Comissão quer valores fixos para médicos tarefeiros decididos esta semana. Se não houver acordo, avançam na mesma
Diogo Ayres Campos, presidente da comissão de acompanhamento de resposta em urgência de ginecologia, obstetrícia e bloco de partos, quer fechar tabelas esta semana com os prestadores de serviços.
Nomeado há uma semana para a comissão de acompanhamento de resposta em urgência de ginecologia, obstetrícia e bloco de partos, o médico e director do Serviço de Ginecologia e Obstetrícia do Hospital Santa Maria, em Lisboa, quer avançar rapidamente com uniformização dos preços a pagar por hora aos tarefeiros e admite, em entrevista ao PÚBLICO e Renascença, que os obstetras “parecem estar mal distribuídos” no Serviço Nacional de Saúde.
Quando irão começar a sentir-se os efeitos da existência da comissão?
Em alguns aspectos de curto prazo, esperemos que já durante o Verão de 2022 tenhamos esse efeito. Um dos objectivos da comissão é evitar que existam situações de muitas contingências ao mesmo tempo, em que os outros hospitais que não estão em contingência têm de dar apoio. Se forem muitas contingências ao mesmo tempo, isso pode causar situações de risco que queremos evitar.
O hospital de Setúbal prevê fechar a urgência obstétrica 21 dias durante o Verão. Qual é o retrato das restantes urgências?
Neste momento não tenho ainda dados para o fazer. O que fizemos durante o fim-de-semana com o ministério, e com as instituições ligadas ao ministério, foi estabelecer o plano para conseguir recolher esses dados todos. Temos de ter esses dados de uma forma muito rigorosa, prestados pelas Administrações Regionais de Saúde [ARS].
Esses dados vão ser compilados até quando?
Durante esta semana estamos à espera de ter esses dados todos a nível nacional.
Há falta de obstetras no país ou há falta de obstetras no SNS?
Claramente que falta de obstetras no SNS existe, porque senão em certos hospitais que têm sete ou oito obstetras isso não aconteceria. A questão é que eles parecem estar mal distribuídos. A curto prazo estamos em modo de resposta aguda, mas logo que essa resposta esteja garantida, temos de avaliar exactamente onde são mais necessários os obstetras e se, de facto, é necessário repensar a rede de referenciação em obstetrícia e ginecologia.
Implicaria concentração de maternidades, por exemplo?
É uma das coisas que está em cima da mesa, mas depende muito das situações que conseguirmos avaliar. Há alguns hospitais que estão muito próximos uns dos outros, mas é preciso assegurar que há capacidade de resposta. Se se puser em cima da mesa a possibilidade de concentrar recursos, é preciso assegurar que os hospitais que ficam têm resposta para o número de partos que esses hospitais normalmente conseguem garantir. Neste momento, não há nada decidido.
Em Junho de 2019 existiram muitas notícias muito semelhantes às que vemos agora. Porque estamos a viver três anos depois uma situação idêntica?
Ao longo destes três anos a situação foi-se degradando lentamente, porque os obstetras saem lentamente para a medicina privada ou reformam-se. Também há alguns que entram. Estas mudanças nunca são agudas. Penso que havia intenção - é um julgamento meu - do Governo de pegar neste assunto. Mas depois o foco foi a pandemia e durante dois anos não se tomaram nenhumas medidas que fossem estruturantes e que pudessem evitar que esta situação tivesse acontecido.
Qual é o plano que já começou a desenhar para limitar estes efeitos que vimos agravados ao longo destas semanas?
Primeiro, é tentar avaliar a situação de uma forma muito objectiva. Outro aspecto muito importante é conseguimos avaliar e planear com alguma distância. Precisamos de saber quais são os médicos prestadores de serviço que vão fazer urgências com antecedência. Queremos planear, pelo menos, a um mês, para ser possível avisar algumas pessoas no caso de ser necessário trocar contingências de um dia para o outro, para assegurar que elas não ocorrem todas ao mesmo tempo. Eventualmente, se existirem situações que são impossíveis de lidar trocando contingências, pode haver necessidade de concentrar recursos numa maternidade e passar a equipa da maternidade que fica temporariamente encerrada para outra. É algo que também está em cima da mesa e que aguarda todas estas informações para saber se é necessário ou não.
Isso é um pouco o conceito das urgências metropolitanas.
O problema das urgências metropolitanas em obstetrícia é um pouco mais complexo do que a urgência aberta para o exterior. Não são só grávidas e mulheres com problemas urgentes que vão às urgências, vão aquelas que estão em trabalho de parto. Se concentrar as urgências metropolitanas num único hospital, preciso de assegurar que tenho uma sala de partos com dimensão suficiente. A seguir vem a parte do pós-parto e do recém-nascido e tenho de ter condições hoteleiras para que essas senhoras possam estar. Acho que é possível alguma concentração de recursos, mas com muito cuidado para assegurar que não há depois de excesso de procura nas restantes instituições.
