No Gerês, Cabril exibe tradições e, pelo caminho, dá-nos natureza
Eram paragens de autocarro, agora são também montras para actividades tradicionais de Cabril. Um pretexto para visitar a freguesia e aprender. E ver as maravilhas naturais da Peneda-Gerês.
“Para mim, era um parque temático.” Paula Oliveira viveu os “momentos mais felizes” da sua infância “aqui”, em Cabril, terra da mãe, dos avós maternos. Nasceu em Lisboa e vinha de férias com a avó, que também estava na capital. “Andava sempre com a minha avó”, conta, “visitava as amigas com ela, ajudava no campo com ela”. Fazia, diz entre risos, “muitas cicatrizes, marcas para a vida”. Até o pai “alfacinha” (e “fadista, boémio e gingão”) a uma certa altura se deixou cativar por estas paragens do Parque Nacional da Peneda-Gerês (PNPG). A família mudou-se para Cabril durante uns anos e ele integrou a Trote Gerês - Cooperativa de Ocupação de Tempos Livres, fundada em 1987, já focada na prestação de serviços em alternativa ao turismo de massas, em equilíbrio com o património natural e cultural. Décadas depois, muitas voltas na vida, Paula, 44 anos, haveria de regressar a Cabril e fazer do património natural e cultural da região o seu modo de vida.
Regressou com um projecto de animação turística, conta, “tinha formação de guia em espaço rural”. O problema, prossegue, é que não havia alojamento em Cabril. “Estava aqui e ninguém sabia que existia”, diz - a solução foi criar um alojamento. Na mesma casa, onde, no Lugar da Vila (também conhecido por Vila de Cabril), nasceram a mãe e a avó, entretanto, reconstruída (“era um casebre quase medieval”, com “a corte em baixo”): em cima, fez uma casa de hóspedes; no rés-do-chão, o seu espaço de trabalho, “já pequeno”.
Quando instalou a oficina, a ideia era “documentar o ciclo do linho e da lã” e criar uma “experiência de turismo criativo” - os visitantes “vinham e aprendiam o processo” e ela ficava menos dependente de actividades estivais. “Mas, depois, juntei o material todo e fui aprendendo a trabalhar” - fez até um curso de sementeira. “Pé ante pé” chegou até à recentemente criada marca Roca Viva, “tecidos, fios e peças cem por cento made in Cabril” (e à necessidade de um espaço maior). Uma bifurcação da sua ideia original, a que há nove anos (chegou com um plano para quatro - “não sabia se iria adaptar-me”) a trouxe de volta, o projecto de animação turística Cabril Eco-Rural.
É neste que cabe o que agora nos mostra (e demonstra), o ciclo do linho - não vamos ao linhar (mas no campo ao lado da casa costumava haver um) nem às poças de linho (no rio Cabril, que corre já ali em baixo, “costumava haver várias, pertenciam a diferentes famílias”) - desde que se “arrinca”, como se diz por aqui, até estar pronto para o tear, através dos vários utensílios tradicionais, uns recuperados, outros réplicas feitas de propósito para ela. Apenas a roca foi recentemente trocada por uma roda de fiar - “é amiga das senhoras”, brinca, “fiar à mão é muito complicado”. E moroso. A roda, ao invés, “é super-rápida” e “não deixa de ser artesanal” - pés no pedal, dedos, “húmidos”, no fio: poupam-se horas e o produto final fica “mais acessível”.
Sobre o linho, publica este sábado o livro infantil Duas Sementes (às 15h, no Espaço Padre Fontes, em Montalegre), e continua a fazer visitas guiadas temáticas. Incluindo uma cujo mote é o Caminho Cultural de Cabril - quando a encontramos fizera a primeira na semana anterior, “com dois canadianos e um marroquino que estavam alojados no Hotel Gerês”: queriam “ter uma experiência mais cultural dentro do PNPG”, refere, “e até estavam a pensar no Soajo”. Receberam em troca um percurso com oito paragens de autocarro e um reservatório de água para nove ofícios tradicionais e actividades de Cabril representadas visualmente pela mão de diferentes artistas plásticos. “Fizemos uma abordagem ao modo de vida de Cabril. Este caminho das paragens ainda nos diz como se vive aqui”, explica. E “aqui” “não é o Gerês mais conhecido, não se associa Cabril ao Gerês”. Ainda que toda a freguesia do concelho de Montalegre - 15 aldeias, e 77 km2 de área - esteja inserida no PNPG.
