A guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia veio dar um novo impulso político para a aprovação dos planos para a substituição do uso de combustíveis fósseis pelas energias renováveis e limpas que a União Europeia já tinha posto em marcha para reduzir as emissões de CO2 em pelo menos 55% até ao fim desta década, e atingir a neutralidade climática em 2050, que foram fixadas em lei durante a presidência portuguesa do Conselho da UE.
“É o único caminho para travar o aumento acelerado da temperatura na nossa casa comum, o planeta terra”, argumentou o eurodeputado socialista, Manuel Pizarro, numa intervenção durante o debate de mais de cinco horas no plenário de Estrasburgo das primeiras oito das 13 propostas do vasto pacote legislativo conhecido pelo nome de “Fit for 55”, que serão votadas (e na ausência de uma surpresa de última hora, aprovadas) pelo Parlamento Europeu, esta quarta-feira.
A urgência da transição energética, em resposta ao desafio geopolítico representado pela agressão da Rússia, ficou patente nas sucessivas declarações dos eurodeputados, que salientaram a necessidade de “fazer ajustamentos” e de “acelerar” as medidas que vão permitir pôr fim à dependência energética da Rússia. “Nesta hora difícil de guerra na Europa, deve-se contribuir para a nossa autonomia estratégica, e maior eficiência energética e maior uso de energias renováveis significam menor dependência de combustíveis fósseis”, observou Manuel Pizarro.
A proposta de fixação de novos standards para as emissões automóveis, que na prática determina o fim dos motores de combustão, é a que desperta mais interesse do público, mas entre os textos legislativos há outros com um impacto mais significativo no mercado europeu do carbono, nomeadamente a reforma do sistema de comércio de licenças de emissões (ETS, na sigla em inglês), que prevê o seu alargamento ao sector da aviação e do transporte marítimo — que como assinalou o eurodeputado alemão do Partido Popular Europeu, Peter Liese, “queima os combustíveis mais poluentes” mas até agora não estava sujeito às regras que se aplicam aos sectores da energia e electricidade.
“Com este pacote, estamos a quadruplicar os nossos esforços, e inclusive a ir mais longe do que isso, pois o nosso objectivo é conseguir reduzir mais de 60% das nossas emissões em oito anos”, apontou, referindo-se à meta da revisão do funcionamento do ETS e também à criação de um novo sistema paralelo para os edifícios e o transporte rodoviário.
Neste caso, a proposta do Parlamento Europeu é substancialmente diferente daquela que a Comissão apresentou: os eurodeputados isentam os consumidores individuais de aquecimento ou de gasolina do pagamento da taxa sobre o carbono, e deixam nas mãos dos Estados-membros a responsabilidade de introduzir as medidas necessárias para a redução da pegada carbónica da construção e do tráfego rodoviário, também no âmbito do regulamento que fixa a “partilha de esforço” para a redução das emissões em todos os sectores de actividade.
Liese, que foi o relator da proposta para a reforma do ETS, lembrou que no dia em que a Comissão apresentou o pacote global do “Fit for 55”, mais de 130 pessoas morreram afogadas em cheias de proporções inéditas que atingiram a Alemanha e a Bélgica. “Estamos a ser confrontados com secas extremas e com vagas de calor, Estamos a ver pessoas a sofrer e a morrer no centro da Europa”, disse, sublinhando que “o aquecimento global não é um problema de pequenas ilhas e de ursos polares, é um problema de todos, que será impossível de resolver se não agirmos já”.
Uma das acções mais imediatas — com um reflexo muito visível no quotidiano dos europeus — passa pela redução das emissões que resultam do transporte rodoviário, e que representam 20% do total da UE. Para isso, o Parlamento Europeu propõe fixar novos standards para as emissões automóveis em 2025 e 2030, e proibir o lançamento no mercado de veículos que emitam CO2 e outros poluentes a partir de 2035.
A proposta reuniu uma curta maioria na sua aprovação em comissão, e a votação em plenário deverá ser novamente à justa. Mas o seu relator, o holandês Jan Huitema, do grupo liberal Renovar a Europa, está confiante que será aprovada, dados os “benefícios” para o ambiente e para o consumidor, em termos de custos. “Neste momento, já é muito mais barato abastecer um veículo eléctrico do que um carro a gasolina, e também os custos de manutenção são mais baixos”, notou.
