Criado o primeiro catálogo genómico de chimpanzés ameaçados
Este inventário vai permitir “desenhar” uma cartografia genética capaz de determinar a origem provável de chimpanzés órfãos e carnes exóticas vendidas ilegalmente. O estudo publicado na Cell Genomics também fornece pistas para a história populacional dos primatas.
Cientistas criaram o primeiro catálogo de diversidade genómica de chimpanzés ameaçados de extinção. Este inventário foi construído a partir de 828 amostras oriundas das várias zonas onde estes primatas habitam em África. Precisamente porque cruza dados biológicos e geográficos, este banco de dados ajuda a compreender melhor não só a estrutura detalhada destas populações, mas também os padrões de migração, isolamento e contacto. A sistematização destas informações também permite “desenhar” uma cartografia genética capaz de determinar a origem provável de chimpanzés órfãos ou de carnes de primatas vendidas ilegalmente.
“Construímos um mapa geogenético, onde mostramos que a genética é um bom preditor da geografia. Portanto, sequenciando [parte do genoma de] chimpanzés de origem desconhecida, podemos identificar o local de origem mais provável com base no nosso banco de dados”, explica ao PÚBLICO Claudia Fontsere, investigadora do Instituto de Biologia Evolutiva, entidade que resulta de uma parceria entre a Universidade de Pompeu Fabra, em Barcelona, e o Conselho Superior da Investigação Científica espanhol. A cientista é a primeira autora do estudo publicado quarta-feira na revista científica Cell Genomics.
O empenho dos autores em caracterizar a diversidade genómica desta espécie ameaçada constitui, garante Claudia Fontsere, uma tentativa de poder oferecer aos profissionais que trabalham na área da conservação uma “ferramenta” que possa ser útil à conservação da vida selvagem. “As populações de chimpanzés apresentaram um grande declínio nos últimos anos”, afirma a cientista.
As centenas de amostras que foram colectadas ao longo de “mais de uma uma década” trouxeram diversidade ao banco de dados, permitindo associar certas características genómicas a locais específicos. Assim, o catálogo pode servir de guia para identificar a origem de chimpanzés capturados ilegalmente que são, entretanto, confiscados pelas autoridades. Ou, por exemplo, para reconstruir a rota de abate e comércio ilegal de carnes de primatas.
“Caçadores” de fezes
O catálogo de diversidade genómica só existe hoje graças a uma actividade inusitada: andar à caça de fezes animais. A abordagem revelou-se, garante a cientista espanhola, uma alternativa eficaz aos métodos invasivos de recolha de amostras biológicas. “Este é um ponto muito importante no estudo, uma vez que este tipo de colecta não envolve nenhum contacto [físico] com os animais. Portanto, eles são incomodados apenas pela presença dos cientistas no habitat”, explica Claudia Fontsere.
Tomas Marques-Bonet, investigador principal do mesmo instituto espanhol e co-autor do estudo, também sublinha em comunicado de imprensa o carácter “impressionante” desta opção não invasiva. “De algum modo, temos aqui o melhor dos dois mundos – uma valiosa fonte de ADN genómico, mas colectada de uma maneira que os animais nunca precisam ser contactados”, afirma Marques-Bonet.
Claudia Fontsere acredita que o método abre caminho para a obtenção de amostras desta espécie ameaçada de extinção em contexto natural, “o que geralmente é muito difícil”. “Estudos anteriores usaram amostras biológicas de chimpanzés confiscados (havendo incerteza da origem geográfica) ou de indivíduos em zoológicos. Com a nossa abordagem, podemos dar um passo à frente e fazer colectas de muitos indivíduos selvagens, preenchendo assim as lacunas em muitas regiões africanas”, observa Claudia Fontsere.
A elaboração do catálogo não teria sido possível sem a recolha coordenada de milhares de amostras fecais de chimpanzés, levada a cabo pelo Programa Pan-Africano (PanAf) em 48 locais, refere o comunicado de imprensa sobre o estudo. A “caça” aos dejectos animais tinha de ser muito ágil, para garantir a frescura do material recolhido nas florestas. Depois, as amostras eram armazenadas em etanol e posteriormente secas para que possam ser conservadas por muitos anos após a colecta.
Também foi determinante, segundo a mesma nota, o desenvolvimento de métodos para recuperar e fazer “render” os fragmentos de ADN encontrados nas fezes dos primatas. A matéria fecal inclui restos de plantas e bactérias, apenas uma minúscula parte desse volume corresponde a material genético do animal pretendido.
“As fezes são amostras complexas, pois possuem quantidades muito baixas de ADN do hospedeiro, geralmente em torno de 1 a 3%. E mesmo esse ADN está altamente degradado e fragmentado. Como são amostras mais difíceis de trabalhar do que as de sangue ou tecidos, tivemos de investir bastante para elaborar maneiras de enriquecer as fracções de ADN de chimpanzé encontradas nas fezes”, refere Claudia Fontsere ao PÚBLICO. Agora, os autores do estudo consideram que estes protocolos podem ser usados para estudar diferentes primatas ou até outras espécies ameaçadas de extinção.
Antes deste estudo, já havia bases de dados com milhares de amostras fecais georreferenciadas, mas estas representavam apenas pequeninos fragmentos do genoma do chimpanzé. “Como estamos a usar o sequenciamento de um cromossoma inteiro [o de número 21] com milhares de marcadores independentes, em comparação com poucos marcadores microssatélites, temos uma visão muito mais ampla do genoma, e [que] é necessária para refinar e descrever a história evolutiva muito complexa dos chimpanzés”, refere Marques-Bonet.
Uma vez que o registo fóssil e o material genético antigo dos chimpanzés existentes são raros, a solução que resta para reconstituir a história destes primatas é estudar os indivíduos vivos. Existem quatro subespécies conhecidas de chimpanzés, mas, segundo os autores, persistem dúvidas sobre as ligações e os relacionamentos entre elas. A comunidade científica questiona-se há muito tempo sobre a ocorrência de contacto entre estas subespécies.
“Conseguimos mostrar, recorrendo a diferentes métodos que analisam variações muito antigas e mais recentes, que a história dos chimpanzés é complexa, e de algum modo muito parecida com a da nossa própria espécie”, afirma na nota de imprensa Mimi Arandjelovic, co-autor do estudo e cientista do Instituto Max Planck para a Antropologia Evolutiva, na Alemanha.
“As subespécies de chimpanzés foram de facto separadas no passado, mas desde então também tiveram trocas genéticas entre populações. Isso explica muito bem por que diferentes estudos com o objectivo de reconstituir períodos ancestrais distintos chegaram a conclusões díspares sobre a história evolutiva dos chimpanzés”, acrescenta Mimi Arandjelovic.