Callum Roberts: “Lisboa é um passo importante para a meta 30x30 dos oceanos”

Callum Roberts contribuiu para a definição da meta 30x30, que propõe proteger 30% dos oceanos até 2030. Agora, o oceanógrafo espera que a conferência da ONU reúna apoio internacional para fazer avançar este acordo, assim como o das águas internacionais.

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Callum Roberts, da Universidade de Exeter, ajudou a definir a base científica para a meta de protecção global dos oceanos DR

O oceanógrafo Callum Roberts, professor da universidade britânica de Exeter, vê a Conferência dos Oceanos da ONU, que decorre de 27 de Junho a 1 de Julho em Lisboa, como um espaço privilegiado para fazer alianças e reunir apoio internacional em prol de dois acordos “fundamentais”. Um deles é a aprovação da meta 30x30, que prevê a protecção de 30% dos oceanos até 2030, e para a qual a equipa de Roberts contribuiu. O segundo é o tratado de protecção das águas internacionais em alto-mar. A decisão final sobre estes dois instrumentos globais de conservação não será tomada nesta cimeira das Nações Unidas, mas o especialista vê Lisboa como uma oportunidade para fazer avançar as coisas.

Callum Roberts também é conhecido pelo trabalho na área de comunicação de ciência, tendo escrito livros de divulgação científica e participado em documentários como Seaspiracy e Blue Planet II. Nesta entrevista, concedida a partir do Reino Unido e por videoconferência, Roberts analisa como a impaciência dos jovens perante a inércia política no que toca à crise climática emerge em Seaspiracy, o polémico documentário de Ali Tabrizi para o Netflix. E sublinha que rótulos como o MSC e o Dolphin Safe não são mais garantia de uma pesca sustentável, uma vez que estão “dominados pela indústria pesqueira”.

O grupo de investigação que lidera ajudou a elaborar a base científica para a meta 30x30. Em que consistiu a vossa contribuição?
Tudo começou no final dos anos 90 com a seguinte questão: quanto do oceano deve ser protegido? Eu havia publicado um livro sobre como criar reservas marinhas protegidas no século XXI, no qual analisávamos os dados científicos disponíveis. Chegámos à conclusão de que 20 a 30% dos mares deveriam estar protegidos, isto se quiséssemos alcançar o objectivo de representar todo o arco da biodiversidade marinha, por forma a replicar essa variedade em diferentes áreas protegidas, e criar uma conexão entre zonas [com diferentes estatutos de protecção] para que estas possam se apoiar mutuamente e serem sustentáveis. Isto significa estarem próximas umas das outras e contribuírem para actividades económicas como a pesca. À medida que as populações de peixes se recuperam dentro das áreas protegidas, as diferentes espécies espalham-se para as áreas próximas onde a pesca é admitida, aumentando assim as capturas. A longo prazo, [a criação de áreas protegidas] ajuda as comunidades pesqueiras. À medida que aumentamos a área protegida, os benefícios também aumentam mas só até a um certo ponto, no qual a área protegida é tão extensa que sobra pouca área para pescar. Então, o ponto ideal para a pesca é uma ponderação entre nenhuma protecção e protecção total. A resposta para [este ponto de equilíbrio] é, na verdade, um pouco maior que 20 a 30%, como os estudos posteriores vieram a mostrar.

Foi assim que chegaram aos 30%?
Bem, trabalhamos em 2003 na proposta em torno de 20 a 30%, que foi então incorporada na recomendação do Congresso Mundial de Parques (WPC, na sigla em inglês) sobre quanto do mar deveria ser protegido. Em 2014, estivemos a rever o estado actual de conhecimentos e os dados apontavam para uma protecção maior. E assim a meta foi aumentada no Congresso Mundial para 30%. Publicámos estes resultados na íntegra em 2016. [Nesse mesmo ano], o Congresso Mundial de Conservação no Havai pegou nesses dados e avançou com a resolução de que deveríamos estar a proteger 30% dos oceanos. Com base nessa ciência, a ideia dos 30% começou a ser muito difundida por organizações conservacionistas, organismos internacionais e até governos. Então tornou-se fácil e conveniente para a comunidade da área da conservação apoiar a meta dos 30% até 2030. Trata-se de uma meta que foi evoluindo. A diferença entre esta meta e a que a precedeu é que a actual é baseada na ciência. As recomendações da Convenção sobre Diversidade Biológica, que dizem que devemos proteger 10% do mar e 17% da superfície terrestre até 2020, são metas meramente políticas. As provas científicas sugerem que deveríamos estar a proteger muito mais - e é daí que surgiu a meta 30% até 2030.

É uma meta que fica na memória, que funciona bem em termos de comunicação de ciência. É um feliz acaso que a ciência aponte para 30% e a data almejada seja 2030?
Sim. Há quem pense que se trata de uma meta arbitrária, que foi escolhida para captar a atenção das pessoas. Mas não é o caso. Fico muito feliz por esse lado da comunicação, soa bem reivindicar 30% até 2030. Mas esse é um alvo baseado unicamente na ciência.