Na serra: vezeiras e carrejadas
Foi o presidente da Junta de Freguesia de Cabril, Márcio Azevedo, quem teve a ideia de dar outra vida às paragens de autocarro - e, simultaneamente, homenagear a gente da sua terra e as suas traduções. “Já andava com a ideia na cabeça e um dia conheci a curadora [Susana Antão, ilustradora], em São Lourenço [uma das aldeias], estava de férias”, recorda, “disse-me o que fazia e eu propus ‘e se pintasses?…’”. Meses depois, já com a ideia bem “apurada”, contactou Susana Antão. “Expliquei o que pretendia”, diz, “e mandei fotos a representar o que queria. Eles [artistas] mandavam as propostas e eu aprovava” (ou não).
O Caminho Cultural de Cabril foi inaugurado no início de 2022 e é composto de “pinturas figurativas” que se distribuem pelos lugares de Lapela, Azevedo, Xertelo, Chelo, São Lourenço, Vila de Cabril, Pincães, Fafião, permitindo um percurso que “atravessa toda a freguesia”. É o que pretende Márcio Azevedo, “o ideal é que se comece numa das pontas e se vá até à outra”. Nós fomos indisciplinados e começámos mesmo no Lugar da Vila, ou seja, mesmo no centro da freguesia, a poucos metros da casa onde Paula Oliveira tem o seu atelier - e na paragem que “explica” o nome Cabril, corruptela do latim caprile (curral de cabras): desde tempos imemoriais aqui se faz pastorícia com a criação de cabras e o que vemos representado é a vezeira das cabras (ou rés).
Na página web da Câmara Municipal de Montalegre, Cabril é apresentado como “um mosaico de pequeninas povoações ao longo das encostas abrigadas que descem sobre os rios”. Perdemos a conta às vezes que subimos e descemos encostas, contornamos montes, olhando para uma paisagem que ora descansa em leiras verdes e “tufos” de bosques, ora se arrebata para o céu em rochas e urze, como num quadro impressionista. É por um destes quadros que seguimos em busca “das cabras do Freiria”, anunciam-nos.
Percorremos os mesmos trilhos da Grande Rota 50, que atravessa todo o parque nacional, atravessamos uma pequena ponte de pedra sobre o rio Pincães (vem em rebuliço, descendo o leito rochoso) e subimos até ao póio de Pincães, que sobressai entre o granito vizinho - a pedra neste afloramento está mais branca, “pelo ácido da urina dos animais”. Cada aldeia tinha o seu póio, que é um aglomerado de rochas que serve de protecção natural das cabras contra os lobos durante a vezeira - uma prática comunitária de junção dos rebanhos de uma aldeia para serem pastoreados em terrenos comuns (baldios, que em Cabril são dez mil hectares). Em Pincães já não há vezeira de cabras porque só o Freiria, melhor, Domingo Gonçalves, ainda tem cabras - “comecei com elas, vou acabar com elas”, sentencia. Desde que se lembra, “com cinco, seis anos”, toma conta de cabras; aos 11, já tomava conta da vezeira, na altura “300 e tal”. Agora tem 185 cabras, dois cães e uma rotina que começa bem cedo de manhã (“venho botá-las e fico até às 11h”) e termina ao final do dia - regressa por volta das 18h para que as cabras saiam do póio e comam nas redondezas. Às vezes é substituído pelo filho que estuda engenharia agrónoma em Vila Real e é pastor no tempo livre.
Domingos abre a cancela, mas, talvez pelas presenças inesperadas, as cabras não mostram vontade em mover-se - “se vier outra pessoa abrir e as chamarem não saem, porque estranham a voz”. Soltam-se assobios, grita-se “anda, anda” e o rebanho põe-se em marcha, cada vez mais desabrida, pelas encostas, levantando poeira. Durante os meses quentes, dormem aqui no póio, no Inverno regressam diariamente à aldeia, “demoram meia hora a chegar a casa”.
