O que é preciso para vivermos em harmonia com a natureza? “Dinheiro”, dizem eles

Está em curso a elaboração do documento para a Agenda Global para a Biodiversidade pós-2020. Mas ainda não é certo que a agenda seja ambiciosa, revelou uma sessão paralela da Conferência dos Oceanos.

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Desde a década de 1970 que se verifica um declínio das populações de muitos vertebrados a nível mundial Nicolau Botequilha/Público

A cerca de cinco meses da 15ª Conferência das Partes (COP15) da Convenção da Diversidade Biológica (CDB), Elizabeth Mrema, a secretária-executiva da COP, está preocupada com a evolução do documento que vai ser assinado em Dezembro, no Canadá, para a protecção da biodiversidade. “O progresso ainda está muito lento”, disse na tarde desta quarta-feira, em Lisboa, numa sessão paralela da Conferência dos Oceanos.

O encontro tinha como objectivo tecer ligações entre o Objectivo de Desenvolvimento Sustentável 14, sobre a conservação e o uso sustentável dos oceanos, definido pela Assembleia Geral das Nações Unidas, e que atravessa estes cinco dias de conferência, e a Agenda Global para a Biodiversidade Pós-2020, que decidirá as metas a atingir até 2030, para que a humanidade chegue a meio do século a “viver em harmonia com a natureza”.

Segundo o relatório Planeta Vivo, publicado em 2020 pela WWF - World Wide Fund for Nature, houve um declínio médio de 68% das populações globais de mamíferos, pássaros, anfíbios, répteis e peixes, entre 1970 e 2016. “Necessitamos de andar para a frente para obter uma agenda tangível, realista, transformadora. Querem uma agenda realmente ambiciosa ou uma que não altere grande coisa? É isso que nós queremos para os nossos filhos e netos?”, questionou a responsável, da Tanzânia, dirigindo-se à plateia.

As palavras duras reflectiam o que se passou na semana passada em Nairobi, no Quénia, durante o encontro do grupo de trabalho para aquela agenda global, onde delegados de vários países discutiram o rascunho do documento que estará em análise na COP-15. “Há parênteses rectos, há áreas de divergência e só temos cinco meses para atingir a agenda”, referiu Elizabeth Mrema. Nos rascunhos, as palavras que estão dentro de parênteses rectos não têm o acordo de todos os países e por isso travam a finalização do documento.

Este impasse tem que ver, antes de tudo, com o financiamento. “Os países querem ter a certeza que haverá recursos adequados para a implementação da agenda”, explicou Elizabeth Mrema ao PÚBLICO. “Há também a questão da informação sequenciada digitalmente para os recursos genéticos, os países querem se assegurar que se providenciarem essas informações, então há acesso adequado.”

No pano de fundo está ainda a frustração dos resultados do Plano Estratégico para a Biodiversidade 2011-2020, onde se definiram as 20 metas de Aichi. Adoptado em 2010, na 10ª COP, no Japão, este plano tinha vários objectivos relativos à biodiversidade, a grande maioria para serem cumpridos até 2020.

As metas tinham um espectro amplo, desde informar a população da importância da biodiversidade, passando por diminuir a perda de todos os habitat naturais, manter a diversidade genética das plantas e dos animais cultivados, aumentar a resiliência dos ecossistemas e tornar o conhecimento dos povos indígenas relevante para a conservação e o uso sustentável da biodiversidade, entre tantos outros. No entanto, chegados a 2020, a maioria dos objectivos não foram cumpridos.

Houve algumas razões para este desfecho. “Muitos países começaram primeiro por desenvolver estratégias nacionais e planos de acção para a biodiversidade, e esse processo demorou três a quatro anos”, justificou Elizabeth Mrema. Por outro lado, “são necessários mais recursos”. Mas houve também uma questão problemática sobre a ausência na mesa de negociações das comunidades locais, dos povos indígenas, das mulheres e dos jovens.

Para a responsável, houve uma mudança significativa desde então. “Desta vez, é uma agenda para todos porque todas as partes foram envolvidas. É isto que queremos ver, porque quando chega ao momento de executar, não basta o que se passa a nível das políticas, tem que chegar ao terreno”, assegurou Elizabeth Mrema.

Também as instituições financeiras e as empresas foram agora trazidas para a discussão. Cerca de metade do produto interno bruto (PIB) mundial está completamente ou parcialmente dependente da natureza, relembra a responsável. Este é um forte argumento para que aquelas entidades reflictam sobre o seu papel na perda de biodiversidade e alterem as suas práticas. Um dos objectivos é que “redireccionem subsídios prejudiciais para subsídios positivos para a natureza”, exemplificou Elizabeth Mrema.

Viciados em petróleo

Mas há vários factores a ter em conta para que a agenda esteja à altura do desafio. Um deles são as próprias alterações climáticas, que também pressionam os ecossistemas.

“Somos viciados na indústria do petróleo. Essa é a Némesis, que origina o declínio da biodiversidade dos oceanos”, denunciou por sua vez Peter Thomson, das ilhas Fiji, enviado especial das Nações Unidas para os Oceanos, recordando o pedido de desculpas que António Guterres, secretário-geral das Nações Unidas, fez aos jovens, no último domingo, na praia de Carcavelos, pelo mundo que as próximas gerações vão herdar. “Eu rejeito esse futuro para as minhas quatro netas”, acrescentou agora Peter Thomson, pedindo aos países para elaborarem uma agenda forte para a biodiversidade e acrescentando que “não podemos actuar sem dinheiro”.

Já Carlos Manuel Rodriguez, ex-ministro do ambiente e da energia da Costa Rica e director-executivo do Fundo Mundial para o Ambiente, que serve de mecanismo financeiro para várias convenções ambientais, defendeu na sessão que os ecossistemas e a biodiversidade reagem de uma forma rápida quando são protegidos por políticas de conservação, mas exigem financiamentos positivos, que ajudem a natureza a prosperar.

Além disso, Rodriguez denunciou a incoerência política depois do que viu em Nairobi e, agora, o que vê Lisboa: “Os delegados [dos países em Nairobi] não falaram dos 30% [de áreas conservadas até 2030] e estão a colocar parênteses rectos no rascunho, enquanto os ministros aqui na conferência falam das metas de 30%.”