Nunca comemos tantos animais vindos da água, diz relatório da FAO
Aquacultura aumentou a produção de alimentos para 214 milhões de toneladas, indica o mais recente relatório da FAO, a agência das Nações Unidas para a alimentação. O sector é visto como “uma poderosa solução” para combater a fome, mas uma “transformação azul” é necessária.
A aquacultura está em expansão e registou uma produção recorde de alimentos em meio aquático, revela o mais recente relatório da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO, na sigla em inglês), divulgado esta quarta-feira na Conferência dos Oceanos, em Lisboa. O documento revela que, em 2020, o sector aumentou a produção total de produtos de origem aquática para 214 milhões de toneladas. Desse total, 178 milhões de toneladas correspondem a animais aquáticos (peixe, crustáceos e moluscos) e 36 milhões de toneladas de algas.
“Estamos a comer mais comida aquática do que nunca, […] e o relatório Sofia mostra que grande parte deste crescimento vem da aquacultura”, afirmou Qu Dongyu, director-geral da FAO, durante a apresentação da publicação The State of World Fisheries and Aquaculture (conhecida apenas como Sofia).
Qu Dongyu vê a aquacultura como uma “poderosa solução” para garantir a alimentação de uma população global em crescimento, ajudando a combater a fome e a subnutrição. Contudo, Dongyu alerta que é preciso abraçar uma “transformação azul”, tornando as actividades ligadas ao oceano mais sustentáveis e inclusivas.
A aquacultura cresceu mais rapidamente do que a pesca de captura desde o início da pandemia – e a FAO prevê que continue a singrar na próxima década, estimando um crescimento de 15% até 2030. Segundo a FAO, a redução da produção pesqueira deveu-se sobretudo à crise sanitária. A venda global de produtos dos dois sectores gerou 362 mil milhões de euros, dois quais 236 mil milhões são oriundos da aquacultura.
O desenvolvimento destes dois sectores é visto como um instrumento importante para aliviar a subnutrição e a insegurança alimentar – problemas que, com a eclosão da guerra na Ucrânia, se tornaram ainda mais complexos. Tanto a Rússia como o país invadido são líderes na produção de cereais; o conflito condicionou não só o transporte e a exportação de grãos e produtos derivados como também o preço dos mesmos.
A ingestão mundial de alimentos oriundos da água doce ou salgada (excepto algas) cresceu a uma taxa média anual de 3% desde 1961. Segundo o relatório, este valor é quase o dobro do crescimento anual da população global. Chegamos hoje a um perfil de consumo por ano superior a 20 quilos per capita, quando nos anos 60 estávamos abaixo da fasquia dos 10 quilos por pessoa.
Transformação azul
“A produção de animais aquáticos em 2020 foi 30% superior à média dos anos 2000 e mais de 60% acima da média dos anos 90. A produção aquícola recorde de 87,5 milhões de toneladas de animais aquáticos contribuiu, em grande parte, para estes resultados”, refere a nota de imprensa divulgada pela FAO. A Ásia continua a ser campeã mundial na produção de animais aquáticos, com a China a liderar o sector pesqueiro, seguida pela Indonésia e pelo Peru.
Em 2020, um ano marcado pela pandemia e pela retracção de quase todas as actividades, mais de 157 toneladas foram utilizadas para consumo humano – um valor ligeiramente maior do que o registado em 2018. Manuel Barange, director da FAO para a área das pescas e da aquacultura, considera um aumento positivo tendo em conta o impacte da Covid-19. E sublinhou na apresentação como estas actividades revelam não apenas um crescimento, mas também mais diversidade (o sector abrange 3175 espécies) e eficiência (aumento do consumo humano directo). “Isto já é uma forma de transformação azul”, concluiu Barange.
Manuel Barange define “transformação azul” como “um processo orientado por objectivos através do qual os membros e parceiros da FAO podem maximizar a contribuição dos sistemas alimentares aquáticos para aumentar a segurança alimentar, nutrição e dietas saudáveis a preços acessíveis, mantendo-se simultaneamente dentro dos limites ecológicos”.
A sessão de apresentação no Altice Arena, em Lisboa, deu voz a um painel de oradores, incluindo Margaret Nakato, coordenadora da Katosi Women Development Trust, uma organização no Uganda que apoia mulheres pescadoras. Nakato lembrou que a chamada “transformação azul” não pode ser levada a cabo sem “uma abordagem focada nos direitos humanos”, nem deve esquecer as pequenas comunidades piscatórias, que têm sido prejudicadas por actividades em escala industrial no sector. “Continuamos a denunciar a destruição do ambiente trazida pela transformação azul”, afirmou Nakato, “Vamos trazer as pequenas comunidades piscatórias para este processo também”, pediu.
Estratégia para as algas
A expansão da aquacultura é uma tendência que a FAO aplaude, mas avisa que são necessárias grandes transformações no sector. O objectivo é que este sector, assim como o da pesca, possa cumprir a missão de alimentar uma população cada vez maior sem deixar pelo caminho um rasto de destruição ambiental e injustiça social. “Não podemos deixar ninguém para trás”, afirmou Qu Dongyu durante a apresentação do relatório Sofia, feita pela primeira vez fora da sede da FAO, em Roma. Dongyu acredita que há muito esforço a ser feito para transformar os sistemas agro-alimentares, assegurando que são produzidos de um modo sustentável, sem prejudicar os meios de subsistência de pequenas comunidades piscatórias ou degradar ecossistemas aquáticos.
Os 36 milhões de toneladas de algas produzidas em 2020 também constituem um recorde. O ingrediente comum em muitas refeições asiáticas tende a globalizar-se, uma vez que começa a ser promovido como uma alternativa às proteínas animais, em particular a carne de vaca. A Comissão Europeia, por exemplo, quer fomentar o cultivo, o consumo e o uso inovador das algas. Este ano, Bruxelas avança com uma “estratégia para as algas”, por forma a apoiar o sector.