O mar dentro de um búzio

De entre todas, são as conchas dos búzios as que melhor simbolizam a relação entre a biologia e a matemática, com uma grande variedade de formas e dimensões. O fenómeno mais intrigante que lhes está associado é o de emitirem um som contínuo quando os aproximamos do ouvido, que lembra o marulhar do oceano.

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Para ouvirmos o som emitido por um búzio, basta aproximar a sua abertura do ouvido Getty Images

João Zilhão, um dos mais talentosos arqueólogos portugueses, liderou uma equipa que identificou em dois locais da Península Ibérica, representativos do Paleolítico Médio e das populações neandertais, conchas marinhas decoradas e perfuradas velhas de 50 mil anos. Conclui que “dez mil anos antes de os humanos modernos terem sido identificados na Europa, o comportamento dos neandertais estava já organizado simbolicamente e assim continuou ao longo da sua trajectória de evolução”. Alguns destes símbolos foram criados há dezenas de milhares de anos a partir de conchas coloridas de moluscos marinhos.

As conchas atraem pela grande variedade de formas e pelas cores vibrantes, entre o cinzento, o amarelo ou o bronze. A sua utilização desde as fases precoces da evolução humana, como ornamento ou símbolo espiritual ou religioso, está associada ao desenvolvimento da representação simbólica e da arte pela humanidade. Em África, na Ásia ou no Médio Oriente algumas espécies de búzio chegaram ainda a ser utilizadas como moeda, devido à sua durabilidade, beleza e facilidade de manuseamento.

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Conhas perfuradas encontradas na Cueva de los Aviones, em Cartagena (Múrcia, Espanha) com 115 mil a 120 mil anos João Zilhão

As conchas marinhas são segregadas pelos moluscos, em particular pelos gastrópodes e pelos bivalves. Para isso, retiram da água do mar os iões cálcio e carbonato, que, nas baixas profundidades, estão próximos da saturação. À medida que o molusco cresce, as conchas vão acompanhando passo a passo o crescimento, desenhando formas diversas, por vezes espiraladas, quando o gastrópode vive na extremidade aberta da concha e a segregação da concha é ligeiramente assimétrica: a maior concentração de material de um lado do que do outro, desenvolve uma forma complexa, em espiral, que pode ser descrita de um modo matematicamente simples.

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Apanha de ameijoas ao largo de Setubal Daniel Rocha

De entre todas, são as conchas dos búzios as que melhor simbolizam a relação entre a biologia e a matemática, com uma grande variedade de formas e dimensões. O seu tamanho pode ir de menos de um centímetro a mais de meio metro. A cor e a textura são influenciadas por duas formas cristalinas do carbonato de cálcio, a calcite e a aragonite, e pela adição de uma matriz orgânica produzida pelo próprio animal, podendo a aparência ser rugosa ou nacarada.

Muito depois da morte do molusco que as produziu, as conchas viajam a grandes distâncias impulsionadas pela corrente oceânica. Quando mergulham no oceano, o carbonato de cálcio dissolve-se devolvendo ao meio os iões que o formaram. Uma parte tem, contudo, um destino diferente: impulsionadas pela corrente são transportadas perto da superfície até desaguarem na areia das praias, junto à linha de beira-mar. Contudo, o fenómeno mais intrigante que lhes está associado é o de emitirem um som contínuo quando os aproximamos do ouvido, que lembra o marulhar do oceano.

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Nas costas do Mar Negro Getty Images

A origem do som dos búzios

Para ouvirmos o som emitido por um búzio, basta aproximar a sua abertura do ouvido. Quando afastamos ligeiramente a concha, a intensidade do som aumenta. Quanto maior for a dimensão do búzio mais baixa é a altura do som. Búzios com formas e dimensões diferentes soam de forma diferente. A origem deste som é explicada de forma simples: os búzios capturam o ruído ambiente levando-o a sucessivas reflexões, quando as ondas de som progridem para o interior da concha em espiral. A sobreposição destes sons produz reverberação, cuja intensidade é amplificada pela convergência das ondas sonoras de tal modo que as várias frequências se misturam num todo mais homogéneo, que se assemelha ao som do mar.

O som produzido pelos búzios é parecido com o que a física chama “ruído branco”: um som complexo obtido pela mistura de sons com frequências diferentes, sem que nenhuma delas seja dominante, apresentando uma “densidade espectral plana” para a gama de frequências audível, entre os 20 e os 20000 hertz. O adjectivo “branco” é aqui utilizado no mesmo sentido em que a luz branca do Sol corresponde à mistura de todas as cores na proporção do arco-íris.

A concentração do som que tem lugar num búzio ocorre também no órgão que, no ouvido interno, amplifica o som ambiente e facilita a sua transmissão aos terminais nervosos. É também um caracol ósseo em forma de espiral, cuja componente central é o órgão sensorial da audição, que contribui para a concentração do som.

A tranquilidade no marulhar

Cada búzio tem um som ligeiramente diferente, em função da sua forma e dimensão, mas todos transmitem um som longínquo, persistente e repetitivo, sem oscilações repentinas. Estas características são em tudo semelhantes às do som produzido pelo marulhar incessante das ondas levantadas pelo vento. Este som transmite tranquilidade.

Porque é que o som da água, ou o marulhar das ondas, tem sobre nós um efeito tão importante? Os animais, e entre estes os humanos, estão alerta para os sons bruscos ou a repetição de sons transientes que formem uma textura sonora áspera, sendo activado um processamento cerebral distinto que sinaliza o perigo. Por isso, as sirenes utilizam sequências pulsadas de sons que despertam a reacção imediata. O som do oceano, pelo contrário, pode ser considerado um som que, sendo variável, é estatisticamente previsível. Este som é a antítese dos indicadores de perigo.

