Uma imagem de satélite faz a síntese desta história. Nela, é possível ver o verde da Terra Indígena (TI) dos Karipuna, no meio do estado brasileiro da Rondónia, rodeado de território dentado, amarelo, comido pelo desmatamento e pela agricultura. Nos últimos anos, Adriano Karipuna ouve aquela voragem a entrar cada vez mais frequentemente no seu território: as máquinas, os tractores, que apagam a paz da floresta. É mais um pedaço da Amazónia que treme e, com ele, é como se também a Terra tremesse um pouco. “Chega de colapso, já tem muito colapso no mundo”, desabafa o líder indígena brasileiro, que há anos enfrenta a destruição da floresta e das terras do seu povo. “Nós estamos brigando por todo o mundo, por 192 países. Enquanto os outros países não estão quase se preocupando com os indígenas”, diz, já perto do fim de uma conversa que teve com o PÚBLICO.
Adriano Karipuna esteve em Lisboa, durante a parte final de uma estadia de nove dias na Europa, e deu uma conferência no Iscte – Instituto Universitário de Lisboa intitulada “A luta indígena contra a destruição da floresta amazónica”. O líder, de 36 anos, começou a fazer activismo aos 14 e não parou desde então. “Para conquistar algo tem que ser lutado. No mundo todo foi assim, veja a história de Martin Luther King e de outras pessoas que lutaram pelo seu direito”, recorda. Hoje, a luta abarca a protecção da floresta, do território dos Karipuna e do seu povo. Mas é uma luta global. “Eu gosto de lutar porque estou defendendo a floresta. Estou ciente de que estou lutando por todo o mundo. Não era para lutar sozinho, era para muita gente estar do meu lado, me ajudando, com tudo. Mas os povos indígenas no Brasil estão sozinhos nessa luta.”
A TI dos Karipuna fica a algumas centenas de quilómetros a sul de Porto Velho, a capital da Rondónia, estado brasileiro que faz fronteira com a Bolívia e ainda é abarcado pela parte Sul da floresta da Amazónia. Com uma área de 152.930 hectares (equivalente ao concelho português de Alcácer do Sal), a terra dos Karipuna foi demarcada em 1997 e homologada no ano seguinte. A possibilidade da demarcação de terras indígenas foi uma das vitórias da Constituição de 1988, que fundou o regime democrático do Brasil após décadas de ditadura militar. Naquele documento garante-se aos indígenas “os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.
Infelizmente, nos últimos anos o Governo de Jair Bolsonaro está a tentar minar este avanço democrático. Por um lado, quer fazer aprovar o projecto de Lei 191/2020 que “regulamenta a exploração de recursos minerais, hídricos e orgânicos em reservas indígenas”, segundo o site da Câmara dos Deputados do Brasil. Por outro, há uma maior pressão para a aprovação do “marco temporal”, uma tese jurídica que coloca a data da aprovação da Constituição do Brasil – 5 de Outubro de 1988 – como limite para quem pode pedir demarcação de terras indígenas. Ou seja, apenas os povos que estavam a ocupar as suas terras nessa data é que poderiam pedir a demarcação do seu território. Esta limitação ignora cinco séculos de opressão e morte dos povos originários daquele país. Um grupo que tivesse sido obrigado a fugir do seu território, devido a ameaças, cinco, dez ou 50 anos antes da data do “marco”, apesar de ter vivido naquele lugar durante séculos, não teria direito a pedir a demarcação do seu território. “O Governo brasileiro tem que respeitar os povos indígenas”, reivindica Adriano Karipuna. “Nós não aceitamos esse projecto, achamos esse projecto criminoso, que afecta toda a população indígena.”
Além desta frente legal, há uma realidade bastante mais crua no terreno, principalmente nos últimos anos. Se em 2017 a área abatida da Amazónia ficou abaixo dos 4000 quilómetros quadrados, nos últimos três anos o valor atingiu números sempre acima dos 8000 quilómetros quadrados, de acordo com o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazónia (IPAM), uma organização científica, não-governamental, que defende o desenvolvimento sustentável da Amazónia. Parte deste desmatamento está associado à “grilagem”, uma “prática criminosa que envolve invadir, ocupar, lotear e obter ilicitamente a propriedade de terras públicas sem autorização do órgão competente”, segundo a definição do Fundo Mundial da Natureza (WWF) Brasil. “Quem está subsidiando, dando empoderamento para os invasores garimpeiros e de grilagem, é o Governo brasileiro, porque eles querem regulamentar o ilegal para o legal”, esclarece Adriano Karipuna. “Por isso sempre digo que a Embaixada portuguesa tem que cobrar do Brasil para parar com o desmatamento da terra indígena.”
