Mário Ruivo, um sonhador pragmático que nos devolveu o oceano
Agora que se fala tanto de oceano por causa da conferência das Nações Unidas em Lisboa, vale a pena percorrer o legado de Mário Ruivo – biólogo, oceanógrafo, político do oceano. À frente do seu tempo, mostrou-nos a todos a centralidade que o oceano tem no planeta. “Era uma pessoa, além de muito activa, activista. Sempre foi, até ao fim”, diz Maria Eduarda Gonçalves.
Há quase 28 anos, a 14 de Novembro de 1994, Lisboa recebia uma grande conferência internacional sobre o oceano, por influência de Mário Ruivo. O oceanógrafo foi o impulsionador desse encontro sob a alçada das Nações Unidas, em concreto da Comissão Oceanográfica Intergovernamental (COI) da UNESCO. O palco da conferência era o Centro Cultural de Belém e Mário Soares, Presidente da República, abria a sessão solene. A Mário Ruivo, a quem coube dar as boas-vindas e presidir à conferência, encontrá-lo-íamos todos os dias por lá.
Os dois Mários, como lhes chama Maria Eduarda Gonçalves, jurista e viúva de Mário Ruivo (1927-2017), e que tinham uma relação de amizade já dos tempos da oposição à ditadura, iniciavam ali uma faceta pública conjunta de defesa do oceano. Razões para uma conversa com Maria Eduarda Gonçalves – que participou nas negociações para a Lei do Mar da ONU na delegação portuguesa chefiada por Mário Ruivo, entre 1974 e 1978 – a propósito da nova conferência sobre o oceano em Lisboa, de 27 de Junho a 1 de Julho.
Para Maria Eduarda Gonçalves, professora catedrática do Iscte – Instituto Universitário de Lisboa, a nova conferência das Nações Unidas do oceano é uma manifestação viva do legado de Mário Ruivo. É por aqui que começámos. Contudo, esta conversa de três horas e meia com quem conviveu mais de 40 anos com Mário Ruivo conduziu-nos a muitos lugares, pessoas, episódios, memórias e à história do direito do mar, entrelaçada com as Nações Unidas.
Se algumas facetas da vida de Mário Ruivo são conhecidas do grande público e se encontram em textos – em particular a do oceanógrafo em defesa do oceano –, a outras o tempo deixou-as mais reservadas a certos círculos, nomeadamente aos da luta contra a ditadura de António de Oliveira Salazar, que terminaria com o 25 de Abril de 1974. Quem o conheceu, lembrar-se-á também de o ver sempre vestido de verde seco. “O argumento que dava é que, assim, era mais fácil acertar as cores. Ele brincava: ‘Pois é, continuo verde, não cresço’”, conta-nos Maria Eduarda Gonçalves.
“Não posso deixar de fazer um salto até aos dias de hoje e até esta conferência. Existe como parte do legado do Mário Ruivo”, destaca Maria Eduarda Gonçalves, recordando que a iniciativa de sugerir às Nações Unidas que Lisboa fosse o local da nova reunião foi conduzida pelo anterior ministro do Mar, Ricardo Serrão Santos. “Não é por acaso que esta conferência se realiza aqui, onde houve toda uma acção antecedente – onde se realizou a Expo-98, onde foi sediada a Comissão Mundial Independente dos Oceanos [CMIO], na Fundação Mário Soares, e não esquecer o Ano Internacional dos Oceanos, aprovado em 1998 por proposta de Portugal nas Nações Unidas, por influência do Mário Ruivo. A CMIO foi uma iniciativa que contribuiu, há umas décadas, para a centralidade de Portugal no contexto internacional do oceano”, salienta ainda.
O encontro dos dois Mários
Damos agora nós um salto ao passado, em busca de Mário Ruivo. Nasceu no Alentejo, em Campo Maior, a 3 de Março de 1927. A profissão do pai, João Pedro Ruivo, funcionário público das Finanças (e republicano, tal como o seu avô Pedro Daniel Ruivo), levá-lo-ia a Borba, Évora e Lisboa. Os filhos de João Pedro Ruivo – além de Mário, o pintor e escultor Henrique Ruivo e a socióloga da ciência Beatriz Ruivo – seguiram-lhe o percurso.
