Sensibilidade e bom Direito

A pena de prisão tem sido suspensa em 90% dos casos de condenação por violência doméstica, pelo que urge tentar perceber se esta tendência se impõe, efetivamente, face ao que a lei estabelece quanto aos fins das penas e se cumpre com estes. A nosso ver, a resposta é negativa.

A leitura de acórdãos dos nossos tribunais tem-nos feito pensar sobre o seguinte: muitas vezes, parece não ser possível combinar em quem pensa e aplica o Direito a figura do jurista e do ser humano. Isto porque a descrição dos factos conduz-nos frequentemente a, instintivamente, sentir que o desfecho de certos casos não deveria ser o que resulta da decisão judicial.

As penas por violência doméstica rondam invariavelmente os dois ou três anos de prisão, suspensa na sua execução, o que significa que este tempo é vivido em liberdade, mediante o cumprimento de regras de conduta e deveres.

Então, quadros que se arrastam por décadas de medo, envolvendo insultos e humilhações constantes, ameaças de morte, vários episódios de violência física com socos e bofetadas, perante crianças, abrangem-se num crime de violência doméstica, punido nos termos descritos. Atente-se, nomeadamente, na decisão da 1.ª instância, que deu origem ao acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 28/10/2021: a uma situação como a referida, em que a vida de mãe e filhos fica para sempre, senão destruída, severamente marcada, foi aplicada a pena principal de três anos de prisão, suspensa na sua execução.

De acordo com o Ministério da Administração Interna, a pena de prisão tem sido suspensa em 90% dos casos de condenação por violência doméstica, pelo que urge tentar perceber se esta tendência se impõe, efetivamente, face ao que a lei estabelece quanto aos fins das penas e se cumpre com estes. A nosso ver, a resposta é negativa, porque muitas destas penas não refletem a gravidade dos atos cometidos e das suas devastadoras e duradouras consequências, não asseguram devidamente a reintegração do agente na sociedade e causam espanto e insatisfação na comunidade, fazendo com que vítimas reais e potenciais se sintam desprotegidas e vigore o sentimento de impunidade dos agressores.

Decisões como estas - e as acusações que as precedem - falham também ao não destacar diversos crimes, quando as circunstâncias o impõem.

Assim, particularmente penosa de analisar é a situação que deu origem ao acórdão da Relação de Lisboa, de 16/12/2020. O relato dos maus-tratos perpetrados durante o período de convivência do casal remete-nos para um filme de terror: espancamentos múltiplos, de enorme gravidade e agressões sexuais a uma mulher de saúde extremamente débil, após cirurgias, nomeadamente a um cancro da mama e aos ovários, durante tratamentos de quimioterapia, que levaram a vítima a ficar inconsciente e a ser hospitalizada diversas vezes, ameaças de morte, na posse de armas de todo o tipo, constantes insultos a si e às suas filha e neta, com as quais a proibia de contactar. Tendo-se iniciado vários inquéritos em sede de processo penal, um avançou e o arguido teve de se afastar da vítima. Nesse contexto, expulsou-a de casa, através de perseguição e ameaças, levando-a a refugiar-se numa roulotte, sem condições de habitabilidade, e a falecer, três dias depois.

A 1.ª instância condenou o autor de todo este horror na pena de 6 anos e 9 meses de prisão, por um só crime de violência doméstica agravada, por ter resultado em morte. Ainda assim, o agressor recorreu (sem sucesso) para o Tribunal da Relação.

Olhemos, também, ao acórdão de 27/9/2017, da Relação do Porto, relativo a uma situação de violência doméstica, no âmbito da qual se perpetraram três agressões sexuais. Face à previsão legal que diz que as condutas que se consideram violência doméstica, devem ser punidas enquanto tal apenas se outra norma, com pena mais grave, não for aplicável, este tribunal deliberou que o crime de violação, cuja pena ultrapassa a do crime de violência doméstica, deveria sobrepor-se a este, anulando-o. Se é certo que a lei tem de ser alterada, pela incerteza que gera, a decisão podia ter optado por uma interpretação da norma mais consentânea com a proteção dos valores fundamentais em causa, punindo as condutas de agressão sexual enquanto crimes de violação e as restantes ofensas enquanto violência doméstica.

O mesmo acórdão fixou que as três condutas de agressão sexual perpetradas correspondiam a apenas um crime, com base na chamada teoria do “trato sucessivo”. Esta implica, nomeadamente, que, sendo as agressões sexuais prolongadas no tempo e tornando-se difícil precisar o número de vezes que ocorreram, se deverá considerar que só existiu um crime, agravado pela repetição. Atente-se, por exemplo, ao decidido pela Relação de Lisboa, a 16/2/2021: tendo o padrasto que violou a enteada dos 7 aos 13 anos, quase diariamente, sido acusado de 1616 crimes de violação e abuso sexual, a Relação manteve a pena de 14 anos e 8 meses de prisão, aplicada pela 1.ª instância, por um só crime de violação agravada. Esta tese resulta sempre numa diminuição drástica da pena e passa a mensagem a agressores e vítimas de que o número de vezes que se agrediu ou se foi agredido, não importa.

Terminamos esta exposição de casos, com um dos muitos acórdãos que exigem às condutas, para que constituam violência doméstica, uma gravidade desmesurada que a lei penal não requer. Olhe-se, então, à decisão da Relação do Porto de 2/2/2022, que considera que duas situações, em que o arguido coloca os joelhos sobre o corpo e o pescoço da namorada, lhe agarra e puxa o cabelo, procurando forçá-la a fazer sexo oral, levando ao seu desfalecimento e queda no chão, não atingem “o patamar do mau trato físico ou psíquico pressuposto pela violência doméstica” e absolve o agente pela tentativa de violação ou ofensa à integridade física, que entende poderem estar em causa, por serem crimes cujo procedimento depende de queixa, ao contrário da violência doméstica, e os factos não terem chegado ao conhecimento do Ministério Público no prazo de seis meses fixado na lei.

Concluímos, apontando alguns fatores que poderão estar a contribuir para esta situação: uma formação jurídica essencialmente atenta a aspetos teóricos e técnicos da lei e quase omissa quanto ao impacto que a aplicação das normas tem na vida das pessoas, o desconhecimento, ainda frequente, associado a certos fenómenos criminais e a influência de preconceitos seculares que traduzem e perpetuam a desigualdade de direitos entre homens, mulheres e crianças. De um ponto de vista mais prático, algumas decisões dissonantes do sentido comunitário de justiça serão também fruto de tribunais atolados em trabalho, que julgam à semelhança do anteriormente sentenciado, não arriscando romper com a jurisprudência estabilizada.

Sob pena de descredibilização do sistema de justiça, a mudança impõe-se.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

Sugerir correcção
Comentar