Mais uma vez, o que acontece do outro lado do Atlântico, nos Estados Unidos, anima conversas e debates também deste lado. O Supremo Tribunal norte-americano revogou o histórico veredicto Roe vs Wade e abriu a porta à proibição do aborto em vários estados americanos. Aqui fica uma breve explicação do que foi decidido, o que significa, e que consequências práticas e políticas vai ter ao longo dos próximos meses e anos. Não é coisa pouca.
Primeiro, o que é Roe vs Wade?
É o nome de um caso judicial que o Supremo Tribunal dos EUA analisou em 1973, e a partir do qual, interpretando a Constituição dos EUA, declarou que a lei permitia a uma mulher interromper voluntariamente uma gravidez durante o primeiro trimestre, bem no segundo em caso de risco de vida para a mãe. O caso que deu base a essa interpretação opunha uma mãe de dois filhos, que queria interromper a sua terceira gravidez, ao estado do Texas, onde vivia, e onde o aborto era apenas permitido em caso de risco de vida da mãe em qualquer trimestre.
Essa decisão do Supremo, votada favoravelmente por sete juízes e contestada por outros dois, abriu caminho a quase 50 anos de acesso legal ao aborto nos Estados Unidos. Isto apesar de muitos dos 50 estados americanos terem podido continuar a aplicar muitas restrições e obstáculos, incluindo através do corte de financiamento a clínicas onde era feita interrupção voluntária da gravidez (IVG).
O que é que mudou agora?
Um desses estados onde foram sendo colocados graves obstáculos ao acesso ao aborto era o Mississípi, onde restava apenas uma clínica onde se fazia a IVG. Essa organização, a Jackson Women’s Health Organization (JWHO), contestou nos tribunais uma lei estadual de 2018 que proibia o aborto a partir das 15 semanas, sem qualquer excepção em casos de violação ou incesto. A JWHO viu a justiça dar-lhe razão inicialmente, mas o estado do Mississípi decidiu recorrer para o Supremo Tribunal dos EUA, onde, desta vez, seis juízes consideraram que sim, que à luz da Constituição dos EUA cabe a cada estado decidir sobre a legalização ou proibição do aborto nos termos em que entender.
Porque é que o mesmo tribunal decidiu de forma diferente?
Porque a composição do Supremo Tribunal dos EUA é hoje bastante diferente da de 1973, reflectindo um reforço do poder do Partido Republicano, que é maioritariamente anti-aborto. O Supremo, que tem uma função semelhante à do Tribunal Constitucional em Portugal e verifica se uma lei ou juízo obedece à Constituição, é composto por nove juízes com mandato vitalício.
Ora, durante os quatro anos em que Donald Trump esteve na Presidência dos EUA (2016-2020), os republicanos tiveram três vagas no Supremo para ocupar: duas por morte de juiz (Antonin Scalia e Ruth Bader Ginsburg) e uma após Anthony Kennedy ter decidido reformar-se. Não existindo nenhuma lei, nem nenhum "acordo de cavalheiros" para tentar manter um certo equilíbrio entre juízes de tendência mais progressista e juízes mais conservadores, os republicanos puderam nomear três juízes com um conhecido historial de posições anti-aborto: Neil Gorsuch, Brett Kavanaugh e Amy Coney Barrett.
O resultado é que, desde 2020, o Supremo Tribunal dos EUA tem uma maioria e uma orientação bastante conservadora. E foi este Supremo que avaliou o caso do Mississípi, fazendo uma leitura contrária à do caso Roe vs Wade. De resto, os três votos contra foram os dos três únicos juízes de tendência mais progressista.
O que é que isto significa na prática?