“Quando o Mário Ruivo vem para Lisboa, aos 17 anos, para a Faculdade de Ciências – por escolha própria, tinha despertado para o interesse da biologia – é preso, com 20 anos, no Aljube com Mário Soares, em 1947”, conta Maria Eduarda Gonçalves. Já participava no Movimento de Unidade Democrática (MUD), organização política de oposição ao regime salazarista. É no MUD Juvenil que conhece Mário Soares e é aí que começa a amizade entre ambos. “Chegou a ser dirigente muito activo do MUD Juvenil nessa fase. Ficou registado na polícia política como potencialmente perigoso. Por causa da sua actividade política, não havia informação favorável da PIDE para fazer uma carreira académica.”
Do Alentejo traz já uma consciência social e política. “A sociedade portuguesa era paupérrima. O Mário falava de marchas de mulheres com fome, no Alentejo. Desde cedo se sensibilizou com os problemas sociais e a evolução do regime”, diz. “Era uma pessoa, além de muito activa, activista. Sempre foi, até ao fim.”
Quando termina a licenciatura em Biologia, em 1950, vai para o Sul de França especializar-se em oceanografia biológica e gestão de recursos vivos marinhos, num laboratório que a Universidade de Sorbonne tinha em Banyuls-sur-mer, perto da fronteira com Espanha. Esteve lá de 1951 a 1954. O que o levou a sair do país nessa altura não foram, no entanto, razões políticas, explica Maria Eduarda Gonçalves; foi a carreira científica.
Embora estivesse referenciado pela PIDE, a polícia política, após a especialização em França regressa a Portugal. “Tem o objectivo de voltar. É com essa formação de base que entra depois no Instituto de Biologia Marítima.” Neste instituto, dirigido por Alfredo Magalhães Ramalho, que se notabilizou como oceanógrafo, Mário Ruivo encontra o seu lugar. “Mesmo nos regimes ditatoriais, como era o nosso, há sempre contradições internas: acabou por ingressar no Instituto de Biologia Marítima, que era uma estrutura da Marinha. Chegou a ser subdirector do instituto, o que significava alguma tolerância – o que é curioso –, que não existia na universidade, em relação a uma pessoa que era obviamente oposicionista e militante do Movimento de Unidade Democrática. Parece paradoxal”, diz. “A estrutura sabia quem tinha ali. Mas, inteligentemente, percebia que contar com gente competente lhe era também útil. Foi-se mantendo.”
A abordagem científica das questões da pesca (sector, aliás, importante no Estado Novo) recebe atenção particular do Instituto de Biologia Marítima. Mário Ruivo dedicou-se então a estudos biológicos na área da pesca, da sardinha ao bacalhau. A partir de 1954, ia todos os anos com os bacalhoeiros até à Terra Nova ou à Gronelândia. “Uma das tarefas que lhe foram incumbidas foi passar, como biólogo, um mês e meio na frota do bacalhau. Como havia muito tempo morto dentro do barco, leu toda História da Cultura em Portugal, de António José Saraiva.”
“O homem mais profundo de Portugal”
Em 1956, ainda no Instituto de Biologia Marítima, torna-se o primeiro português a mergulhar a maior profundidade, a bordo de um batíscafo francês. Envolveu-se na organização dessa campanha oceanográfica com o navio NRP Faial (da Marinha Portuguesa) e o batíscafo FNRS III (da Marinha Francesa) no canhão submarino de Setúbal e ao largo do cabo da Roca, em colaboração com cientistas franceses. Entre 8 de Agosto e 20 de Setembro de 1956, o FNRS III realiza seis mergulhos em águas portuguesas, tripulados pelo comandante Georges Houot.
Mário Ruivo participa em dois dos mergulhos – a 4 e a 13 de Setembro –, ao largo do cabo da Roca. Se no seu primeiro mergulho desceu a 500 metros, no segundo, de sete horas e 22 minutos, atinge os 2200 metros de profundidade.
