O ruído que produzimos na ria de Aveiro e na ria Formosa está a ser estudado

Projecto de investigação jUMP tem recolhido dados sobre ruído submarino em duas áreas geográficas com muitas espécies especialmente sensíveis à poluição sonora.

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Monitorização de ruído submarino na ria Formosa, no Algarve WavEC

Deverá decorrer até ao fim de Junho o jUMP, projecto de investigação de dois anos no âmbito do qual a associação sem fins lucrativos WavEC Offshore Renewables pretende compilar a informação existente sobre ruído submarino em Portugal e estudar o impacto da poluição sonora nos ecossistemas marinhos.

A iniciativa, que em termos financeiros é suportada em grande parte pelo Fundo Azul — que lhe destinou um investimento de quase 150 mil euros —, tem avaliado duas áreas geográficas que foram, desde logo, identificadas como especialmente relevantes: a ria Formosa, sapal situado na região do Algarve, e a ria de Aveiro.​

Clara Rodrigues, mestre em Biologia Marinha e Conservação que já esteve associada ao jUMP, enumera dois dos motivos pelos quais esses foram os territórios escolhidos. Diz que estes são locais importantes “tanto em termos de tráfego marítimo” — muitas embarcações de pesca e muitos navios de carga passam por aquelas águas, provocando ruído — “como em termos de biodiversidade marinha”, dado que albergam muitas espécies de peixes e cetáceos “sensíveis ao ruído” (como, por exemplo, as corvinas e os golfinhos-comuns).

Inês Machado, que coordena a área de Ambiente Marinho e Licenciamento da WavEC Offshore Renewables, classifica a ria Formosa e a ria de Aveiro como dois “berçários” para várias espécies que ali se reproduzem e “passam uma fase mais sensível do seu ciclo de vida”. “Estes animais”, aponta a especialista, “utilizam o ruído para, por exemplo, comunicar, acasalar e encontrar alimento”. Um nível de ruído “demasiado elevado”, refere, provoca ou pode provocar uma perturbação dos seus comportamentos.

A monitorização do ruído e a actividade humana

Luana Clementino, investigadora em bioacústica marinha na WavEC Offshore Renewables, recorda que, numa primeira fase, o jUMP, que arrancou em Janeiro de 2020, começou por fazer um “catálogo de gravações acústicas” que já haviam sido feitas em águas portuguesas. “Também fizemos uma revisão qualitativa das práticas de monitorização de ruído submarino e, ainda, um inventário com dados sobre a distribuição geográfica das espécies acusticamente sensíveis e as actividades antropogénicas produtoras de ruído”, refere.

Concluído esse trabalho, a própria equipa ligada ao jUMP fez, nas palavras de Clara Rodrigues, “199 gravações acústicas de ruído ambiente” e “quatro snapshots de monitorização de ruído nos dois locais de estudo”.​

Para o efeito, foram realizadas gravações acústicas a 16 de Março e 2 de Julho de 2021 na ria de Aveiro e 14 de Maio e 29 de Setembro do mesmo ano no Algarve (mais especificamente, na Armona, ilha da ria Formosa no concelho de Olhão). Ou seja: Inverno e Verão em Aveiro; Primavera e Outono no Algarve. “Realizámos a recolha em diferentes estações do ano porque queríamos perceber se elas provocariam alguma variação nos níveis de ruído”, clarifica Clara Rodrigues.

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Imagem de uma das gravações acústicas realizadas no âmbito do jUMP WavEC

Foram registadas diferentes fontes de ruído, tanto de origem natural como de origem antropogénica. Os sons derivados da actividade humana, sintetiza Clara Rodrigues, foram os “dominantes”.

Falando especificamente sobre as fontes de origem antropogénica, a especialista indica que foram obtidas “frequências baixas, médias e altas”. “As frequências mais baixas foram dominadas por embarcações comerciais (como, por exemplo, navios de carga), enquanto as médias e altas foram dominadas por embarcações mais pequenas (como, por exemplo, embarcações de recreio)”, diz.

Em Aveiro, o ruído foi emitido principalmente por embarcações comerciais (como cargueiros e rebocadores) e algumas embarcações de recreio (como lanchas). Quanto ao Algarve, as principais emissoras de ruído foram embarcações de pesca, como traineiras e arrastões. Clara Rodrigues diz ainda haver, ao largo da ria Formosa, “muitas aquaculturas de mexilhões, que também produzem ruído”.​

Foi no Algarve, sobretudo no Outono, que o ruído registado foi mais intenso. “Chegámos à conclusão de que os níveis elevados poderiam estar relacionados com a maior quantidade de actividades que então estavam a acontecer na área — mais embarcações de pesca estavam a passar pelas águas da ria Formosa naquela altura do ano”, sugere Clara Rodrigues.

