Oded Galor: “Há esta coincidência: políticas moralmente justas fazem aumentar o desenvolvimento económico”
O desenvolvimento humano sofreu uma tremenda aceleração desde a Revolução Industrial, que fez mudar o mundo, explica Oded Galor. Mas é sustentável continuarmos a crescer? “Sou optimista. É elevada a probabilidade de que surjam novas tecnologias para ultrapassar as limitações de recursos”, disse ao PÚBLICO.
A Jornada da Humanidade – As Origens da Riqueza e Desigualdade (ed. Lua de Papel) é um livro de economia, mas que se lê como se fosse um livro de história, revelando-nos as engrenagens que puseram em marcha o avanço da nossa espécie no planeta.
Este cientista, que tem dupla nacionalidade (israelita e norte-americano), é o fundador da teoria unificada do crescimento, uma ferramenta para compreender o processo de desenvolvimento ao longo de toda a história humana e da pré-história. “Desde o aparecimento do Homo sapiens em África há quase 300 mil anos”, escreve Galor.
A teoria identifica as forças que governaram o processo de desenvolvimento da humanidade no que chama a “época malthusiana”, ou seja, antes da Revolução Industrial, em que quando surgiam avanços tecnológicos, isso levava as pessoas a terem mais filhos. Com o aumento da população, em vez de as inovações se traduzirem num aumento de prosperidade, as pessoas regressavam à pobreza inicial. Esta “armadilha da pobreza” fez com que o crescimento estagnasse durante milénios, avançando a passos muito pequeninos. Até que aconteceu a Revolução Industrial, que representou uma fase de transição: “A espécie humana escapou à armadilha da pobreza e entrou numa era de crescimento económico sustentado”, explica Oded Galor.
Essa fase de transição ocorreu em momentos diferentes no planeta, o que gerou os grandes níveis de desigualdade com que nos confrontamos hoje.
Mas poderemos continuar a crescer para sempre? “Se há algo que podemos dizer com certeza, é que de cada vez na história da humanidade que enfrentámos limites, fomos suficientemente inovadores para evitar que estes nos restringissem demasiado. Sou optimista e a probabilidade de que surjam novas tecnologias que nos permitam ultrapassar as limitações de recursos é muito elevada”, disse ao PÚBLICO, numa conversa por videoconferência a propósito do seu livro.
Algo muito importante aconteceu com a Revolução Industrial. Pode explicar o que se passou?
Durante cerca de 300 mil anos da história da humanidade, quando as tecnologias avançavam, as populações cresciam, e por isso não havia grandes alterações no padrão de vida. As sociedades mantêm-se num estado de estagnação, no sentido malthusiano. [A Revolução Industrial] foi o momento em que o progresso tecnológico começou a acelerar até chegar a um ponto em que, para se navegar neste ambiente em que a tecnologia está a mudar rapidamente, as pessoas tiveram de começar a garantir que os seus filhos recebiam uma educação formal. Foi o momento em que a fertilidade começou a diminuir, e os avanços tecnológicos deixaram de se converter numa população cada vez maior, e em vez disso passam a criar mais prosperidade.
As pessoas tinham recursos limitados. Não podiam economizar naquilo que consumiam, porque viviam muito perto do nível da subsistência. Por isso, economizaram no número de filhos que tinham para os poderem educar. Consequentemente, o processo de crescimento libertou-se do efeito da população, que actuava como um contrapeso. É aqui que vemos esta drástica aceleração, a passagem da estagnação para o crescimento.
E quais foram os aceleradores deste processo?
O Homo sapiens surge no continente africano há cerca de 300 mil anos, com muito poucos indivíduos, que fazem inovações, mas a um ritmo muito lento. O progresso tecnológico era muito, muito reduzido, bem como o crescimento populacional. A adaptação humana era também lenta. Embora faça uma grande diferença quando vemos o que se passou ao longo de 300 mil anos, claro, avançámos desde as ferramentas de pedra até às tecnologias a vapor, no início da industrialização. Passámos de 2,5 milhões de pessoas, em vésperas da revolução da agricultura, há 12 mil anos, para cerca de mil milhões de pessoas no início da industrialização.
Embora pareça que o mundo está em estado de estagnação, na verdade acontecia um dualismo interessante no mundo malthusiano: por um lado, houve estagnação dos rendimentos per capita, durante 300 mil anos, mas por outro lado, vimos o progresso tecnológico gradualmente a acelerar, e o crescimento populacional também, tal como a adaptação humana à tecnologia, e chegou-se a um ponto em que a taxa de progresso tecnológico se tornou tão rápida que justificou o investimento no capital humano.