No interior do batíscafo de 26 metros de comprimento e pouco mais de três de largura, Mário Ruivo e Georges Houot seguiam numa cabina esférica em aço de dois metros de diâmetro apenas. Observavam o fundo do mar por uma janela de apenas dez centímetros de diâmetro. O FNRS III, lançado à água em 1953, fará durante sete anos, sob a direcção de Georges Houot, 93 mergulhos, levando cientistas de França, Bélgica, Estados Unidos, Portugal e Japão até ao fundo do mar. Passar-se-ia uma década até novos mergulhos em águas portuguesas, no batíscafo francês Archimède: na Madeira, em 1966, e nos Açores, em 1969.
Naqueles tempos, Mário Ruivo tomava consciência da importância dos fundos marinhos. “Tratou-se de uma tentativa para trazermos os nossos fundos marinhos à atenção da opinião pública”, dizia o oceanógrafo sobre os mergulhos no FNRS III, numa entrevista em 2016 à revista Biblos, da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. O batíscafo era como um dos instrumentos de trabalho postos ao serviço dos oceanógrafos mais recentes e prometedores, dizia ainda Mário Ruivo, citado no catálogo para a exposição Mar Profundo Português, em 2018 em Lisboa. “Ele ria-se quanto falava que era o homem mais profundo de Portugal. Era uma graça dele”, recorda Maria Eduarda Gonçalves.
A par da investigação científica, continuou a manter actividades clandestinas de oposição ao regime fascista, o que acabaria por levá-lo, aí sim, ao exílio, ao ser avisado de que a prisão estava iminente. “O director do Instituto de Biologia Marítima informa o Mário de que corre o risco de ser preso. Ele trabalhou na Seara Nova nos últimos anos 50 – fazia parte da direcção – e estava envolvido noutras actividades cívico-políticas.”
É para Roma que vai, em 1961. Enquanto cientista, já tinha relações com a FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura), cuja sede é naquela cidade. Por isso, torna-se funcionário da FAO, no Departamento de Pescas. “É o risco de não poder fazer qualquer tipo de carreira e a pressão política que o leva à FAO, onde ele ingressa de 61 até 74. É sintomático que, durante 13 anos, só tenha visitado Portugal uma única vez e integrado numa comitiva do director-geral da FAO”, diz-nos Maria Eduarda Gonçalves. “Mas não era uma pessoa que se lamentasse de nada, dava sempre o salto para a frente.”
Na casa de Mário Ruivo em Roma juntavam-se muitos dos opositores à ditadura em Portugal. “Ao longo dos anos 60 e início de 70, o Mário Ruivo era o pólo da oposição em Itália. Ficavam a dormir em casa dele amigos da oposição. Havia lá um quarto, ou um divã, onde ficava a dormir quem passava por Roma. Grandes amigos dele, por exemplo, o Alçada Baptista, quando iam Roma, era em casa do Mário que ficavam”, conta Maria Eduarda Gonçalves. “Era uma pessoa que manteve relações, designadamente nesse período os anos 60, com muita gente. Também era muito amigo do Piteira Santos e do Manuel Alegre, que estavam [exilados] em Argel. Era uma rede Paris-Argel. Fazia o seu trabalho de gestão na área das pescas na FAO, no Departamento de Pescas, mas continuava a sua actividade política”, diz. “Por exemplo, foi ele que organizou em Roma um encontro da Frente Patriótica de Libertação Nacional.”
O político do oceano
O trabalho na FAO, onde na maior parte do tempo foi director da Divisão dos Recursos e Ambiente Aquático do Departamento de Pescas, abriu-lhe ainda mais o mundo. “Enquanto funcionário da FAO, uma boa parte da actividade dele era a assistência técnica a países em desenvolvimento no domínio das pescas. Visitou a América Latina e a América do Sul, uma boa parte da África, a Ásia não tanto, mas viajou muito. Sempre foi uma pessoa muito culta. Este conhecimento das realidades não era só das pescas, porque ele interessava-se pela antropologia e pela cultura dos sítios por onde passava.”