A investigadora diz que as frequências emitidas por embarcações comerciais e de recreio “podem afectar as vocalizações e a audição de diferentes espécies marinhas”. Os peixes e cetáceos serem expostos aos níveis de ruído que elas produzem “seria o equivalente ao humano tentar comunicar-se com um ruído de fundo de uma máquina perfuradora ou um disparo de uma arma de fogo​”, exemplifica, dizendo que o jUMP tem demonstrado a importância de se investir mais na monitorização do ruído submarino a nível nacional.

Uma “informação de base extremamente relevante”

O projecto permite perceber se há espécies que estão a mudar de habitat devido aos níveis acrescidos de ruído? Não, não permite. O objectivo do jUMP, salienta Inês Machado, era fazer “não um estudo da biodiversidade” presente nas duas áreas geográficas avaliadas, mas “um mapeamento do ruído”.

“Esta caracterização sonora de duas zonas importantes e sensíveis do ponto de vista ecológico traz uma informação de base extremamente relevante a nível nacional”, defende a bióloga marinha, assinalando que os dados recolhidos podem “ajudar ao desenho de planos de monitorização futuros”. Similarmente, as recolhas podem ser “aproveitadas” por instituições e investigadores que desejem pegar no tema da poluição sonora e perceber de que forma o ruído submarino está a interferir com espécies específicas de peixes ou cetáceos.

A ideia por detrás do jUMP, recorda Inês Machado, era “colmatar uma falha” que existia no âmbito da Directiva-Quadro Estratégia Marinha (DQEM), que tem como objectivo obter — ou manter — o bom estado ambiental do meio marinho. A DQEM, diz a coordenadora da área de Ambiente Marinho e Licenciamento da WavEC Offshore Renewables, “monitoriza o ruído através de diferentes critérios, diferentes indicadores ambientais que detectam o bom (ou o mau) estado ambiental”. “Essas metodologias”, sustenta, “necessitavam de ser afinadas”.

Lembrando que cada ciclo de implementação da DQEM tem uma duração de seis anos e que, portanto, o bom estado ambiental é “reavaliado ciclicamente”, a especialista afirma que a informação analisada no âmbito do jUMP “ajuda a entender se estamos de facto a caminhar rumo ao bom estado ambiental” e, caso não estejamos, que medidas devem ser implementadas para a trajectória desfavorável ser invertida.

Inês Machado refere que o projecto “permitiu perceber que os níveis de ruído submarino são bastante significativos em zonas costeiras com elevada presença humana”. “Já sabíamos que essa era, muito provavelmente, a realidade, mas agora o ruído está caracterizado e as suas fontes estão identificadas”, destaca. “Se, agora, houver uma caracterização do som das espécies que podemos encontrar nas duas rias, já será possível aferir-se os impactos que o ruído tem nos animais marinhos”, assinala ainda.

O que ainda falta estudar

Referindo que “esta foi uma primeira avaliação em apenas dois locais”, Inês Machado frisa que há muitas coisas que futuros e similares projectos de investigação ainda podem fazer. Aumentar a quantidade de gravações acústicas é uma dessas coisas. “Foi possível fazer recolhas em diferentes estações do ano, mas elevar a frequência de amostragens poderia trazer novas informações”, conta.

Também é importante “aumentar a área espacial monitorizada”, isto é, “estudar novas localizações”. “Olhámos para Aveiro e a ria Formosa, mas a nossa zona costeira é imensa”, reflecte Inês Machado.

Outra ideia lançada pela especialista: “monitorizar espécies de cetáceos de maior porte”, “que vivem em águas mais profundas” do que aquelas que foram estudadas ao abrigo do jUMP. “Os programas de monitorização devem ser replicados ciclicamente de modo a avaliar melhorias ou degradações”, defende a bióloga marinha. A investigadora diz que a WavEC Offshore Renewables “necessita de uma renovação de financiamento” para continuar a investigar a problemática do ruído submarino, mas salienta que a vontade da associação sem fins lucrativos é dar continuidade ao estudo do tema.