Não é fácil estabelecer a ligação entre o peixe barato no supermercado da esquina e a pesca ilícita em águas longínquas do Pacífico. As duas pontas podem estar conectadas, mas a opacidade do fio que as une contribui para que consumidores, distribuidores e outros elementos da cadeia sigam a vida sem grande sobressalto. Recebem o pescado, armazenam, distribuem, vendem, outros compram e cozinham. E assim perpetua-se o ciclo da pesca ilegal, não reportada e não regulada (IUU, na sigla em inglês), uma prática com graves consequências ambientais, socioeconómicas e humanas.
“A primeira mudança abrangente que precisamos ver na gestão global da pesca é a transparência, desde a rede até ao prato. Temos de ser realistas sobre o que pode ser feito, não se pode pedir o Sol e a Lua ao mesmo tempo. Mas se seguirmos estas medidas económicas que defendemos há muito tempo, e que podem se adoptadas logisticamente [através tecnologias de vigilância], podemos permitir que todas partes vejam o que se passa. Não resolve tudo, mas permite que identifiquemos quem são os operadores, se estão a seguir as regras, se cometem abusos quer ambientais quer de direitos humanos”, afirma ao PÚBLICO Steve Trent, director da Fundação Justiça Ambiental (ESJ, na sigla em inglês).
A pesca IUU representa até 26 milhões de toneladas de peixes capturados anualmente, de acordo com a agência das Nações Unidas para a alimentação e agricultura (a FAO). Ou seja, cerca de um quarto do peixe apanhado é de pesca IUU. É um valor considerável se tivermos em conta que o volume anual de pescas global rondará as 90 milhões de toneladas. Esta prática ilícita pode ocorrer em alto-mar ou em áreas dentro da jurisdição nacional, impactando comunidades rurais costeiras que dependem a pesca artesanal como fonte de subsistência. Além da degradação de ecossistemas marinhos, a pesca ilícita pode envolver crimes como o tráfico humano e a exploração laboral.
“Estima-se que a pesca IUU esteja por trás de até um em cada cinco peixes que chegam ao nosso prato. [Esta prática ilícita] normalmente visa espécies de alto valor e explora as lacunas existentes nas estruturas legais nacionais e internacionais para a gestão da pesca. Os navios operam principalmente onde a monitorização, controlo e vigilância eficazes são limitados. Isto inclui, por exemplo, partes do oceano Índico, onde as molduras jurídicas para o sector apresentam vazios regulamentares tanto nas áreas geográficas como nas espécies que abrangem”, explica ao PÚBLICO Antonia Leroy, que lidera a pasta dos assuntos do mar no gabinete europeu do World Wild Fund (WWF).
Antonia Leroy acredita “um primeiro ponto importante” para combater a pesca ilícita assenta em sistemas de monitorização, controlo e vigilância. “A revisão do Regulamento de Controlo das Pescas da União Europeia é um momento crucial para garantir que esses sistemas sejam robustos e estabeleçam um padrão”, refere a especialista da WWF. E, assim como Steve Trent, Leroy considera a adopção de mecanismos que garantam transparência como uma de várias acções necessárias.
A responsável da WWF vê a Conferência dos Oceanos, que decorre em Lisboa de 27 de Junho a 1 de Julho, como uma oportunidade preciosa para os diferentes países discutirem um vasto leque de instrumentos para limitar os riscos da pesca IUU. A WWF está ainda a trabalhar para “garantir compromissos” da União Europeia, dos Estados Unidos da América e Japão – os maiores e mais valiosos mercados de importação – para liderarem a luta contra a pesca IUU.
Uma rede cada vez mais larga
O relatório “Uma rede cada vez mais larga”, divulgado pela EJF este ano, oferece “a mais completa análise da frota [pesqueira chinesa] até à data” e mostra como estas operações estão marcadas por abusos de direitos humanos, pesca ilegal e ataques a espécies marinhas protegidas ou em risco. O documento revela ainda como os subsídios estatais de Pequim permitem que as embarcações, muitas vezes empunhando bandeiras de conveniência, explorem águas das quais nações em desenvolvimento dependem para a segurança alimentar.
Após ter depauperado as populações de peixe nas suas águas territoriais, a China começou a apostar numa pujante frota dedicada à pesca longínqua (ou seja, fora da zona económica exclusiva). É o que mostra um segundo relatório, desta vez do think tank independente ODI, publicado em 2020, exibindo uma expansão surpreendente: Pequim contabilizava 13 embarcações de pesca longínqua em meados dos anos 80, tendo passado para quase 17.000 actualmente.
“Com 16.966 navios de pesca longínqua [operando em quase todo mundo], a frota chinesa é entre cinco a oito vezes maior do que as estimativas anteriores sugeriam”, afirmou ao PÚBLICO Miren Gutierrez, co-autora do documento produzido pelo ODI.
Parte da frota de pesca longínqua está equipada para fazer a pesca de arrasto, método no qual redes gigantescas descem até ao fundo oceano e são puxadas por embarcações com grande potência. Este procedimento é altamente destrutivo para a vida marinha, implicando um grande volume de pesca acessória. Por outras palavras, muitas espécies não desejadas são içadas desnecessariamente. Mesmo sendo devolvidos ao oceano, muitos dos indivíduos já não sobrevivem. Ficam fragilizados e acabam por morrer devido às agressões causadas pela captura, manipulação a bordo e devolução.
Imagens divulgadas pela EJF mostram trabalhadores a dormir em locais improvisados, amontoados uns em cima dos outros, sem colchões ou móveis que proporcionem conforto. As filmagens revelam ainda a presença de baratas nas instalações, assim como a oferta de comida inadequada para consumo humano. Há relatos de que a água oferecida não era potável, muitas vezes provocando mal-estar e diarreia nos empregados.