A comissão já disse que gostaria que houvesse a harmonização dos valores pagos à hora aos tarefeiros. Que valores é que considera adequados?
Acho que devem ser muito parecidos com aqueles que vão negociados entre o ministério e os sindicatos [para os médicos do quadro do SNS].
Falou que há uma espécie de leilão de preços, que os tarefeiros aguardam até à última e depois os hospitais, perante a necessidade, vão aumentando o valor/hora. Que valores máximos é que são praticados?
Não lhe sei responder com conhecimento de causa. O que queremos é ter, ao longo desta semana, acordado com todas as ARS quais são os valores que se pagam aos prestadores de serviço em cada hospital para o Verão de 2022. Admito que depois no futuro possam existir alterações. Achamos que não podem ser todos iguais, senão favorece os hospitais mais perto das grandes zonas urbanas e também há hospitais que são mais complexos do que outros e as pessoas podem tender ir trabalhar em sítios mais próximos dos centros urbanos e também para aqueles que têm menos complexidade de doenças. Tem de haver algum equilíbrio para assegurar que a oferta é atraente, mas devem ser todos estabelecidos com antecedência para que não haja decisões muito tardias porque isso prejudica o planeamento.
Não será um preço igual para todos?
Um preço que seja semelhante para as regiões, alterado ligeiramente de acordo com as características do hospital, se é mais complexo ou menos, e a distância dos grandes centros.
É possível conseguir?
Acho que é possível e é um desafio grande que estamos a colocar às ARS, com o apoio da comissão e obviamente com interacções com os hospitais e prestadores de serviço. Penso que nesta semana vamos conseguir arranjar um consenso. Também é muito claro que se não se chegar a um consenso, que a comissão de acompanhamento, juntamente com o ministério, irá assegurar que esse acordo se faça.
Como?
No sentido de sermos nós a definir esses preços dos prestadores.
Os tectos máximos?
Estamos a falar de valores fixos para todo o Verão de 2022, porque achamos que isso vai estabilizar a procura e a oferta. Não queremos de maneira nenhuma hostilizar os prestadores de serviço porque grande parte da oferta depende neste momento dos prestadores de serviço. Não queremos também estar a condicionar uma descida grande dos preços, não seria sensato no meio de uma crise no Verão estar a alterar isso. Isso é uma coisa que se pode pensar no futuro. Queremos é assegurar que as decisões são feitas com antecedência e que não existam algumas ofertas que parecem ser, de facto, absurdas em termos de quantidade de dinheiro que é gasto com esses prestadores de serviço.
Há sempre uma grande dificuldade no Verão. E no Natal, haverá um plano específico para essa altura?
Grande parte do problema assenta na falta de atractividade do SNS para os médicos. Isso passa por aspectos financeiros, é verdade, e por aspectos de organização. Se vai haver ou não no Natal de 2022 novamente esta crise, depende muito das reformas que forem possíveis de implementar até essa altura. A nossa tarefa não é só para o Verão de 2022, é aconselhar o Ministério da Saúde em relação às reformas que são necessárias implementar na área de obstetrícia e ginecologia para que as urgências não sejam o centro da actividade como são neste momento. Temos alguns hospitais do SNS que têm mais de 100 avaliações na admissão por dia, enquanto nos grandes hospitais, por exemplo, de Inglaterra andam à volta de 15. Temos de repensar a forma como estamos a orientar grande parte destas situações para a urgência, quando podem existir outras soluções que são mais adequadas. E também do ponto de vista financeiro é um investimento menor do Estado, porque as nossas equipas nas urgências são bastante mais inflacionadas, que noutros pontos da Europa, à custa destas soluções que empurram muito para a urgência.
Em conferência de imprensa, a ministra falou na requisição de médicos estrangeiros. Quais poderão ser as regras de contratação de médicos estrangeiros e incentivos?
Os médicos estrangeiros europeus têm duas dificuldades enormes. Primeiro a língua, porque a grande maioria não fala português. Depois têm outra dificuldade enorme. Não há nenhum médico europeu que queira vir trabalhar para Portugal ao preço que se paga em Portugal. Há alguns médicos brasileiros, alguns dos quais têm a equivalência da especialidade, e de países africanos de expressão portuguesa, mas já estão integrados nessas equipas de prestadores de serviço. Não estou a ver uma grande capacidade de aumentar essa resposta em termos de médicos estrangeiros neste momento.