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Pedro Cunha/Arquivo

Um estudo publicado em 2020 baseado numa amostra aleatória mostrou que ouvir o oceano pode funcionar como um auxiliar na fase pós-operatória quando os pacientes são colocados nas unidades de cuidados intensivos. Os doentes que são submetidos a cirurgias descansam melhor ao som do oceano, que substitui razoavelmente a necessidade da escuridão e silêncio totais.

São vários os trabalhos de investigação que mostram que os pacientes colocados em salas de espera de hospitais a quem são transmitidas sons e imagens de ondas oceânicas relatam maior tranquilidade. Outra análise, publicada há apenas dois anos, mostra que, apesar da importância crescente dos riscos associados ao mar, a exposição a ambientes “azuis”, tais como rios, lagos ou a costa, contribui para a calma e a serenidade, e indirectamente para a saúde e o bem-estar. A busca incessante da proximidade da costa e a reprodução de “espaços azuis” em ambiente urbano ou em zonas desérticas são um sinal da relação estreita entre estes espaços e a perceção de bem-estar.

O arquiteto norueguês Kjetil Thorsen, autor da nova biblioteca de Alexandria junto ao Mediterrâneo, e de outras obras onde a interacção com o oceano é importante, é um dos que procuram uma maior ligação entre as cidades e os oceanos. Projectou um restaurante imerso a cinco metros de profundidade nas águas geladas de Lindesnes (Noruega) no Atlântico Norte, imaginado como uma jornada sensorial total. É-lhe atribuída a frase: “Ondas, tempo e vento têm sido nossos inimigos, elementos que devemos defrontar. As mulheres ficavam de pé a vigiar o mar pelos seus maridos, temendo que nunca voltassem. Os tempos mudaram. Estamos à beira de dominar as forças da natureza de uma forma inteiramente nova. (...) As cidades, que costumavam ser construídas para esconder o mar, estão agora a abrir-se a ele.”

Uma parte do contributo do oceano para o bem-estar provém do som, da cor e da imagem do mar, e da sua interacção com o litoral. É uma parte desta experiência que identificamos instintivamente no som emitido pelos búzios.

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Albufeira, Algarve VIRGÍLIO RODRIGUES

Conchas num oceano mais ácido

Uma parte deste mundo oceânico está em risco porque a segregação das conchas dos moluscos está a ser afectada pela acidificação do oceano. O pH médio do oceano global é hoje próximo de 8,1 (ligeiramente alcalino), mas este valor está a diminuir, como consequência do aumento da concentração de dióxido de carbono na atmosfera. Uma quarta parte deste aumento é absorvida pelo oceano, mas a sua reacção com a água leva ao aumento da acidez.

À medida que aumenta a acidez da água do mar, o equilíbrio químico desloca-se no sentido do aumento da solubilidade do carbonato de cálcio. As conchas tornam-se mais frágeis e com maior quantidade de defeitos, o papel de protecção é reduzido especialmente na fase larvar e aumenta a mortalidade. Apesar de estes efeitos variarem com as espécies consideradas, a sua importância encontra-se estabelecida de forma experimental.

O pH do oceano reduziu-se 0,11 desde o início da revolução industrial. Como a escala é logarítmica, tal corresponde a um aumento de cerca de 30% da concentração de iões hidrogénio. Esta pequena variação do pH médio tem um impacto desproporcionado nos processos fisiológicos de muitos organismos marinhos, de forma idêntica à que uma variação semelhante do pH no sangue humano teria para a nossa saúde.

Alguns modelos numéricos do clima estimam que se pode assistir a uma redução do pH da camada superficial do oceano de 0,4 até ao fim do século no cenário mais desfavorável. Uma redução tão importante irá ter um efeito significativo no equilíbrio químico que determina os processos de segregação e dissolução das conchas dos moluscos. A solubilidade da aragonite é superior à da calcite, pelo que os efeitos nas duas formas de cristalização serão diferentes. Este efeito irá ainda ser amplificado pelo aumento da temperatura da camada mais superficial do oceano.

Entre o oceano e o céu

A intensificação da acidificação nos próximos séculos e o aumento da temperatura à superfície têm um potencial destrutivo sobre as espécies de moluscos marinhos cujas conchas nos acompanham desde há dezenas de milhar de anos.

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A escritora Sophia de Mello Breyner Andresen Rui Gaudêncio

Sophia de Mello Breyner Andresen no poema O Búzio de Cós fala-nos da voz dos búzios e da sua melodia atlântica: “Este búzio não o encontrei eu própria numa praia/Mas na mediterrânica noite azul e preta/Comprei-o em Cós numa venda junto ao cais/Rente aos mastros balouçantes dos navios/E comigo trouxe o ressoar dos temporais/Porém nele não oiço/Nem o marulho de Cós nem o de Egina/Mas sim o cântico da longa vasta praia Atlântica e sagrada/Onde para sempre minha alma foi criada.”

Apesar de sabermos que ouvir o mar na voz dos búzios é uma ilusão, procuramos essa voz oceânica sempre com a mesma fascinação. Mesmo longe da costa, encontramos neles uma melodia que reconhecemos de imediato. Como diz Sándor Márai nas últimas linhas de A Irmã: “Uma melodia nunca tem ‘sentido’. Mesmo assim, conta algo que não pode ser dito por palavras.”

Geofísico