Lisboa Mistura, “uma tentativa de optimismo” em tempo de novas ameaças

Em dois dias, sábado e domingo, o Palácio Pimenta volta a abrir-se a um festival que celebra a diversidade urbana. É o Lisboa Mistura, com muita música e entrada gratuita. No programa, sons da Ucrânia e do Afeganistão, mas também Tó Trips, Bateu Matou ou Cachupa Psicadélica.

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Cachupa Psicadélica (o cabo-verdiano Luís Gomes) encerrará o festival deste ano DR

De novo em Junho, e depois de um regresso cauteloso em 2021, o Lisboa Mistura está de volta àquele que passou a ser o seu espaço de eleição, os jardins do Palácio Pimenta, Museu de Lisboa, depois de ter andado em anos anteriores por outros lugares da cidade, como o Castelo de São Jorge, o Intendente, a Ribeira das Naus ou a Quinta das Conchas, no Lumiar. Organizado pela Associação Sons da Lusofonia e pela EGEAC Cultura em Lisboa, o festival Lisboa Mistura centra-se nesta edição em apenas dois dias, sábado 18 e domingo 19, entre as 16h e as 24h, com entrada livre.

A edição deste ano realiza-se num tempo de novas ameaças, quando a pandemia (que obrigou a cancelar a edição de 2020) ainda subsiste e em plena guerra na Ucrânia, com a invasão russa. Coisas que o festival não deixa de reflectir, como diz ao PÚBLICO Carlos Martins, da Sons da Lusofonia. “A pandemia ainda não passou completamente, para os músicos. Continua a haver uma atmosfera de recuperação, mas também de impaciência, porque as pessoas estiveram muito tempo sem poder exercer a sua profissão, sem poder fazer concertos. Mas para além disso, temos uma guerra que transformou potenciais imigrantes em refugiados. E em Portugal temos refugiados não só da Ucrânia, mas também do Afeganistão, que nós de alguma forma acompanhamos.”

Isso é visível logo no primeiro dia. Depois da abertura com um debate acerca de Jornalismo de Proximidade (um encontro com Mensagem, Setenta e Quatro e Viver Telheiras, com Curadoria da Associação Sempre Ligados), às 16h, haverá às 17h uma actuação de Kateryna Àyvdish, jovem cantora e pianista da Ucrânia com temas originais da artista e arranjos de canções ucranianas. E às 19h (depois de uma actuação da Orquestra de Percussão e Sopros D’Improviso, às 18h) haverá o concerto Afghanistan National Institute of Music (ANIM) apresenta TARANUM, um conjunto de músicos que toca instrumentos tradicionais afegãos e que têm actuado no seu país e fora dele. No sábado terá ainda, às 21h, a JazzOPA com Alice Neto de Sousa, Beware Jack e Tilt e, às 22h30, o grupo Bateu Matou: Ivo Costa (Batida), Quim Albergaria (Paus) e Riot (Buraka Som Sistema).

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Grupo de músicos do Afghanistan National Institute of Music no documentário Quando Cabul Canta, de Sahra Mosawi

No domingo, a abertura faz-se com novo debate (A Cultura como Ativo da Cidadania, este com curadoria da Gerador, às 16h), seguindo-se o DJ Shaka Lion (17h), a OPA - Oficina Portátil de Artes, com Com: Brain da 6eniou$, Cora x Jackie, Elton Faray, G Fema, O Partido (João Pestana e Uno) e Tsuki (às 18h30) e, à noite, dois concertos: Thomas Attar com Tó Trips (21h) e Cachupa Psicadélica (o cabo-verdiano Luís Gomes) com Danae Estrela, KRIOL e Scúru Fitchádu.

“O Lisboa Mistura é uma tentativa de optimismo, tendo a cultura como activação da cidadania”, acrescenta Carlos Martins, procurando explicar os objectivos desta iniciativa. “A grande tendência do festival, sempre foi, é esbater as grandes diferenças culturais e através desse esbatimento permitir o acesso à cultura de várias pessoas que não a têm e por outro lado chamar pessoas que não estejam, e não sejam, ‘guetizadas’ pela sociedade. Como é que isto se faz? Com uma programação criativa, juntando os factores da programação tradicional com o lado criativo da mesma. Para isso, fomos criando projectos próprios, incluindo neles a aproximação aos bairros.”

No fundo, é um trabalho de proximidade que a Associação Sons da Lusofonia procura fazer desde o início e que tem desenvolvido com iniciativas como a Festa do Jazz ou o Lisboa Mistura. Isto porque, segundo Carlos Martins, é a cultura que deve nortear tudo: “A exclusão cultural é que gera a exclusão social e não o contrário. Além disso, a desigualdade cultural é que gera a desigualdade financeira e não o contrário. É um pormenor, mas de grande importância. As pessoas basicamente não têm dinheiro porque não têm acesso à cultura.” E Carlos Martins dá um exemplo europeu: “Existe um programa de inserção social, de música criativa, na Europa que se chama We Insist e é exactamente o que nós fazemos, porque continuamos a insistir nestas ideias. A primeira coisa a fazer é criar comunidade, criar grupos, pessoas que trabalhem em conjunto, para depois, ao mesmo tempo, dar-lhes essa formação a nível musical e uma formação ao nível da cidadania. Ou seja: como é que se consegue ser cidadão de plenos direitos e deveres e ser um cidadão muito mais criativo de modo a arranjar soluções criativas para coisas que, de outra maneira, não têm solução.”

Isto aplica-se ao programa D’Improviso, que tem lugar nos palcos deste festival e, de outro modo, à OPA, também aqui presente. “A OPA é um programa com muito mais anos de existência e é também de trabalho para a empregabilidade. Porque podemos andar décadas a fazer projectos sociais, mas se eles não tiverem uma representação efectiva no mercado de trabalho, isto quer dizer que estamos a formar pessoas para a cidadania e para a cultura, mas não estamos a cuidar da sua subsistência. Porque, para uma sustentação a longo prazo deste trabalho, precisamos de ter pessoas empregadas nos bairros e nos seus sítios, para que continuem o trabalho por elas. Senão, o que acontece é que os projectos funcionam quando há verbas, mas quando não há, as pessoas param. O emprego é uma coisa essencial para que estes projectos continuem, para garantir o seu futuro.”

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