A par das viagens pelo mundo, tomava conhecimento por dentro da máquina das Nações Unidas. “No sistema das Nações Unidas em geral, circulou muito enquanto membro da FAO. Participava noutras organizações das Nações Unidas, em reuniões ou comités.” É o caso de uma nova comissão para os oceanos – a COI, o primeiro organismo destinado a fortalecer a cooperação intergovernamental na área de ciências marinhas, de que Mário Ruivo foi um dos fundadores, em 1961. Foi como delegado da FAO que, por exemplo, participou na Conferência das Nações Unidas sobre o Ambiente Humano, em 1972 em Estocolmo, e que marcaria o início da diplomacia ambiental e das conferências da ONU dedicadas ao ambiente e desenvolvimento sustentável. Também em 1972, promoveu a organização da 1ª. Conferência sobre Poluição do Meio Marinho.
Ao ir para a FAO, começou a sua transição do biólogo que fazia ciência, investigando a sardinha ou o bacalhau, para o diplomata do oceano. O político do oceano, preocupado com a governação do mar. Esta faceta vai juntar-se à sua dimensão política de luta pela democracia, que já vinha da juventude. Para tal, contribuiu a rede de contactos internacionais que estabeleceu nos seus anos na FAO. “Desde muito cedo, combinou a ideia da conservação dos recursos biológicos do mar com o ambiente marinho. Nisso é pioneiro.” Não era apenas a conservação dos recursos vivos da pesca ou a sua exploração excessiva a que dava atenção – numa época em a pesca era vista como mera actividade económica –, era também a qualidade ambiental dos ecossistemas, acrescenta Maria Eduarda Gonçalves. “Sempre antecipou o devir das coisas. A sensibilidade político-social, a sua cultura e generosidade e a sua própria maneira de ser faziam com que fosse um sonhador, num certo sentido, algo utópico. Havia uma fórmula que ele usava muito – uma ‘utopia útil’. Era uma pessoa que perspectivava uma sociedade melhor, mais equilibrada, menos desigual”, descreve Maria Eduarda Gonçalves. “No plano do oceano, tinha o ideal de uma governação do oceano que garantisse a conservação dos recursos e também a sua exploração e utilização de maneira equitativa em favor dos países desenvolvidos.” Em suma: “Era o que se pode chamar – ele próprio usava isto para qualificar outra pessoa – um sonhador pragmático. Era uma pessoa que pensava, que tinha uma visão estratégica que era integrada, holística.” Via, portanto, o desenvolvimento sustentável do oceano como uma utopia útil. “Tinha a cabeça muito, muito arrumada.”
Com o 25 de Abril de 1974, vem para Portugal e integra vários governos provisórios – do segundo ao quinto governos, liderados Vasco Gonçalves como primeiro-ministro, entre Julho de 1974 a Setembro de 1975. Primeiro, Mário Ruivo é secretário de Estado das Pescas – veio organizar uma nova Secretaria de Estado das Pescas, e é aí que Maria Eduarda Gonçalves, então uma jovem jurista que chega como técnica no final de 1974, se cruza pela primeira vez com o oceanógrafo. Depois, no quinto governo, que durou apenas um mês, é ministro dos Negócios Estrangeiros. Além disso, em 1974, Mário Ruivo é presidente da delegação portuguesa nas negociações nas Nações Unidas para um novo regime jurídico do oceano (a Lei do Mar da ONU), nomeado por Mário Soares, ministro dos Negócios Estrangeiros do primeiro ao quarto governo provisório.
Pedras no caminho
No entanto, estes governos, de muito curta duração, teriam um preço para Mário Ruivo. “A carreira do meu marido parece coisa extraordinária – e foi –, mas teve imensas pedrinhas no caminho. Algumas pedras no caminho foram no pós-25 de Abril, inclusivamente a passagem dele pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros”, conta Maria Eduarda Gonçalves. Isto porque “o quinto governo provisório foi considerado o mais radical”, explica. “Foi ministro do Negócios Estrangeiros quatro semanas. Foi um mês que lhe saiu bastante caro.”
