Isto é o que acontece quando a seca devolve ao Iraque uma cidade com 3400 anos

As condições climáticas têm tornado mais longos os períodos em que os vestígios de Zakhiku, habitualmente submersos na albufeira da Barragem de Mossul, ficam acessíveis. Os arqueólogos não perdem a oportunidade de voltar a um lugar que tem ainda muito por contar.

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Vista geral do sítio arqueológico da antiga cidade de Zakhiku, habitualmente submerso Muhammed Felah Ibrahim/Anadolu Agency /Getty Images

A imagem de uma antiga cidade no Iraque, resgatada às águas de uma albufeira de tempos a tempos, não pode deixar de evocar a quem conheça Vilarinho da Furna, no Gerês, aldeia que uma barragem reduziu à condição de ruína submersa no início dos anos 70, isto mesmo que a separá-las estejam milhares de quilómetros e mais de três mil anos de história.

Zakhiku, 30 km a sudeste de Dohuk, cidade iraquiana em que a maioria da população é curda, foi construída há cerca de 3400 anos num local que foi sendo sucessivamente habitado até que, na década de 1980, o regime de Saddam Hussein decidiu construir a Barragem de Mossul, estrutura que levaria à submersão daquela área e que ditou o realojamento das populações que ali viviam.

Centro importante do império mitani, que se desenvolveu entre 1550 e 1350 a.C. no norte da Mesopotâmia (um território que compreende hoje grande parte do Iraque e do Kuwait, assim como algumas regiões da Síria), Zakhiku está quase sempre debaixo de água mas, de cada vez que aparece à superfície, faz as delícias da comunidade científica.

Fica visível geralmente em Novembro, em anos em que o Verão é particularmente intenso e exige que se retire mais água deste gigantesco reservatório para que as colheitas da região não morram, explicou Hasan Ahmed Qasim, director da Organização de Arqueologia do Curdistão, à publicação especializada em notícias do mundo da arte The Art Newspaper.

O Verão de 2021 foi um desses verões. Quando em Dezembro as ruínas deste centro urbano milenar ficaram acessíveis, os arqueólogos estavam já à espera, prontos para dar continuidade ao trabalho de 2018, o último ano em que reemergiu.

Desta vez, no entanto, devido à seca que assolou aquela região do país, fazendo baixar o nível das águas da albufeira para cotas sem precedentes, conseguiram trabalhar no local até finais de Fevereiro. E trabalharam depressa, porque sabiam que, embora maior do que a habitual, a janela de tempo de que disporiam seria sempre insuficiente quando comparada com aquela que gostariam de ter.

Depois do palácio

A campanha de escavações deste ano foi particularmente bem-sucedida, reconheceu Qasim ao site de notícias de ciência ScienceAlert, que faz referência aos relatórios da equipa de investigação liderada por este arqueólogo e por colegas das universidades alemãs de Freiburg (Ivana Puljiz) e de Tübingen (Peter Pfälzner).

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Vasos cerâmicos onde foram encontradas as placas com escrita cuneiforme do período assírio Muhammed Felah Ibrahim/Anadolu Agency /Getty Images

Além de terem continuado os trabalhos no edifício que acreditam ser um palácio, localizado em 2018, os arqueólogos conseguiram mapear praticamente toda a cidade e identificar outras estruturas de relevo: uma fortificação, que ainda conserva parte das muralhas e das torres; um complexo industrial e um grande armazém, todos datados do período mitani.

Este último é de particular importância porque indica que ali se guardavam, muito provavelmente, enormes quantidades de produtos oriundos de toda a região, algo que atesta a importância da cidade, disse ao Art Newspaper a arqueóloga Ivana Puljiz.

Os arqueólogos acreditam que foi um terramoto que assolou a região há mais de três mil anos que permitiu que os seus vestígios chegassem à actualidade em tão bom estado de conservação, um feito considerável atendendo a que os edifícios eram então construídos com tijolos de lama que secavam ao sol. Com o abalo, os tectos abateram e o entulho que daí resultou acabou por ajudar a consolidar as paredes, que ainda hoje conservam pinturas.

“Os resultados das escavações deste ano mostram que este sítio era muito importante para o império mitani”, acrescentou o colega Hasan Ahmed Qasim. Entre estes resultados, detalhados no comunicado das universidades alemãs, estão vários materiais, com destaque para 100 placas de argila do período assírio (1350–1100 a.C.), gravadas com escrita cuneiforme e encontradas dentro de vasos de cerâmica.

“É quase um milagre que placas cuneiformes feitas de argila crua tenham sobrevivido tantas décadas debaixo de água”, disse por sua vez Peter Pfälzner, acrescentando que o “império mitani é um dos menos conhecidos do antigo Médio Oriente”, tornando ainda mais importante a descoberta.

Estas placas, que ficarão agora à guarda do Museu de Dohuk, serão profusamente documentadas e estudadas nos próximos anos, mas é já possível afirmar que contêm muita informação sobre a conquista assíria deste império antigo e sobre a sua organização política e social, de acordo com o arqueólogo curdo.

Motivos políticos

Hasan Ahmed Qasim não tem dúvidas de que na região há muitos outros sítios de interesse arqueológico que permanecem por identificar. Mais de 100, garante. A arqueologia no Curdistão iraquiano está por estudar, defende, porque durante anos o regime de Saddam Hussein negligenciou esta área por motivos políticos.

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No final da campanha de escavações de 2022 o sítio foi totalmente coberto com pláticos na tentativa de evitar a erosão provocada pelas águas Muhammed Felah Ibrahim/Anadolu Agency /Getty Images

A velha cidade que voltou a atrair atenções fica hoje próxima de outra, com dez mil habitantes, que dá pelo nome de Kemune e que nasceu quando o governo para lá deslocou as famílias forçadas a deixar as suas casas com a construção da barragem, há mais de 40 anos.

É em Kemune que vivem muitos dos que trabalharam no Inverno em Zakhiku. A campanha de 2022 terminou com a cobertura de toda a área escavada com gigantescos plásticos, fixados com pedras e metais, na tentativa de selar as estruturas já postas a descoberto, evitando qualquer erosão de maior provocada pelas águas.

Zakhiku já está outra vez submersa. Quando voltar à superfície, os arqueólogos estarão prontos para voltar ao trabalho.

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