Durante todo o percurso da existência da humanidade, a tecnologia avançou, mas os lucros em termos de capital humano eram tão reduzidos que os pais não investiam na educação dos seus filhos. Isso não era exigido. Mas quando começou a industrialização, vemos o investimento na escola pública, que é enorme – na Inglaterra no século XIX, por exemplo –, e acaba por gerar um declínio na fertilidade e a transição demográfica, que traz a transição para o crescimento moderno.
Portanto, o investimento na educação dos nossos filhos foi um forte motor da redução da pobreza e do crescimento económico das sociedades.
Exacto.
No livro tenta “revelar o mistério da desigualdade”. Mas pode-se dizer que o mundo tem avançado para diminuir a desigualdade?
A certo ponto há uma transição da estagnação para o crescimento económico. Mas a transição não aparece no mesmo período de tempo em todo o planeta. A Europa Ocidental avançou no princípio do século XIX. Outras sociedades só o fazem muito mais tarde, para o fim do século XX. Uma vez que esta transição está associada ao aumento de 14 vezes dos rendimentos per capita, surge uma enorme divergência na economia mundial. Portanto, muita da desigualdade que vemos hoje tem origem neste facto de a transição da estagnação para o crescimento ter ocorrido em momentos diferentes.
Esta transição foi boa para a humanidade no sentido em que, globalmente, os seres humanos têm mais prosperidade do que antes. Mas, ao mesmo tempo, criou-se uma enorme desigualdade na economia mundial, que teve origem nos últimos 200 anos. E porquê? Por causa de condições que existiam anteriormente na história humana: forças geográficas, forças culturais, de diversidade, de instituições, que fizeram com que algumas sociedades estivessem prontas para a transição há 200 anos, e outras ficassem para trás durante muito mais tempo.
Porque foi a Europa o centro do crescimento na Revolução Industrial?
Há muitas explicações para vermos a transição acontecer na Europa em vez da China. Mas a explicação que eu proponho tem que ver com o grau de diversidade que existe na Europa, face à homogeneidade que existe nas sociedades do Sul da Ásia.
Na Idade Média, a China dominava o mundo tecnologicamente. A China está geograficamente isolada e usa esse isolamento para homogeneizar a população. Tem uma população muito coesa. E a coesão é muito importante para se ser eficaz no processo de produção, e se não for excessiva, pode permitir a existência de inovações.
Mas quando a industrialização está prestes a acontecer, a fluidez cultural na Europa é o factor dominante. E porquê? Em parte por causa da forma como está estruturado geograficamente o continente europeu. Está fragmentado, leva à criação de muitas entidades políticas em competição, movimento de diferentes culturas – povos nómadas chegam e fazem conquistas, os vikings, os romanos. Vemos uma mudança gradual na composição cultural da população europeia. E quando o progresso tecnológico se torna muito rápido, a fluidez cultural é essencial para permitir aos indivíduos adaptarem-se a estas mudanças.
Por exemplo, ideias como as do Iluminismo [século XVIII] não podiam ser aceites num local como a China, porque a sociedade é homogénea. De certa forma, não é voltada para o futuro, e ideias que desafiam o status quo, que encorajam a pensar de forma diferente, são alheias à cultura chinesa. Mas eram parte da cultura europeia, fazem parte da cultura do Século das Luzes, e prepararam a população europeia para o progresso rápido e adopção de tecnologias industriais.
Podemos esperar que a economia cresça para sempre? Isto é sustentável?
Essa é uma pergunta interessante e importante. Há toda uma literatura sobre os limites do crescimento, no sentido de que talvez se torne insustentável por causa dos recursos. Mas, quando se olha para a viagem da humanidade como um todo, parece que de cada vez que a humanidade enfrentou restrições de recursos aconteceu uma inovação, e esta limitação tornou-se menos redutora.
Isto aconteceu, por exemplo, antes da revolução da agricultura, há 12 mil anos. A humanidade estava a espalhar-se por todo o planeta Terra, já não havia mais nichos geográficos para serem descobertos e explorados, e para sustentar a população, e evitar uma grande extinção, a humanidade descobriu a agricultura. Foi um processo de descoberta de como domesticar plantas e animais, e isso acabou por permitir à humanidade extrair de um hectare de terra quase cem vezes mais do que poderia dar numa sociedade de caçadores-recolectores.
As tecnologias que temos hoje seriam concebíveis por alguém que estivesse no início do século XIX? A maior parte das pessoas diria que não. Agora estamos no século XXI e não podemos prever quais as tecnologias que existirão dentro de três ou quatro décadas e como alterarão o que entendemos por restrições de recursos. Mas se há algo que podemos dizer com certeza é que, de cada vez na história da humanidade que enfrentámos limites, fomos suficientemente inovadores para evitar que nos restringissem demasiado.
Sou optimista e a probabilidade de que surjam novas tecnologias que nos permitam ultrapassar as limitações de recursos é muito elevada.