Se ainda ocupou, entre 1976 e 1977, o cargo de director-geral da Investigação e da Protecção dos Recursos do Meio Aquático, a factura viria a seguir, já nos governos constitucionais. No governo de Carlos Mota Pinto (entre 1978 a 1979), é demitido da direcção-geral e “colocado na prateleira”, como inspector-geral das Pescas, sem funções atribuídas. Em Março de 1979, é também demitido, e substituído por um embaixador, da chefia da delegação portuguesa nas negociações para a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, ou Lei do Mar da ONU.
Por razões políticas, mais uma vez, deixa o país. Agora o destino do tal “caminho das pedras” é Paris – e, em concreto, a UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura). “Quando foi para Itália, foi por causa da PIDE. Mas quando foi para França, ou melhor para a UNESCO, foi também porque tinha a carreira bloqueada aqui”, relembra Maria Eduarda Gonçalves. “Se as condições políticas e institucionais em Portugal o tivessem permitido, o objectivo dele era continuar aqui a desenvolver o seu projecto. Sempre batalhou pelos interesses do país, mesmo quanto esteve fora.”
Na esfera da UNESCO, torna-se o (quinto) secretário-executivo da Comissão Oceanográfica Intergovernamental (COI), durante quase uma década, de 1980 a 1989. E, depois de deixar a COI como funcionário da UNESCO, passa a ser o representante de Portugal naquele organismo. “O Mário, depois de estar dez anos na COI, uma grande influência, propôs a conferência de Lisboa de 1994. Propôs e assim foi.”
Este trabalho de diplomacia oceânica, que deu a Portugal lugar de destaque na governação internacional do oceano, encontra-se no testemunho de Patricio Bernal (o nono secretário-executivo da COI) para o livro Desenvolvimento Sustentável do Oceano: Uma Utopia Útil, editado em 2018 em homenagem a Mário Ruivo pela Universidade do Algarve. “Mário Ruivo, como delegado português na COI, propôs em Paris que se declarasse 1998 como o Ano Internacional do Oceano e que se levasse essa proposta à Assembleia Geral das Nações Unidas. Também defendeu a organização da Segunda Conferência [Internacional] Oceanográfica em Lisboa”, recorda Patricio Bernal, referindo-se à conferência de Novembro de 1994 presidida por Mário Ruivo, com Mário Soares na abertura solene.
Nessa conferência, Mário Ruivo dizia ao PÚBLICO que Portugal começava a recuperar algum protagonismo nos oceanos. A primeira conferência das Nações Unidas para o oceano havia sido há mais de 30 anos, em 1960, em Copenhaga, e da qual tinha resultado a proposta de criar precisamente a COI.
“O propósito desta conferência [de 1994] era analisar as implicações para o oceano dos progressos tecnológicos recentes e o novo paradigma para o desenvolvimento emergente do relatório de Brundtland, O Nosso Futuro Comum [publicado em 1987], e da conferência do ambiente e desenvolvimento de 1992 no Rio de Janeiro, sintetizada na Agenda 21”, dizia ainda Patricio Bernal, para quem “a grande trama dos dois Mários mudou a percepção pública do oceano”. Durante a Segunda Conferência Internacional de Oceanografia em Lisboa, a Lei do Mar da ONU, que tinha sido assinada em 1982, entra em vigor, ao ser finalmente ratificada por 60 países.
Segue-se a criação da Comissão Mundial Independente dos Oceanos (com sede na Fundação Mário Soares e dezenas de personalidades de todo o mundo) e a Expo-98. No final desta exposição, é lançado o relatório daquela comissão, “impulsionada pela energia e visão de Mário Ruivo”, nas palavras de Patricio Bernal, ele próprio membro da CMIO. “O timing cuidadoso de todos estes eventos não aconteceu de forma espontânea. Foi provavelmente o resultado de longas sessões de brain-storming entre os dois Mários, que numa visão ambiciosa, quase utópica, imaginaram uma cadeia de iniciativas paralelas, que, conduzidas ou promovidas por Portugal, acabaria por ter frutos e tornar todas estas coisas possíveis.”