Aldeia sem sossego
À volta da TI dos Karipuna, o resultado da grilagem é visível a partir do céu. As imagens de satélite mostram que a unidade de conservação extractivista Jaci Paraná, que faz fronteira com a TI do lado leste-nordeste, está amplamente esburacada. A unidade foi criada em 1996. Destinada à exploração sustentável e à conservação dos recursos renováveis, o território também deveria funcionar como um tampão para a reserva indígena. Mas os números do desmatamento desta unidade são esclarecedores. Entre 2001 e 2020, foram desmatados 127.151 dos 197.364 hectares da unidade, segundo os dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais do Brasil. Metade daquele desmatamento ocorreu nos últimos anos, entre 2015 e 2020.
Entre o verde da terra dos Karipuna, que se observa a partir das fotografias de satélite, e as terras ilegalmente usurpadas ao seu redor, existe o abismo que separa duas visões do mundo. “Há uma diferença muito grande porque a economia e o desenvolvimento só pensam em devastar a floresta, destruir a floresta, enquanto a floresta para nós é de suma importância. Ela traz vida, ela é mãe, então nós precisamos de cuidar da nossa mãe. Além disso, ela é fonte de grandes nascentes de rios, onde ainda existem espécies de animais e plantas”, explica Adriano Karipuna. “Está tudo bem com a agricultura, o mundo precisa de comer, mas é preciso saber de facto de onde estão a vir essas monoculturas, de onde estão a vir esses peixes, essas carnes. Fiquem muito atentos com o produto que vem do Brasil. Porque pode ser que esteja a vir de crime de desmatamento, de massacres de povos indígenas”, alerta.
O IPAM não traz boas notícias em relação a 2022, que já apresentou números recorde de desflorestação para a Amazónia. Só na Rondónia, o desmatamento nos primeiros quatro meses do ano atingiu uma área de 284 quilómetros quadrados, três vezes mais do que para o mesmo período de 2021. Esta pressão sente-se na TI dos Karipuna, onde já ocorreram vários episódios de desmatamento.
“O desmatamento vem acontecendo. Destruição, morte de activistas indígenas, morte de guardiões da floresta”, denuncia Adriano Karipuna. “Na aldeia Panorama [que fica na reserva indígena], a gente está sem sossego porque o nosso território está a ser invadido, estamos a passar por terror psicológico, ameaças de morte e ameaça do território. A gente não tem paz”, conta o activista, explicando que o movimento dos invasores é perceptível para a comunidade. “A gente escuta os madeireiros, eles entram com máquinas pesadas, tractor grande. Eles entram derrubando tudo. A floresta é silêncio e a gente escuta longe, sabe que está tendo invasor.”
Fonte de uma riqueza biológica e cultural imensa, a Amazónia tem também a capacidade de absorver uma grande quantidade de dióxido de carbono, o gás mais importante para o aumento do efeito de estufa da Terra. Por isso, a floresta é um dos mais importantes aliados na luta contra as alterações climáticas. No entanto, essa dinâmica pode mudar. À medida que áreas de floresta vão sendo desmatadas e queimadas, há um risco cada vez maior de haver uma alteração sistémica do regime climático e a floresta tornar-se uma savana, libertando enormes quantidades de dióxido de carbono e acelerando o aquecimento global.
Segundo Adriano Karipuna, as mudanças trazidas pelo impacto humano no ambiente são perceptíveis. “Já está chovendo antes do tempo, os rios estão secando antes do tempo, várias espécies de animais e árvores desapareceram. Não é preciso ser especialista para dizer que já está acontecendo um impacto ambiental e desequilíbrio climático”, conta o líder indígena. “Historicamente, nós sempre defendemos a floresta para salvar o mundo. A natureza em pé serve para todo o mundo, não serve só para os indígenas e para os Karipuna. O mundo precisa do equilíbrio climático.”
Luta incansável
Apesar de ter sido a primeira vez que Adriano Karipuna esteve em Portugal, o líder indígena já veio duas vezes à Europa para chamar a atenção para a situação do seu povo e da Amazónia. “Estive no sínodo da Amazónia com o Papa, em 2019”, refere. Durante a pandemia, trabalhou a nível virtual. Ainda este ano enviou uma declaração por vídeo ao Conselho dos Direitos Humanos das Nações Unidas, denunciando o risco de extinção que o seu povo corre. Após o contacto com representantes da Fundação Nacional do Índio (Funai), na segunda metade da década de 1970, e a aproximação com a população não indígena, os Karipuna que vivem na Rondónia passaram de cerca de meia centena para apenas seis, em 1996, de acordo com o site Povos Indígenas do Brasil. Esta enorme letalidade foi causada principalmente pela gripe e pela pneumonia, às quais os povos indígenas têm poucas defesas imunitárias. Hoje, as famílias Karipuna totalizam 60 pessoas, segundo o líder indígena, mas as ameaças continuam.