Durante 19 anos, Domingos, 57 anos, esteve no Luxemburgo, como tantos outros destas paragens, ouviremos. Regressou há 17 anos, para as cabras e para “a agricultura em geral”, incluindo vacas, sublinha, “que já estão lá em cima, mesmo no coração do Gerês”. Foram a 1 de Maio, em vezeira, como manda a tradição, mas “este ano não há vezeireiro”, conta, “são os donos que têm de ir lá acima ver onde andam”. E andam muito: “Percorrem a serra toda, até Lobios [Galiza], vão andando e comendo”.
As vezeiras, sejam de vacas ou de rés (cabra), são das tradições comunitárias mais arreigadas nestas paragens duras. A transumância estival marcava o ritmo colectivo das aldeias: durante o Inverno, os animais permaneciam na aldeia, dormiam no rés-do-chão das habitações (cortes), providenciando também calor, e pastavam nas proximidades; a partir de Abril iam para a serra (primeiro as cabras, depois as vacas e, finalmente, os bois) de onde voltavam a 29 de Setembro - os vezeireiros, os proprietários que se revezavam a pastorear segundo regras fixas transmitidas de geração em geração, dormiam nos abrigos de montanha.
A vezeira das vacas está plasmada nas suas paragens de autocarro em dois andamentos, digamos: em Chelo (por Luísa Crisóstomo), representa-se o início da vezeira, com o chamamento (com um “corno”) para que todos os proprietários reúnam os rebanhos, e segue-se serra acima pela encosta de Taboucinhas; em Fafião (Pedro Lourenço) encontra-se o pastoreio nas alturas da serra. Por estes dias estão 750 animais na serra - sem vezereiro a acompanhá-los em permanência, mas sempre com uma pessoa a ir todos os dias ver como estão.
A serra era também o local onde se semeava o centeio, a cerca de 1200 metros de altitude, aproveitando este vaivém de animais e gente: a sementeira era em Setembro, antes da descida, com ajuda dos animais; no Verão seguinte vinha a segada (o corte), depois a malhada e no final a carrejada - o transporte de tudo, alfaias agrícolas, semente, palha e colmo para a aldeia. As “carrejadas” deixaram de fazer parte do quotidiano de Cabril há quase meio século, mas o prémio EDP Tradições permitiu dar-lhes nova vida - que é também uma forma de promover o turismo, nota Márcio Azevedo, presidente também dos Baldios de Cabril, entidade responsável pela iniciativa, sobretudo o “da saudade”, com os emigrantes que regressam no Verão e reencontram as tradições da sua meninice. Em Agosto (em data ainda a marcar), subir-se-á à serra para novamente fazer a segada, a malhada e a carrejada, numa grande celebração - e o reservatório de água, no Lugar da Vila, enche-se de figuras que retratam cada uma dessas tarefas colectivas, num obra também ela colectiva.
Turismo: ver para crer
Num canto de Trás-os-Montes encostado ao Minho (o rio Cávado é a fronteira natural), Cabril não escapou ao êxodo rural que varreu o país nos anos de 1960. Se “culturalmente é muito rico, porque recebe influências das duas regiões”, nota Márcio Azevedo, o isolamento foi intenso. Durante muitos anos, os caudais de Inverno “eram grande bloqueio à vida, não se passava”: com a construção das barragens chegaram estradas e pontes que ajudaram a superar o enclausuramento natural, mas não evitaram que a população se fosse. Restam “cerca de 600 pessoas na freguesia”, aponta o presidente da junta, sendo que algumas “têm só nove, oito habitantes” - Fafião tem cem; Xertelo tem seis.
Por isso, muitas das actividades que outrora tinham grande predominância na economia de Cabril agora estão reduzidas à subsistência. O caso do azeite, por exemplo, cujo ciclo está ilustrado em São Lourenço (por Bruno Santos, “Mantraste”): dos sete lagares que existiram na freguesia - “produziam-se milhares e milhares de litros de azeite” -, sobram dois, usados para actividades várias. “Agora só se faz azeite para auto-consumo”, afirma Márcio Azevedo, “já não traz rentabilidade”. O mel, em compensação, parece permanecer forte, se atendermos à quantidade de colmeias pelas quais passamos, em sítios mais ou menos acessíveis. Só já não se usam as silhas de antigamente (retratadas em Pincães, por Miguel Brum), construções de pedra circulares e de paredes inclinadas destinadas a manter os ursos longe dos cortiços e que agora são ruínas. De resto, existem “aí uns 40 apicultores” em Cabril, produzindo mel de urze, sobretudo.