Também põe uma grande fé na redução das taxas de fecundidade para conseguir que as emissões de dióxido de carbono venham a reduzir-se. Mas esse é um processo lento – será suficiente evitarmos que a temperatura média do planeta não suba mais do que dois graus Celsius?
Não vai chegar. Mas estou a dar uma perspectiva de esperança sobre a crise climática. Pense nisto: a crise climática que estamos a enfrentar começou com a Revolução Industrial, que gerou poluição industrial e emissões de carbono, que estão na origem das alterações climáticas. Mas ao mesmo tempo, a Revolução Industrial gerou uma enorme generalização da educação, gerou um progresso tecnológico muito rápido, aumentou o poder das inovações e deu início a um declínio na fertilidade.
Portanto, temos três forças. O declínio da fertilidade, que permitiu ter menos pessoas a poluir e em resultado disso poderia mitigar – não reverter, mas mitigar – o padrão actual e dar-nos talvez mais algumas décadas para desenvolver tecnologias revolucionárias que poderão mudar a rota das alterações climáticas.
Quanto ao poder das inovações, pense nele no contexto da covid-19. Se esta doença tivesse aparecido há 200 anos, a humanidade teria sido devastada durante décadas. Mas agora, no prazo de um ano, o poder da inovação permitiu-nos usar a tecnologia de ARN-mensageiro para desenvolver vacinas que em grande parte resolveram esta pandemia num período muito curto. Mais uma vez, a minha previsão – e isto é uma previsão probabilística – é que daqui a alguns anos acabaremos por ver o desenvolvimento de tecnologias revolucionárias que nos permitirão reverter os efeitos das alterações climáticas.
Mas não podemos ser complacentes. Isto não vai acontecer só por si, precisamos de tempo. Precisamos de passar a usar tecnologias amigas do ambiente, de fazer cumprir padrões a nível global para as emissões de dióxido de carbono, de pôr em prática todas estas políticas, para que isto nos dê mais duas ou três décadas.
Tenho esperança de que isto aconteça de facto, e não é uma esperança ingénua, baseia-se no que vi acontecer no passado: quando a humanidade enfrentou um desafio, foi criada uma solução. Aqui também será, desde que não sejamos complacentes e usemos todos os mecanismos internacionais de coordenação para restringir as emissões de carbono a nível global, para dar tempo aos cientistas para inventar estas tecnologias revolucionárias.
Tem uma visão optimista sobre como ultrapassar estas crises.
Exacto. Mas não é uma visão ingénua, é uma visão esperançosa, optimista, baseada na viagem da humanidade como um todo. A humanidade foi devastada ao longo da maior parte da sua existência. Pense na Peste Negra, em meados do século XIV. Quarenta por cento da população europeia foi dizimada, e mesmo assim, a Europa recuperou, e ainda com mais força do que antes. Em alguns lugares foram criadas melhores instituições, foi abolida a servidão do regime feudalista, noutros sítios houve avanços para tecnologias que fazem poupar trabalho, houve uma enorme quantidade de mudanças. Numa análise a grande escala, vemos que a humanidade recuperou.
De momento, há grande sentimento de pessimismo no mundo. Começou com a covid-19, agora é a guerra na Ucrânia, há a sensação de que estamos à beira de uma nova catástrofe. Mas baseando-me na viagem da humanidade, julgo que não há motivos para ter esta visão tão negra do futuro.
Quer dizer, a crise na Ucrânia é horrível, é devastadora para a população ucraniana, mas não acho que a guerra vá fazer descarrilar o percurso da humanidade. O que vejo na guerra na Ucrânia é a prova de como é forte o desejo de liberdade. Estamos a ver como pode levar à derrota do exército russo. O desejo de liberdade está a ganhar. Por isso mantenho-me muito optimista sobre o futuro da humanidade.
Também diz que não seria uma surpresa se as diferenças de salários entre homens e mulheres diminuíssem, porque mais mulheres vão tendo acesso à educação. Mas é a educação o único factor que está a travar a paridade entre os géneros, no que toca aos salários?
Vemos no decurso da história da humanidade, e nos últimos 200 anos, um declínio gradual da desigualdade de géneros. Infelizmente, não vemos paridade. A igualdade de géneros parece ser importante para o desenvolvimento económico, por muitas razões. Permite ter taxas de fertilidade mais baixas, permite a participação das mulheres na força de trabalho, e é um dos motores do crescimento económico.
Se pensarmos no mundo como um todo, vemos uma tendência para a igualdade de géneros, mas precisamos de lhe dar mais ênfase, em particular em lugares onde, por motivos históricos, existe uma grande desigualdade entre homens e mulheres.