“A luta é incansável, a luta continuará, nós estamos nessa re-existência. ‘Existir para resistir’ é a frase dos povos indígenas”, refere. O que é mais difícil nessa luta? “A ameaça de morte que a gente sofre. Isso é muito difícil”, confessa, acrescentando que já foi ameaçado de morte várias vezes. “A gente já fez a denúncia para a Polícia Federal e para o Ministério Federal. Estão investigando, mas não sei mais detalhes”, relata. Mas isso não o demove de lutar contra a invasão das suas terras. “Têm que respeitar a nossa casa, porque o território indígena é a nossa casa, nós não estamos invadindo a casa de ninguém”, clarifica. “Isso que nós vivemos não deixa de ser uma guerra. A gente está vendo a guerra na Síria, está vendo a guerra na Ucrânia e Rússia, na Palestina, então isso também é uma guerra.”
É por isso que pede auxílio, não só na divulgação do que está a acontecer, mas também na denúncia, na fiscalização dos produtos que vêm do Brasil e no financiamento para a reflorestação e monitorização do território. “A União Europeia tem que nos ajudar reflorestando o que já foi destruído, no monitoramento e na fiscalização”, pede o líder indígena. “Já fazemos isso voluntariamente, mas como o território é muito grande, a gente quase não tem condições.”
Além disso, Adriano Karipuna defende a importância de um movimento inverso ao que ele tem feito nestes últimos anos, nas suas vindas à Europa. “Eu peço para as pessoas irem lá ver o que está acontecendo com o povo Karipuna, o que é que eles estão sofrendo, o que é que eles estão precisando”, diz. “Não é só divulgar, o mundo tem que ir lá, vestir a camisa e sentir a dor do outro. Sentir a dor do outro é algo mais profundo.”
Eleições à porta
Para o líder indígena, a dor dos povos indígenas é uma dor antiga. A independência do Brasil (1822) completa o seu bicentenário a 7 de Setembro deste ano, e haverá comemorações em Portugal para “sublinhar o relacionamento forte e mutuamente benéfico que os dois países souberam construir ao longo destes 200 anos”, lê-se no site do Portal Diplomático do Governo português. Mas o líder indígena observa esta efeméride com distância. “A gente tem um pé muito atrás com o português por causa da invasão que foi feita”, assume Adriano Karipuna, referindo-se à chegada de Pedro Álvares Cabral ao Brasil, em 1500. “Nós não temos esse olhar que o Brasil foi descoberto, nós já vivíamos ali”, refere. O encontro entre indígenas e portugueses deu origem a um dos eventos históricos mais terríveis da colonização portuguesa. Entre 1500 e 1825, o número de indígenas no território brasileiro passou de três milhões para 360.000, de acordo com os dados da Funai, devido à escravatura, a doenças como a varíola levadas pelos europeus para a América e à matança.
“Os portugueses foram responsáveis por muita coisa ruim no Brasil”, diz Adriano Karipuna. “E precisam reparar muita coisa para com os povos indígenas. Porque nós ficámos só com a tristeza e com as coisas ruins. Até hoje, isso dói muito para a gente”, explica, fazendo um paralelo actual da forma como o sofrimento pode marcar uma população. “Na Ucrânia está havendo muito bombardeamento, está morrendo muita gente. Mas a guerra pára e fica a destruição. Vai demorar muito tempo para recuperar dessa destruição emocional e física, porque fica na memória.”
Em Outubro, pouco tempo depois do bicentenário da independência, o Brasil vai ter eleições presidenciais num dos momentos mais complexos da história da democracia do país. O ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores (PT), é o candidato com mais possibilidades de derrotar o actual Presidente. Que política é que o líder indígena espera de Lula e do PT para os povos indígenas e para a Amazónia? “O Lula, se ele ganhar, vai pegar o Brasil num buraco”, diz Adriano Karipuna. “O actual Presidente sucateou quer a Funai quer o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais, que protege os territórios amazónicos, quer o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade. Estão sucateados, não têm recursos.” Por isso, “vai demorar muito para o Lula resolver tudo isso, ele precisa de ganhar nos próximos oito anos. Aí é que ele vai começar a consertar o rombo do Brasil”.