O milho na freguesia (a recolha deste está plasmado em Azevedo, por Carolina Correia) pode já não ser na mesma quantidade de antes, mas continua a plantar-se e a ter direito a comida especial para o momento - “cabra ao modo tradicional”, cozinhada “nas vindimas e nas vessadas [sementeiras]”. Quem nos conta é José Miranda, que veio de Braga, onde vive, à casa dos avós paternos para nos mostrar as cozinhas de antanho - há duas semanas tiveram a vessada do milho, os potes que vemos no meio da cozinha tradicional estiveram no exterior para preparar a comida. Regressaram ao lugar devido numa cozinha “tradicional do Barroso” (representada em Lapela por Maria Taborda, povoada de figuras femininas) - bem sob a enorme chaminé, sobre as achas (hoje apagadas) dispostas no chão de granito, diante do indispensável escano. Não faltam as copeiras (recantos de pedra nas paredes, como armários), forno a lenha, forno do pão e utensílios diversos, “alguns originais outros reproduções”, sublinha José Miranda.
O pólo do Ecomuseu do Barroso em Fafião é, sem surpresas, dedicado à “Vezeira e Serra” e funciona como “uma espécie de porta do PNPG”, com informação sobre actividades na região, e “uma ponte com cada vez mais empresas de animação turística que vêm do Porto com turistas internacionais”, explica Júlio Marques, o funcionário que trocou precisamente o Porto pela sua “paixão pelo PNPG”. Nesta aldeia comunitária, frisa, percebeu com a pandemia o quão importante é a entreajuda entre vizinhos. “Aqui servimos a população, muito envelhecida, tratamos de renovação de documentos, das questões com as finanças, fazemos pagamentos e somos ponte com os serviços de Montalegre e Vieira do Minho”, descreve, “como uma loja do cidadão”. Excepto que aqui é Júlio quem tem as chaves das finanças de todos - durante a pandemia, conta, o centro interpretativo fechou mas ele permaneceu em Fafião a ajudar: “Trato de tudo e estou sempre à disposição”, afirma, “a vida aqui é muito difícil, árdua. Todos os dias as pessoas passam na rua, no mesmo sítio, à mesma hora. Se têm, por exemplo, um problema com a televisão, nem que sejam sete da tarde, vão para a cama. Eu disse-lhes que qualquer coisa que precisem, a qualquer hora, estou disponível.” Também é guia nas rotas temáticas promovidas pelo ecomuseu, e que invariavelmente se adentram pela natureza, e ajuda no marketing, a sua formação.
A sala mais impressiva deste centro interpretativo é o auditório. Uma das paredes está coberta por um mosaico de fotografias de grande formato: são retratos dos habitantes de Fafião ao longo dos últimos anos - alguns nas suas actividades, outros apenas a posar. São rostos invariavelmente rugosos, curtidos, cansados - “É também dedicado aos emigrantes que voltam e gostam de lembrar as pessoas, algumas já faleceram”, nota Júlio. A sala de exposições, no primeiro piso, é ocupada, quando não há mostras temporárias, por painéis de continuidade, onde se exibem as actividades da população: estão lá a vezeira, claro, a matança do porco, a pastorícia, o trabalho no campo, a cozedura do pão.
É no equilíbrio entre estas tradições e a natureza que as embalou que Márcio Azevedo vê o futuro de Cabril. “Procuramos investimento externo e também mostrar às pessoas daqui que é possível viver do turismo”, explica, “são desconfiadas, têm de ver para crer”. “Aos poucos”, reconhece, “sinto que Cabril está a ganhar vida”. Quer um “turismo sustentável”, que se faça com vagar e sem multidões - afinal, este não é o Gerês conhecido.