Para já, ainda é mais caro comprar um carro eléctrico do que um carro a gasolina ou diesel, mas a expectativa de Huitema é que esse “problema” fique resolvido com a aprovação da lei, que não só estimulará a inovação dos construtores automóveis, “que terão mais clareza para poder produzir carros de emissões zero melhores e mais baratos”, como ainda abrirá espaço para um mercado de segunda mão. “Estes veículos vão deixar de ser apenas para os ricos e vão passar a estar disponíveis para toda a gente”, acredita.
A criação de um novo Mecanismo de Ajustamento de Carbono nas Fronteiras (que ficou conhecido como CBAM) é importante como medida ambiental, mas foi também reclamada pelos eurodeputados como um novo recurso próprio do orçamento comunitário: será uma das novas fontes de receita que permitirá aos 27 sustentar os pagamentos dos empréstimos contraídos para constituir o fundo de recuperação “Próxima Geração UE”, no valor de 750 mil milhões de euros.
O eurodeputado do PS, Carlos Zorrinho, que foi o relator sombra da proposta, descreveu o CBAM como um “instrumento fundamental para promover e apoiar a agenda de descarbonização da indústria europeia, incentivando em simultâneo dinâmicas de transformação e inovação que a conduzam a patamares mais elevados de sustentabilidade e competitividade”. Zorrinho espera que a introdução do CBAM “permita ainda incentivar a adopção de boas práticas ambientais noutras zonas do globo”.
Novo fundo elogiado
Também com repercussões orçamentais, a proposta para a criação de um novo Fundo Social de Acção Climática foi genericamente elogiada pelos eurodeputados, que introduziram na legislação novas definições de pobreza energética ou de mobilidade, para facilitar a distribuição das verbas aos grupos mais vulneráveis à subida dos preços da energia ou às deficiências das redes de transportes públicos. “Com este fundo, milhões de euros de investimentos vão chegar aos cidadãos de toda a Europa que estão confrontados com os desafios das alterações climáticas e com o esforço de reduzir as emissões e de acabarmos com a dependência da Rússia”, salientou o relator David Casa, do PPE.
Porém, os parlamentares defenderam um envelope financeiro superior aos 70 mil milhões de euros previstos pela Comissão. “A transição [energética] pode no imediato afectar negativamente a vida de muitas famílias e muitas empresas, é essencial por isso criar o Fundo Social para a Acção Climática, apoiando financeiramente as famílias e o seu consumo energético, diminuindo os gastos com o transporte público e ajudando as PME. Precisamos que esse fundo tenha uma muito maior dotação financeira, porque a transição climática tem que ser socialmente justa”, afirmou Manuel Pizarro.
A comunista Sandra Pereira também considerou que o valor proposto para o novo fundo é “claramente insuficiente”. A eurodeputada contestou a “metodologia de cálculo da dotação financeira, que prejudica singularmente um Estado-membro: Portugal, que é o único país cujo rendimento nacional bruto per capita é inferior a 90% da média da UE, que terá uma alocação da percentagem total do fundo inferior percentagem da respectiva população no conjunto dos 27. É uma discriminação injustificável que urge corrigir”, reclamou.
A contrastar com o apoio da larga maioria do Parlamento Europeu ao “Fit for 55”, destacou-se a bancada da extrema-direita, que rejeitou todas as propostas apresentadas pela Comissão Europeia e vai votar contra todos os textos acordados pelos eurodeputados nas diferentes comissões.
Já o grupo dos Conservadores e Reformistas Europeus (ECR), dominado pelos polacos do PiS, diz que concorda com o objectivo da transição energética mas opõe-se às propostas do “Fit for 55” que, nas palavras da eurodepurada Beata Szydlo, “implica enormes custos sociais e económicos”. “Precisamos de reformar o sector da energia, mas este plano só vai aprofundar a pobreza energética e reduzir a competitividade das nossas empresas. Não devemos avançar com medidas que vão além das nossas capacidades, tendo em conta o actual contexto de guerra na Ucrânia”, entende.