Os oceanos encerram em si soluções naturais para a actual crise climática. Por que razão a protecção dos ecossistemas marinhos não parece ser uma prioridade para os líderes políticos?
Os impactes humanos [na parte terrestre do planeta] são muito óbvios, não podemos deixar de vê-los. Então há muita conscientização pública da acção humana. Mas se formos até à costa e pousarmos o olhar no horizonte, teremos a mesma paisagem que tínhamos há 500 anos. Tirando um navio ou uma plataforma, pouco mudou. O aquecimento da água do mar e acidificação dos oceanos não são fenómenos visíveis. Não vemos esses problemas e, por isso, tendemos a ignorá-los. Há uma outra razão: os grandes impactes humanos nos oceanos começaram nos últimos 100 anos ou mais, ao passo que [na superfície terrestre] esta acção começou há várias centenas de anos, talvez mil anos. Então, o que temos agora é uma crise que se vem formando há algum tempo e só agora explodiu na consciência pública. Mas esta explosão ainda não se traduziu em suficiente acção política.

Quais são as suas expectativas em relação à Conferência dos Oceanos?
Este é um ano muito importante para os oceanos. 2020 deveria ter tido essa importância, mas veio a pandemia e muitas decisões sobre os oceanos foram adiadas. Então 2022 assumiu essa relevância e a conferência das Nações Unidas faz parte disso. Contudo, Lisboa não é o lugar onde duas das decisões cruciais serão tomadas. Uma delas é a decisão sobre as futuras metas, ou seja, a criação de áreas protegidas e a protecção da vida selvagem. São resoluções que serão tomadas em Kunming, na China [esta semana, o local foi alterado para Montreal, no Canadá], no terceiro trimestre de 2022. Ainda não há datas. Este encontro vai definir a agenda de conservação da biodiversidade até 2030. Então, sobre a mesa, está precisamente a questão dos 30% até 2030. Se a proposta for adoptada pela comunidade internacional, vai ser um enorme passo na direcção certa.

A comunidade internacional está preparada para abraçar esta meta?
Acredito que a Conferência dos Oceanos em Portugal vai ser um passo extremamente importante no sentido de reunir o apoio internacional necessário para impulsionar a meta. A segunda decisão importante, que esperamos que seja tomada este ano, é sobre a protecção das águas internacionais em alto-mar. Havia um processo em andamento antes da pandemia. Se as Nações Unidas tivessem tido a oportunidade de realizar uma conferência intergovernamental para acordar um tratado que permitisse a protecção da biodiversidade para além das águas soberanas nacionais, este processo estaria a chegar à fase final. Apenas três das quatro reuniões foram realizadas. Devido à pandemia, só conseguiram voltar a reunir-se em Março deste ano, mas não chegaram a um acordo nessa quarta reunião. Há uma nova agendada para Agosto. Há áreas de grande controvérsia. Creio que a conferência em Lisboa será um passo muito importante para ultrapassar algumas dessas dificuldades fora da sala de negociações. Ou seja, fazer alianças e declarações públicas de apoio de determinados países para concluir este tratado sobre a protecção em águas internacionais. Este tratado é fundamental.

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O oceanógrafo Callum Roberts foi o principal consultor científico da série Blue Planet 2, narrada por David Attenborough Audun Rikardsen/BBC

Por que o tratado é crucial?
Muitas pessoas não percebem que o oceano cobre 71% da superfície do planeta; sendo que 61% está fora das águas territoriais. Estamos a falar de águas internacionais, terrivelmente desprotegidas. Não temos legislação, não dispomos de um mecanismo de criação de áreas protegidas em alto-mar que seja universalmente aceite pelos países. Precisamos disso. Estes 61% do oceano que estão fora de qualquer jurisdição nacional correspondem a 43% da superfície da Terra. É alarmante pensar que quase metade do planeta não tem um mecanismo comum para proteger a biodiversidade.

Disse que há dificuldades que têm de ser ultrapassadas. Quais são?
Esta negociação é uma espécie de revisitação da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, acordada entre as décadas de 1970 e 80 e adoptada nos anos 90. Temos esse velho tipo de discussão em que a comunidade mundial concordou que, caso houvesse alguma exploração de riqueza mineral em águas internacionais, os rendimentos seriam divididos entre todos os países do mundo. Há também esse mecanismo de repartição de benefícios no novo tratado para o alto-mar, que está a ser agora negociado. Um tipo diferente de recurso que está também a ser analisado é o da biodiversidade. As pessoas sabem que a biodiversidade é valiosa, compreendem que, particularmente com o conhecimento actual na área da genética, podemos descobrir curas para doenças no fundo do mar, podemos criar processos industriais usando produtos naturais. Então, se uma espécie é descoberta nessas águas internacionais, isso é potencialmente muito valioso. Como compartilhamos os benefícios disso com a comunidade mundial? Esse é um dos grandes pontos de discórdia no momento. Não sabemos a resposta.