E a repartição de tarefas com os enfermeiros especialistas, nomeadamente em relação aos partos de baixo risco?
As práticas são muito diversas de hospital para hospital. Em alguns hospitais há muitos médicos internos que estão em formação e que querem fazer partos e alguns procedimentos que também podem ser feitos pelos enfermeiros, nomeadamente a correcção das suturas. Há outros em que como há poucos médicos, os enfermeiros assumem grande parte dessas tarefas. Tem havido também algum vazio de orientações em relação a isso. É fundamental que seja claro quais são as tarefas que estamos à espera dos enfermeiros especialistas, para que não haja sobreposição de tarefas e até alguma conflituosidade. Isso é um dos temas, das orientações, que queremos abordar com a Direcção-geral da Saúde e que já está na agenda.
Recurso a privados? “Vamos sobretudo apostar na resposta do SNS”
O Presidente da República dizia que é preciso uma reforma de fundo no SNS. Concorda que é preciso uma reforma estrutural na área da saúde?
Ficou a ideia que no final dos anos 1980 do século passado os cuidados obstétricos eram fantásticos e que tínhamos indicadores fantásticos. E é verdade, na altura tínhamos. Mas não se faz uma vez e fica para o resto da eternidade. É preciso adaptar à realidade. A medicina privada cresceu imenso, criou stresses diferentes aos médicos do SNS, pressões em termos de ofertas e ou nos adaptamos ou vamos ser engolidos por aquilo que é a evolução natural da espécie humana que nunca pára. Mais do que estar a fazer uma grande reforma, acho que são precisas reformas frequentes à medida do tempo em que as coisas se vão alterando. É preciso fazer as reformas na altura certa.
Os privados são uma necessidade para ajudar neste momento o SNS a ultrapassar estes constrangimentos?
É uma hipótese que está em cima da mesa. Se estou convencido que será uma grande solução, não tenho neste momento uma certeza. Para a semana já poderei dizer isso com mais informação, porque depende do número de contingências que estiverem previstas para estes próximos meses. Se houver muitas contingências e se forem todas ao mesmo tempo, os hospitais de fim de linha podem ficar sobrecarregados. Nessa situação particular, a hipótese dos hospitais privados pode ser posta em cima da mesa. Se isto vai acontecer, espero bem que não. Até porque a resposta dos hospitais privados geralmente é uma resposta muito individualizada ao médico. Não há grandes equipas na maior parte dos hospitais privados, pelo menos do que conheço, que dão apoio a pessoas que vêm do exterior. Tanto quanto percebi, a oferta é mais para os fins-de-semana. Se houver uma situação de contingência poderá ser uma opção, mas temos de ver. Acho que vamos sobretudo apostar na resposta do SNS, na resposta concertada. Muitas vezes falamos de funcionar em rede, mas isso implica transferir grávidas. É um mal menor quando não há outra solução, mas nenhuma grávida gosta de ser transferida em trabalho de parto de um hospital para outro. Vamos tentar evitar ao máximo que isso aconteça. Se não for possível, então faremos as transferências. E se não houver solução dentro do SNS, então iremos contactar os hospitais privados.
Como vê o facto de tantos partos na região de Lisboa e vale do Tejo já serem feitos por privados? Não é o mesmo que acontece no Norte.
Não é, mas tem vindo aumentar no grande Porto e também em outras grandes cidades onde têm crescido hospitais privados. Há uma pouca atractividade do SNS não só para os médicos e para os enfermeiros, mas às vezes também para as grávidas. A grande maioria dos hospitais não tem obras há 30 ou 40 anos. No meu hospital há zonas do meu serviço que não têm obras desde que o hospital foi aberto. Não se tem apostado nessa área nos últimos tempos. Uma coisa que é importante é que com ordenados muito mais atractivos, a medicina privada também tem a capacidade de ir buscar bons médicos e bons enfermeiros. As equipas têm sido muito depauperadas de bons elementos ao longo destes anos por causa disso.
Tem havido pedidos de demissão da ministra da Saúde. Acha que foi convidado por uma ministra que está a prazo?
Acho que todos estamos a prazo no nosso lugar. Penso que a ministra tem muito boas intenções em relação à reforma do SNS e tive oportunidade de falar com ela antes da pandemia e de atestar essas boas intenções e a preocupação que havia em relação aos cuidados obstétricos. Foi poucas semanas antes da pandemia e admito que ela esteve concentrada na resolução da pandemia. Foi importante para o país e a forma como foi gerida, de uma forma geral, foi bastante positiva. Independentemente do partido político e do ministro que está, acho que os médicos querem fazer parte da solução e é essa a minha posição sempre. Sempre que for possível contribuir para alguma coisa que seja necessário, terão com certeza o meu apoio.