Portugal violou liberdade de expressão no caso dos autarcas retratados como burros e porcos

Caso dos cartoons da Câmara de Elvas leva a condenação da justiça portuguesa pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos.

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Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, Estrasburgo EPA/PATRICK SEEGER

O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos condenou uma vez mais Portugal por violação da liberdade de expressão. O caso remonta a 2007 e 2008, altura em que um cartoonista entretanto falecido retratou o presidente da Câmara de Elvas, o então socialista Rondão de Almeida, como um burro e vários vereadores seus como porcos.

Depois de os trabalhos de António Cadete terem sido publicados num jornal local e também num blogue gerido por um vereador da oposição, o Câmara dos Comuns, uma autarca que aparecia nos cartoons como uma porca envergando um cinto de ligas e meias de renda conseguiu fazer condenar em tribunal quer o autor dos desenhos quer os responsáveis pelas respectivas publicações, pelo crime de difamação agravada. Os arguidos foram condenados a entregar-lhe entre os três 2500 euros, a título de compensação por danos não patrimoniais, pelo tribunal de primeira instância, bem como ao pagamento de multas.

A sentença foi mantida pelo Tribunal da Relação de Évora, num acórdão proferido em 2013 que teve como relator o hoje juiz do Supremo Sénio Alves, magistrado que tem em mãos a Operação Lex, na qual é arguido o ex-desembargador Rui Rangel. “Os desenhos em causa sugerem efectivamente uma intimidade sexual entre a figura da porca e o burro, ou seja, entre a vereadora e o presidente da câmara”, escreveu Sénio Alves. “Para qualquer intérprete médio que viva numa sociedade ocidental e tradicionalmente católica, a imagem de uma figura feminina com o peito desnudado, meias de renda pretas, cinto de ligas e saltos altos tem claramente um sentido sexual, correspondendo tal imagem a uma mulher de mau porte.”

Acrescenta ainda o mesmo acórdão: “E não se diga que os actuais usos, modas e trajes femininos já ultrapassaram tal simbolismo, na medida em que muitas mulheres utilizam meias de renda, saltos e cinto de ligas, sem que isso as prejudique do ponto de vista moral ou social (se bem que não comparecem em actos públicos com o peito desnudado); é que neste caso não estamos no plano da moda, estamos, isso sim, no plano da linguagem visual – onde a única forma de identificar uma mulher de mau porte é através da utilização destes símbolos e clichés, ou seja, através da caracterização da imagem feminina com meias de renda, cinto de ligas e salto alto.” Numa das imagens a porca, nua e de gatas, aguarda que o burro, que está de calças baixas, lhe espete uma seringa no traseiro.

Mas apesar de entender que os cartoons reproduziram “certos estereótipos lamentáveis relativamente às mulheres no poder, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos decidiu esta terça-feira que a intenção do administrador do blogue, o vereador do CDS Tiago Abreu, foi sublinhar a sua carga de sátira política para assim criticar os seus oponentes na Câmara de Elvas. Os seus comentários “não continham nenhuma referência específica à vida privada e muito menos à vida sexual” da vereadora, observam os juízes de Estrasburgo. A autarca também já não é viva.

Neste ponto não houve, porém, unanimidade: numa declaração de voto, a juíza romena Iulia Antoanella Motoc deixou escrito que as circunstâncias deste caso “podem ser vistas como um exemplo de violência contra as mulheres na política”.

Unâmime foi porém a decisão de que a justiça portuguesa se excedeu na condenação que aplicou aos arguidos. Recordando que todos os autarcas foram caricaturados nus, e não apenas a vereadora queixosa, diz o tribunal europeu que Portugal não teve em conta os diferentes direitos em jogo neste caso, o da liberdade de expressão e o da reputação, ao esquecer o contexto de disputa política em que foram usados. E acrescenta que não se percebe como chegaram os tribunais portugueses à conclusão de que os desenhos insinuavam um relacionamento íntimo entre o burro e a porca, “dado que nenhum deles mostrou estas personagens beijando-se ou tocando-se”.

Hoje a trabalhar como assessor do CDS na Câmara de Lisboa, Tiago Abreu recorda que enquanto ele e o cartoonista recorreram a advogados oficiosos, já a vereadora queixosa usou dinheiros municipais para custear o advogado de renome a quem recorreu, João Nabais. O valor da indemnização rondava os 5300 euros, montante que o Estado português foi agora condenado a entregar.

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