Foi consultor científico da Blue Planet 2 (2017), uma série da BBC narrada por David Attenborough. E surge como entrevistado no polémico documentário Seaspiracy (2021), que critica a pesca dita sustentável num tom activista, interpelador. Como vê estes novos padrões narrativos na área da conservação?

Seaspiracy, do realizador Ali Tabrizi, recebeu muitas críticas por distorcer alguns dados científicos. [O documentário afirma, por exemplo, que os mares vão estar vazios em 2048, uma estimativa que não foi validada cientificamente.] Em contrapartida, contém muita coisa correcta sobre o estado dos oceanos. A Blue Planet 2 era muito mais calma, tradicional, do tipo “olhe para este mundo incrível e, já agora, há grandes problemas a surgir e temos de fazer algo quanto a isso”. De certa forma, o Blue Planet 2 evoluiu de programas anteriores sobre a natureza, nos quais não havia problemas, que apenas se concentravam no valor do entretenimento. Havia um grande planeamento e rigor científico, tudo era escrutinado. Já o Seaspiracy estava muito comprometido em transmitir uma mensagem, sem uma preocupação excessiva que o conteúdo fosse 100% rigoroso. Houve muita reacção ao filme, mas o facto é que a mensagem chegou a um enorme número de pessoas. Creio que esta nova abordagem revela impaciência.

Os jovens estão impacientes?
Sim. Este sentimento está a crescer entre os jovens, e também entre aqueles que estão a criar conteúdos para esta faixa etária. Há aqui um sentido de urgência, uma frustração, uma ideia de que o que está a ser feito não é suficiente. Se ser educado não está a surtir efeito, começa-se então a ser indelicado. A abraçar campanhas e o activismo, exigindo mudanças. Este tipo de evolução nos documentários sobre natureza emerge de gerações mais novas que se sentem defraudadas por líderes políticos, pessoas com os bolsos cheios por grandes empresas. Talvez possamos fazer um paralelo com movimentos dos anos 60, quando se reivindicava direitos nas ruas. Eram protestos raivosos, havia motins. Os protestos ambientais de hoje também estão a tornar-se mais enfurecidos.

Uma das feridas em que o Seaspiracy toca é a da certificação do pescado. Se os selos de qualidade que guiam os cidadãos estão a ser colocados em causa - é o caso do MSC e do Dolphin Safe -, como restaurar a confiança dos consumidores?
Acho que a própria organização precisa de se reformar para que os consumidores recuperem a confiança. O Marine Stewardship Council (MSC) foi capturado pela indústria na medida em que eles estão abertos a certificar empresas do sector que têm uma acção muito destrutiva na vida selvagem. Participei de uma objecção formal a uma certificação de pesca do atum que recorre a dispositivos de agregação de peixes. Este método envolve grandes quantidades de capturas acessórias [ou seja, peixes não desejados que vêm na rede], pesca fantasma [nome dado aos equipamentos de pesca descartados no mar] e poluição plástica. Ainda assim, o MSC quer seguir em frente e certificar este tipo de pesca como sustentável e boa, com aquela etiqueta azul na embalagem. Mas nós sabemos que se trata de uma pesca horrível, feita de uma maneira altamente destrutiva. Assim, se a organização quiser reconquistar a confiança do público, ela tem de mudar a maneira de agir, tem de proteger o ambiente em vez de apenas carimbar com o selo azul práticas industriais nocivas, que é o que ela faz hoje.

E o Dolphin Safe?
[Quanto aos golfinhos,] o MSC está muito atrasado na reforma do rótulo Dolphin Safe. Os golfinhos não estão a ser mortos directamente pela pesca, como eram no passado, mas estão a ser profundamente stressados pela proximidade das redes. De cada a vez que um golfinho é cercado por uma rede, estamos a provocar dano, porque animais stressados ​​​​​não se reproduzem. A população de golfinhos no Pacífico oriental não está a recuperar-se como deveria com a introdução do atum seguro para golfinhos. Isto está apenas a cobrir o problema, tornando-o menos visível. Antes, sabíamos que os golfinhos estavam a ser içados para o barco e esmagados por equipamentos pesados. Eram cenas horríveis, que levaram ao estabelecimento do atum seguro para os golfinhos. Estas imagens de horror desapareceram, mas os golfinhos ainda não estão seguros. É por isso que precisamos devolver integridade a esses rótulos. Eles têm de ser genuinamente confiáveis para que os consumidores confiem neles. Hoje, as pessoas tendem a ser cépticas em relação a qualquer rotulagem ecológica. E esse é o problema que enfrentamos no momento. Temos de restaurar a credibilidade desses processos, mas isso exigiria substituir ou reformar o Marine Stewardship Council enquanto organização. Mas o MSC não parece querer esta reforma, suspeito de que seja porque esta organização foi dominada pela indústria pesqueira.