André Rocha caminhou a costa da Madeira: “cenários mágicos”, “subidas e descidas vertiginosas”, um mundo “surreal”
“Mostra o quanto nós próprios nos podemos surpreender com o nosso próprio país”. André Rocha concluiu o mapeamento de uma grande rota na ilha da Madeira com condições para ser “um best seller mundial”. Foram cinco dias intensos, 208 quilómetros, “8200 metros de desnível acumulado ascendente”. No final, foi beber uma cerveja.
Eram cinco e meia da tarde desta sexta-feira, quando André Rocha deu os últimos passos na sua volta à Madeira. No Funchal, voltou ao mesmo sítio de onde partiu, mas com “uma noção e conhecimento da ilha completamente distinto”. “A primeira coisa que fiz quando terminei? Fui a um bar lá ao lado beber uma cerveja”, revela André à Fugas.
Esta segunda-feira, uma semana após o início da aventura, o gestor está de volta ao continente. Como souvenir, trouxe o sentimento de missão cumprida e as memórias dos lugares e pessoas que o foram acompanhando ao longo dos 208 quilómetros percorridos em cinco dias.
O declive, que André já antevia que seria o principal oponente, foi o que mais impressionou. “Encontrarmos em 200 quilómetros de costa o equivalente a uma subida quase ao Evereste em altitude é notável”. Ao todo, foram “8200 metros de desnível acumulado ascendente”.
Um factor que fez crescer o desafio, porque tão depressa estava “numa praia, ao nível da água do mar”, como de seguida enfrentava uma “subida vertiginosa” que, “numa curta distância”, conduzia “a uma altitude imensa”. “Há subidas que foram do mais vertiginoso que eu alguma vez fiz. Há algumas que parecem que estamos a subir paredes”, descreve.
Sem nunca duvidar que iria cumprir o objectivo traçado, o gestor de 45 anos confessa que “houve uma altura” em que teve “receio” e pensou que algo “poderia correr mal”. Quando estava a descer uma encosta da Floresta Laurissilva - uma espécie de “selva do Bornéu”, onde “a vegetação está tão alta que dá pelo pescoço” - o caminho era “muito pouco perceptível'’. Como tinha chovido no dia anterior, “estava com medo ou de escorregar, ou de partir uma perna ou de cair por uma ribanceira abaixo”. “Aí, como fui muitíssimo devagar, demorei para aí três horas para fazer três quilómetros”, conta.
O Camí de Cavalls em esteróides
As paisagens cinematográficas foram o cenário de todo o percurso. “Desde a Vereda do Larano, que liga a zona do Porto da Cruz até ao Caniçal, ao Caminho da Entrosa, que acaba no Arco de São Jorge… são coisas verdadeiramente cénicas, são cenários mágicos, de filme”, relata.
Enquanto a costa Sul impressiona por ser “mais soalheira, mais aberta, mais vistosa”, a beleza da costa Norte é “mais dura, mais sisuda e bem mais dramática”. “A possibilidade de termos numa só ilha duas realidades que são tão diferentes foi das coisas que mais gozo me deu”, manifesta.
A “antiga estrada marginal”, sobretudo na costa Norte, “circula entre as falésias e o mar”, e possui “uma imponência e uma magnitude” assinaláveis. Há segmentos que não resistiram ao tempo, porém “alguns ainda podem ser feitos a pé, e é de facto uma experiência que vale qualquer metro que se faça”. “Parece que estamos num mundo paralelo, quase pós-apocalíptico”, detalha André, porque dá a impressão de que “ali a civilização já não existe” e já só há “a natureza”.
Um dos propósitos da viagem era o mapeamento da ilha para a realização de uma futura rota turística. O ficheiro GPS vai ainda ser entregue, mas o gestor já fez o balanço da experiência junto da Associação de Promoção da Madeira. “Foi muito interessante e revigorante perceber que essa grande rota pode estar para breve e pode estar nos planos estratégicos de desenvolvimento da região”, afirma.
Com base na própria experiência, André crê que estão reunidas as condições para a criação de uma rota “que pode ser um best seller mundial”, apesar de existirem zonas que necessitam de “pequenos ajustes, seja no percurso, seja até em algumas condições infra-estruturais”. Um exemplo é a antiga estrada marginal que, com “algumas precauções” para “evitar a derrocada de pedras”, pode tornar-se um “postal turístico quase imbatível no mundo inteiro, porque é absolutamente surreal”.
