A guerra da sopa: UNESCO elege borscht ucraniano como património em perigo. “Nazismo”, acusa a Rússia

Caldo (mais) entornado. Ucrânia celebra a “vitória”, Rússia condena-a como “nazismo”. A cultura ucraniana do prato, reivindicado pela Rússia como seu e parte da tradição de muitos países vizinhos, entrou para a lista da UNESCO do Património Cultural Imaterial em perigo. A inscrição “não implica nem exclusividade nem propriedade” do borsch, sublinha aquele organismo.

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“A população já não é capaz de preparar ou mesmo cultivar os vegetais locais que são necessários para preparar o borschtTeresa Pacheco Miranda

Beterraba, couve, batata, tomate, carne e nata azeda são alguns dos ingredientes desta nova arma da guerra. A cultura de preparação do borscht ucraniano foi inscrita esta sexta-feira na Lista de Património Cultural Imaterial que Necessita de Salvaguarda Urgente da UNESCO. A decisão do Comité Intergovernamental para a Salvaguarda do Património Cultural Intangível foi anunciada por aquele organismo, sendo que o comité é composto por representantes dos Estados signatários da Convenção da UNESCO.

“O borscht ucraniano – versão nacional do borscht ou sopa de beterraba que se consome em vários países da região – é parte integrante da vida familiar e comunitária da Ucrânia”, destaca-se no comunicado. “Dedicam-lhe festivais e eventos culturais”, sublinha-se, referindo que “em 2020, foi incluída na Lista Nacional do Património Cultural Imaterial da Ucrânia e estava previsto que fosse considerada para inscrição na Lista Representativa no ciclo de 2023 do Comité”. A “guerra em curso e o seu impacto negativo nesta tradição” é o motivo do aceleramento do processo, tendo a Ucrânia pedido aos Estados membros do comité que “acelerassem a análise” da candidatura da sopa.

Na nota de imprensa, indica-se que a decisão agora tomada “complementa a acção da UNESCO” em relação à Ucrânia. “Desde o começo da guerra”, assinala-se, a organização “deu seguimento a uma série de medidas de emergência nos âmbitos da cultura e educação, tal como na protecção de jornalistas”. “De acordo com o mandato da UNESCO”, sublinha-se.

A candidatura ucraniana do borscht é, assinale-se, anterior ao início da invasão russa: foi enviada em 2021, mas em Abril foi feito novo pedido para inclusão no património em perigo. A decisão da UNESCO foi recebida com alegria na Ucrânia e como uma vitória, mesmo que simbólica, na(s) guerra(s) com a Rússia. “A Ucrânia ganhará a guerra do borscht, bem como esta guerra”, comentou o ministro da cultura ucraniano, Oleksandr Tkatchenko. Basta atentar nas hashtags usadas pela vice-ministra dos Negócios Estrangeiros da Ucrânia, Emine Dzheppar, numa publicação no seu Facebook, para perceber o sentimento generalizado por aqui: #Victory #UNESCO #Borscht.​​

Já a Rússia, como se esperava, tem palavras duras polvilhadas de sarcasmo para comentar o acontecimento. "Poderia ser algo comum, em que cada cidade, cada região, cada dona de casa preparasse à sua maneira, mas eles [ucranianos] não se quiseram comprometer, e isso é xenofobia, nazismo, extremismo em todas as suas formas”, criticou a porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros russa, Maria Zakharova, citada pela Lusa.

“Húmus e arroz pilaf são reconhecidos como pratos nacionais de vários países”, continuou Zakharova, “mas a ‘ucranização’ aplica-se a tudo. O que será a seguir? Os porcos serão reconhecidos como produto nacional ucraniano?”, ironizou Zakharova na rede social Telegram.

Feita de beterraba e carne, borscht é uma sopa tradicional normalmente servida com pão simples ou de alho, amplamente consumida na Ucrânia, mas também na Rússia.

Justificando a decisão da UNESCO, o representante da comissão de avaliação do dossier ucraniano, Pier Luigi Petrillo, disse que “não é a existência em si desta sopa que está em perigo, mas é o património humano e vivo associado ao borscht que está em perigo imediato, dado que a capacidade das populações de praticar e transmitir o seu património cultural intangível está seriamente perturbada devido ao conflito armado, em particular com a deslocação forçada de comunidades”.

“A população já não é capaz de preparar ou mesmo cultivar os vegetais locais que são necessários para preparar o borscht”, comentou ainda Petrillo, acrescentando: “Nem sequer se podem reunir para praticar a preparação do borscht, o que põe em causa os aspectos sociais e culturais. Como tal, a transmissão deste elemento está em risco”.

A inscrição na lista do património em perigo e que exige medidas urgentes de salvaguarda “ajuda as partes interessadas”, explica a UNESCO, a “mobilizar a cooperação e a assistência internacionais para elaborar e levar a cabo um plano de acção de salvaguarda específico.

No comunicado oficial da UNESCO, ressalve-se, nunca é referida a Rússia. A dado passo, recorda-se, inclusive, que a “inscrição de um elemento” nesta lista “não implica nem exclusividade nem propriedade” do “património em questão”, neste caso do borscht.

O dossier de candidatura do caldo defende que há registo de uma primeira referência ao borscht em 1548 na Ucrânia, perto de Kiev, escrita por um viajante, um homem de negócios alemão, que viajava de Lvov, via Kiev, para Moscovo. A 17 de Outubro daquele ano, o viajante de seu nome Gruneveg registou no seu diário o borscht que comeu junto ao rio... rio Borshchivka, que será o actualmente chamado rio Borshchagovka, que deu nome à periferia ocidental de Kiev.​ Para a Ucrânia, terão sido os emigrantes ucranianos a espalhar a sopa pelo mundo. Esta informação, aliás, consta num dos artigos em destaque numa revista do Turismo da Ucrânia, a YT, datada de 2021 e distribuída na última FIL em Lisboa, em Março passado, onde o país foi convidado especial (já em tempo de guerra). “Não daremos o Borscht a ninguém” é o título do artigo.​

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