Trabalhadores recrutados nas Filipinas e na Indonésia labutam por meses seguidos, ou até anos, refere a EJF. Uma vez a bordo, os indivíduos passam a estar numa posição muito vulnerável: estão distantes da costa, dependem daquela relação laboral para subsistirem até ao regresso e, portanto, não há fuga provável. De acordo com o relatório, são vítimas de más condições laborais, abuso físico e longas jornadas de trabalho – uma descrição que pode configurar tráfico humano.
Práticas destrutivas do ambiente emergem, muitas vezes, de mãos dadas com violações dos direitos humanos. “Estas operações, que já são por si só ilegais, podem começar a ter lucros cada vez menores [com a captura do pescado] e precisam encontrar maneiras de reduzir custos. Muitas das operações simplesmente não são mais sustentáveis. Portanto, a maneira mais fácil de fazer isso era usar o tráfico de trabalhadores baratos, forçados ou até escravos em toda a indústria. Só assim baixam os custos de produção”, explica o director e fundador da EJF.
Para a elaboração do documento, a fundação sediada em Londres garante ter recolhido testemunhos em 88 navios. Cerca de 95% dos relatos dão conta de alguma forma de pesca ilegal a bordo. Foram ainda ouvidos 116 membros da tripulação de origem indonésia. Quase todos disseram que ser uma prática comum a remoção de barbatanas aos tubarões, que eram depois devolvidos ao mar para morrer. Um terço relatou que espécies protegidas como tartarugas e focas eram capturadas e mortas na embarcação. Por fim, um quinto dos entrevistados afirmou ser uma rotina o sacrifício de golfinhos para serem usados como isco para tubarões.
“Não importa se o tubarão é pequeno ou grande, até bebés dentro da barriga – nós apanhamos tudo. Acho que este poderia ser chamado o navio do diabo porque ele realmente leva tudo”, afirmou um membro da tripulação, citado no relatório.
As imagens e os testemunhos recolhidos indicam a existência de abuso físico: membros da tripulação de origem indonésia aparecem a ser agredidos com uma barra de metal ou ameaçados com facas por um superior hierárquico de origem chinesa. E 58% dos entrevistados revelou ter vivido ou testemunhado alguma forma de violência física, 85% disseram estar expostos a condições de vida insalubres e jornadas de trabalho extenuantes. Por fim, 97% afirmaram terem tido documentos de identificação confiscados, como o passaporte, ou terem sido empurrados para uma situação de dívida permanente em relação à entidade patronal.
Embora o relatório da fundação aponte para uma grande opacidade no que toca ao destino do pescado, a EJF afirma que vários navios chineses de pesca longínqua possuem licença para exportar para a Europa. A China é o principal parceiro comercial dos Estados Unidos no que toca ao pescado.
“O mercado da Europa, dos EUA e do Japão juntos compreendem algo como 70% do pescado comercializado globalmente. Se impusermos restrições de mercado a esses produtos que foram capturados de forma ilegal e insustentável, ou por via do trabalho escravo, então será possível aplicar uma pressão económica de cima para baixo realmente poderosa. Para conseguir expulsá-los, é preciso ter operações apertadas de fiscalização e interceptação para reprimir [estas operações]”, afirma Steve Trent ao PÚBLICO.
Os navios chineses também são “uma presença constante” em águas territoriais de países em desenvolvimento. África é o continente mais visado: 78,5% dos navios pesqueiros subsidiados pelo Governo chinês actuam em águas africanas. Estas nações costumam depender das actividades piscatórias para a sobrevivência da população e tendem a ter uma capacidade limitada para monitorizar a costa.
O documento sublinha que foram muitos os navios e os intervenientes que contribuíram para o declínio das populações marinhas – ou seja, apesar de o relatório concentrar-se na gigantesca frota chinesa de pesca longínqua, não seria factual atirar apenas para a China a culpa da degradação dos oceanos. Mas também argumenta que o tamanho da frota de Pequim, assim como a dimensão do seu peso comercial “merecem atenção”. Acrescentam ainda que o “escrutínio” por parte das autoridades dedicadas à pesca ilegal, não reportada e não regulada “é urgente”, assim como a presença nas regiões costeiras onde as comunidades piscatórias estão “à beira de um colapso”. Por fim, recordam que o ónus está agora do lado da China, que tem de corrigir “a maneira insustentável na qual as frotas de pesca longínqua operam”. E propõem a eliminação até 2023 de subsídios estatais “nocivos” que viabilizam a compra de combustível, assim como a construção de navios e portos chineses.
Estima-se que mais de três mil milhões de pessoas no mundo dependam do mar para subsistência, com mais de 200 milhões directa ou indirectamente empregadas na indústria do mar. Muitas destas pessoas pertencem a comunidades do Sul global que vêem a sua nutrição e fonte de renda em risco.
“Trabalhamos em países como Gana e Libéria, e outros lugares onde há algumas das pessoas mais pobres do nosso planeta. As operações de pesca ilegal estão a roubar os seus peixes e parte deles acaba no mercado europeu. Como resultado, muitas crianças estão a passar fome. As mulheres estão a perder meios de subsistência, a capacidade de comprar alimentos ou medicamentos para as famílias. Os pescadores artesanais não saem mais para o mar para pescar o suficiente para manter suas famílias bem e felizes. Vivemos na Europa com a ilusão de que há um suprimento infinito de peixe muito barato. O ponto-chave é que este peixe barato tem um preço”, conclui Steve Trent.