se com alguma rapidez. Mas ainda não se sabe que condições ideais são essas.​

Foto
Estuário do Tejo Ricardo Melo

De qualquer modo, defende Ricardo Melo, isto diz que “temos de ter muito cuidado com afirmações generalizadas”. “Há uns anos, havia uma doutrina de que as pradarias estariam em regressão. Agora, começamos a ver que, em determinadas zonas do globo, isso já não será verdade”, diz o investigador, que, no âmbito de um estudo que ainda não foi tornado público, ajudou a compilar os dados existentes sobre as ervas marinhas no estuário do Tejo. O biólogo marinho ainda não pode desvendar muito a cortina, mas diz que “está a verificar-se um crescimento muito grande”. Refere igualmente que também não se têm encontrado “quaisquer vestígios de regressão” no estuário do Sado, onde existe a Ocean Alive, organização criada pela bióloga Raquel Gaspar que visa proteger as pradarias marinhas dessa região.