É também o que diz Maria Eduarda Gonçalves sobre a sucessão de eventos entre a conferência de Lisboa de 1994 para o oceano, a criação da CMIO e a Expo-98 – “está tudo ligado”. “Já havia uma relação de proximidade entre António Mega Ferreira e Mário Ruivo. A opção de dedicar a Expo ao oceano, Um Património para o Futuro, é influenciada por Mário Ruivo, que é conselheiro científico da Expo desde as origens. Mas, obviamente, a sensibilidade de Mega Ferreira, com as conversas que tinham, ficou desperta para esse projecto.”
Sobre o relatório final da CMIO em 1998, Oceano, Nosso Futuro, Maria Eduarda Gonçalves considera: “Por essa altura, já era clara a problemática das alterações climáticas e da relação oceano-clima. Quando o relatório foi produzido, os problemas relacionados com a sustentabilidade do oceano já eram, no essencial, percebidos. Agora estão apurados, porque há mais investigação, mas a agenda que emana desse relatório é uma agenda que se mantém actual.”
Os arquivos da CMIO encontram-se na Fundação Mário Soares e Maria Barroso e que estão a ser organizados desde o ano passado, para permitir o acesso aos documentos. Tal como também aí está parte do espólio pessoal que o próprio Mário Ruivo doou à fundação e é composto, em particular, por documentação produzida e reunida na sua actividade científica e política, tanto na oposição democrática como na governação do oceano.
“Na garagem da minha casa ainda está uma boa parte de documentação que ele trouxe de Roma – documentação da actividade da oposição nos anos 60 e 70”, avança Maria Eduarda Gonçalves, que também entregou livros de Mário Ruivo à Universidade do Algarve, bem como documentação ao arquivo da Fundação para a Ciência e a Tecnologia ligada às actividades do Programa Dinamizador das Ciências e Tecnologias do Mar, que Mário Ruivo coordenou. “Era uma pessoa que não deitava fora as coisas. Era bastante disciplinado e organizado, o que facilita. As coisas, quando as encontro, estão reunidas por assuntos.”
Um navio e um jardim
Mesmo que não nos apercebamos, o legado de Mário Ruivo – que deixa dois filhos, João Pedro e Joana – estará presente na conferência de Lisboa, dedicada ao Objectivo de Desenvolvimento Sustentável 14 (ODS 14), proteger a vida marinha. “É gratificante confrontar-me com a dimensão oceânica da agenda do desenvolvimento sustentável, com os documentos e o discurso que envolve esta conferência do oceano das Nações Unidas e encontrar aí o que foi o projecto de Mário Ruivo desde há décadas”, resume Maria Eduarda Gonçalves, lembrando que o oceanógrafo foi o primeiro presidente do Conselho Nacional do Ambiente e Desenvolvimento Sustentável durante 20 anos, de 1997 a 2007.
Em rigor, contando as conferências de 1960 e de 1994, esta será pelo menos a quarta conferência da ONU sobre o oceano. Ou, se quisermos, a segunda em torno do ODS 14 (a primeira foi em Nova Iorque, em 2017).
No local da nova conferência, o Parque das Nações, onde foi a Expo-98, devia hoje ter uma rua com o nome de Mário Ruivo, em resultado de uma deliberação da Assembleia Municipal de Lisboa de 2017 para se atribuir “o seu nome a um espaço condigno e ligado ao mar” na cidade. Em 2018, a Câmara Municipal de Lisboa decidiu que essa rua seria na zona dos Jardins da Água, no Parque das Nações. Estamos em 2022, realça Maria Eduarda Gonçalves, e o Jardim Mário Ruivo ainda não tem lá a placa.
Já o presidente do Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA), Miguel Miranda, e o anterior ministro do Mar quiseram atribuiu o nome de Mário Ruivo a um navio oceanográfico do IPMA (juntando-se a outras distinções, entre doutoramentos honoris causa e condecorações pelos Presidentes da República, primeiro Mário Soares, depois Jorge Sampaio). “Tiveram essa bela ideia, é muito bonito”, comenta Maria Eduarda Gonçalves sobre o navio Mário Ruivo.