O contexto natural, “toda a superação necessária, todo o drama de ter subidas e descidas vertiginosas e acabar em praias magníficas e depois voltar a subir”. “O mais importante, a Madeira já tem”, constata.
O próximo passo, acredita André, é criar “uma narrativa associada a uma travessia como esta, como Menorca tem o Camí de Cavalls, que é uma ferramenta de turismo impressionante e chama pessoas de todo o mundo”. Por causa de toda a inclinação, “a Madeira seria um Camí de Cavalls com esteróides”, atesta.
Ao longo dos cinco dias, André foi repousando em diversos alojamentos que encontrava pelo caminho. Uma componente que, aliada à gastronómica, pode, de igual modo, “fazer parte quase de uma rota oficial”, para “as pessoas saberem que, em função do seu nível de esforço, têm etapas predefinidas, e, no fim de cada etapa, podem ficar a dormir” num determinado sítio, e fazer a refeição num restaurante que lhes traga “experiências gastronómicas madeirenses”.
“Obrigado por fazer isto na nossa ilha”
Nas caminhadas, ganha-se uma “relação emocional” com os locais por onde se vai andando. Sítios que “são mosaicos” com “várias peças”: “a paisagem, os sons da natureza e as pessoas com quem nos cruzamos pelo caminho”.
André conta que, “também por causa da notícia do PÚBLICO e de outras que apareceram na Madeira”, a “iniciativa foi relativamente popular”. “Então havia pessoas que vinham falar comigo na rua e que me perguntavam como é que estava a ser dar a volta à ilha, que sempre tinham pensado como é que seria fazer isso e gostavam de fazer”, relata. Para além do entusiasmo, demonstravam gratidão, dizendo: “Obrigado por fazer isto na nossa ilha”.
Comparativamente à experiência que teve a percorrer a costa de Portugal continental, em solo madeirense “os declives do terreno são diferentes, a geologia é diferente e os sons da natureza são diferentes”.
“A Madeira tem as cagarras, uma espécie de andorinhas do mar, que fazem um som muito peculiar. E também me parece que deve ser a zona com maior população de lagartixas por metro quadrado. Eu nunca vi na minha vida tantos lagartos e lagartixas a passarem-me à frente. E sendo que estamos num trilho com vegetação, é constante o barulho de bichinhos a mexerem-se”, ilustra. “Em cinco dias de caminhada, só ouvi um podcast de 50 minutos, e foi numa altura em que estava a passar por uma estrada de alcatrão”, recorda, sem necessidade de outra banda sonora mais que a natural.
O livro que levou na mochila – Plataforma, de Michel Houellebecq –, incumbido da tarefa de ser uma escapatória, ficou praticamente por ler. “Adormeci todas as noites a lê-lo. O cansaço era tanto… Eu no total devo ter lido para aí umas 40 páginas, não consegui ler mais do que isso”, afirma.
Uma daquelas situações em que a realidade vivida antes do sol se pôr supera todas as linhas de texto que se possam ler à luz da lua. “Temos ali um filme quase a desfilar à nossa frente que é mais interessante do que qualquer livro que possa ter sido escrito”.
O “cá” pode ser melhor que o “lá”
“Andar a pé não é correr, não é uma maratona, não estamos a competir com ninguém”. André prefere olhar para a caminhada como “uma actividade de realização”, que vai partilhando com os outros através das redes sociais.
Com a Grande Rota Índigo, as “muitíssimas” mensagens que foi recebendo foram “sobretudo de estupefacção, às vezes quase de incredulidade” de “pessoas estrangeiras, mas também de muitos portugueses”. “Mostra o quanto nós próprios nos podemos surpreender com o nosso próprio país”, afirma.
A expressão mais comum foi: “Isto não parece cá”. “O que é extravagante, ou assim tão exuberante e imponente, estamos habituados a associar ao “lá”, ao que é do outro lado, noutro país ou noutro hemisfério, mas não. É importante perceber que o “cá” pode ser tão ou mais interessante que o “lá"”, declara. “Portugal, nas várias vertentes, continental ou insular, continua a ter sempre muitíssimo para nos impressionar”, conclui.
Texto editado por Luís J. Santos