No livro dou o exemplo do papel que teve o uso do arado na criação de desigualdade entre os géneros. O arado foi adoptado mais cedo em algumas geografias, onde os solos eram adequados [Sul da Europa, Médio Oriente e Ásia Central]. E como para o usar é preciso ter força na parte de cima do corpo, deu uma vantagem aos homens sobre as mulheres no trabalho agrícola. Antes da adopção do arado, homens e mulheres cultivavam a terra de forma mais ou menos igual, mas com a introdução do arado, as mulheres ficaram confinadas ao trabalho doméstico. O que vemos é que este padrão persistiu ao longo dos tempos e criou uma baixa participação das mulheres na força de trabalho, que se reflecte ainda hoje.
A sua teoria explica muito da nossa longa história enquanto espécie. Pode ser usada também para conceber políticas para o desenvolvimento em países mais pobres?
O que é interessante, na investigação que fiz, e no que aprendemos com a história, é que políticas progressistas conduzem ao progresso económico. O que mostro é que as sociedades mais diversas, que são capazes de conter os custos da diversidade, ensinando os seus jovens a serem mais tolerantes, são mais prósperas. As sociedades que dão ênfase à igualdade de género são mais prósperas, têm uma taxa de fertilidade mais baixa e uma maior participação das mulheres na força de trabalho. Há esta coincidência: políticas que nos parecem moralmente justas são aquelas que fazem avançar as sociedades e podem aumentar o desenvolvimento económico.
Deixe-me ser um pouco mais específico: por exemplo, o nível de diversidade varia muito entre os países. Algumas sociedades são muito diversas, outras são relativamente homogéneas. A diversidade tem efeitos contraditórios para o desenvolvimento. Por um lado, gera uma fertilização cruzada de ideias e isto é muito benéfico para produzir inovações, mas, por outro lado, a diversidade perturba a coesão social, gera conflito.
Isto significa que tanto sociedades onde haja demasiada diversidade como aquelas que são demasiado homogéneas não terão resultados tão bons como sociedades que tenham um ponto de equilíbrio. Quais são as implicações disto para desenvolver políticas?
Vejamos uma sociedade muito diversa, como a etíope. Tem sofrido muito com conflitos civis, um deles ainda persiste hoje. Segundo a minha teoria, em sociedades muito diversas temos de enfatizar a tolerância, respeito pela diferença, reforçar a importância do pluralismo. A educação na Etiópia deveria ser muito diferente da da Bolívia, que é muito homogénea, por exemplo. Na Etiópia, vou querer enfatizar a tolerância; mas na Bolívia, gostaria de enfatizar o oposto: usar o sistema educativo para encorajar os estudantes a “pensar fora da caixa”, a desafiar o status quo, a desafiar a autoridade, para criar a diversidade que está a faltar.
Portanto, a principal lição da viagem da humanidade é que não temos uma política que sirva para todas as sociedades. Diferentes sociedades têm diferentes histórias e as políticas que prescrevemos devem basear-se na história específica de cada país. Se a sociedade tiver uma história de diversidade, então deve-se enfatizar a coesão social e a tolerância. Se a sociedade tiver uma história de homogeneidade, deve-se enfatizar o oposto, a educação deve encorajar a desafiar o status quo, criar fluidez cultural. Ou se se tratar de uma sociedade que tem uma história de uso do arado, e em resultado disso temos falta de respeito pelas mulheres, mais uma vez, o currículo educativo deve sublinhar a igualdade de géneros.
Existe algum país que tenha o equilíbrio ideal entre homogeneidade e diversidade?
Isto é interessante. Se olharmos para o mundo na Idade Média, as sociedades que têm uma diversidade óptima são a China, a Coreia e o Japão. Mas hoje, se pensarmos nestes países, vemos nações muito homogéneas. Mas naquela altura atingiram um ponto ideal. Porque era um período em que a tecnologia não estava a mudar com muita rapidez e assim a homogeneidade torna-se muito mais importante do que a diversidade, a coesão social ganhar valor face à capacidade de inovar.
Mas à medida que se avançava para o mundo moderno, o que os dados nos mostram é que as sociedades com um ponto óptimo de diversidade eram as da Europa Ocidental e os Estados Unidos. Porquê? Porque têm um ambiente muito mais exigente em termos tecnológicos, e a diversidade permite às pessoas ter uma fluidez cultural para adoptar novas tecnologias, novas formas de pensar, transformações sociais.
À medida que avançamos para o futuro, a previsão é que sociedades ainda mais diversas serão favorecidas, porque o nosso ambiente está a tornar-se um desafio cada vez maior, por isso o benefício da diversidade aumenta e ao mesmo tempo, na maior parte das sociedades ocidentais, educamos os nossos filhos para serem tolerantes. Isto é muito importante. Torna os custos da diversidade mais reduzidos, e os benefícios aumentam. O resultado é que quanto mais avançarmos para o futuro, mais diversas serão as sociedades, ainda mais do que as que temos hoje.