O reforço do Partido Republicano, como explica o jornalista Alexandre Martins no podcast P24, do Ruben Martins, também foi acontecendo ao longo da última década em muitos dos 50 estados norte-americanos onde detêm o cargo de governador e maiorias nas assembleias e nos senados estaduais. A partir do momento em que o Supremo passa a decisão sobre o aborto para cada um dos estados, os republicanos ficam em posição de implementar rapidamente as proibições ou restrições que desejavam. Treze destes estados já tinham leis preparadas para entrar em vigor de forma praticamente automática, caso o Supremo revertesse Roe vs Wade: é o caso do Missouri, o Arcansas e o Dacota do Sul, onde o aborto já é proibido (salvo algumas excepções) desde sexta-feira, o dia da decisão. Deverão seguir-se estados como o Texas, o Mississípi ou o Oklahoma.
De uma forma geral, trata-se dos chamados red states, os estados do Centro e do Sul dos EUA onde os republicanos tendem a vencer eleições. Aqui, e com pequenas diferenças entre a lei de cada estado, o aborto passa a ser proibido. Todos prevêm uma excepção em caso de risco de vida para mãe, mas nem todos admitem uma excepção em caso de violação, incesto ou malformação do feto. Segundo as contas do New York Times, em causa estão cerca de 25 milhões de mulheres em idade fértil em 20 estados.
E nos chamados blue states?
Tudo igual, pelo menos para já. No Nordeste (incluindo Nova Iorque) e na Costa Oeste (incluindo a Califórnia), mantém-se o direito à interrupção voluntária da gravidez. Cava-se assim um fosso cada vez maior entre duas Américas: uma de tendência conservadora e outra progressista, cada uma com valores e leis cada vez mais distintas.
E onde está Joe Biden no meio disto? E o que pode ser feito para reverter a situação?
O Presidente dos EUA, o democrata Joe Biden, diz que a única solução para garantir o direito ao aborto a nível nacional é transformar Roe vs Wade numa lei nacional, o que cabe ao Congresso (o parlamento americano, dividido entre a Câmara dos Representantes e o Senado). A questão é que os Estados Unidos vão a votos em Novembro para eleger parte do Congresso, e as sondagens sugerem, de momento, que os republicanos podem obter maiorias na Câmara dos Representantes e até no Senado, apesar de o Partido Democrata estar a tentar mobilizar o seu eleitorado desde o anúncio da decisão do Supremo. O tema dominará estas eleições intercalares.
Em todo o caso, o assunto não ficará resolvido em Novembro. Deveremos assistir a uma longa disputa, de vários anos, que pode ter desfechos completamente diferentes. Se os republicanos voltarem a reconquistar a Casa Branca num cenário de dupla maioria no Congresso, não está posta de parte a hipótese de uma proibição do aborto a nível nacional. Do lado dos democratas, será preciso lutar por maiorias nacionais e estaduais, ou esperar pela sua oportunidade de fazer nomeações para o Supremo. Esperar, ou então criar essa oportunidade: há apelos para que se aumente o número de lugares no Supremo, tal como também há quem defenda o mesmo no Senado (transformando Porto Rico e o Distrito de Colúmbia em estados), o que de momento favorecia o Partido Democrata. Mas estes são cenários pouco prováveis.
Mas os americanos são mesmo contra o aborto?
Não necessariamente. É importante não cair em generalizações, porque aqui acontece o mesmo que observamos no debate do controlo das armas nos Estados Unidos. Tal como uma maioria dos norte-americanos é favorável a um maior controlo da venda de armas (a que o Partido Republicano se opõe), também uma ligeira maioria dos americanos é favorável à legalização da interrupção voluntária da gravidez (a que o Partido Republicano também se opõe). No fim-de-semana, uma sondagem da YouGov para a televisão CBS indicava que 52% dos americanos inquiridos considerava a decisão do Supremo um retrocesso para o país e que apenas 31% considerava o veredicto um avanço (17% tinham uma opinião neutra, ou não tinham opinião formada). Os números estão mais ou menos em linha com as sondagens feitas ao longo das últimas décadas, onde os campos "pró-vida" e "pró-escolha" estão praticamente empatados, mas com uma ligeira vantagem para este último.
Mais perguntas e respostas sobre este tema nas leituras recomendadas no final desta newsletter. Boa semana!