Carolina fala com pessoas com anorexia para entender a doença que enfrentou — e enfrenta
A anorexia passa por diversas fases e a investigadora Carolina Ferreira Baptista conhece-as bem: há quem diga estar bem porque já não conta tantas calorias. Outros sabem que não comer é errado, mas não conseguem parar. A plataforma ana.diz é um espaço de partilha de histórias de quem conhece, passou ou luta contra a anorexia. Depois da recuperação, a doença desaparece?
Começam a comer menos, a contar calorias e passos, a evitar alimentos e, em último caso, a deixar de comer. Por outro lado, em contextos sociais, mantêm a boa disposição e a obsessão com o corpo ideal, não prescindindo de exercício físico e alimentação saudável. Estes são alguns dos comportamentos de quem enfrenta uma anorexia nervosa decifrados e estudados por Carolina Ferreira Baptista, através da plataforma ana.diz, um espaço de partilha de histórias de quem conhece, teve ou está a viver a doença, que também deu origem a um podcast.
Através do projecto, que surgiu em Abril deste ano para a sua tese de doutoramento em Ciências da Comunicação sobre o tema, já recolheu dez testemunhos de pessoas, que, até há bem pouco tempo, eram desconhecidas para a doutoranda. São mulheres, com idades compreendidas entre os 22 e os 60 anos, a quem a doença se manifestou de maneira diferente. Mas convém sublinhar que a anorexia não afecta apenas mulheres: os homens também sofrem desde distúrbio alimentar, mas ainda existe dificuldade em diagnosticá-los. “Eles não se chegam à frente assumindo que têm uma anorexia porque acreditam que isso é uma doença de mulheres”, começa por contar ao P3 Carolina.
Durante cada uma destas conversas, a investigadora da Universidade Nova de Lisboa limitou-se a ouvir para depois analisar estas entrevistas na sua tese. Do outro lado do ecrã ou do telefone, as entrevistadas têm-se sentido à vontade para contar como começaram os primeiros impulsos para emagrecer e até pormenores sobre o estado de saúde actual. Através da ana.diz, Carolina tanto procura e tem encontrado pessoas “sem formação que tiveram uma anorexia há 40 anos e têm medo de comer pão apesar de estarem fisiologicamente saudáveis”, como “raparigas com níveis muito alto de formação e muito sucesso profissional que sabem exactamente que aquilo que estão a fazer não é saudável, mas não conseguem não o fazer”.
No entanto, há um pormenor que estas mulheres ignoram: o interesse de Carolina Ferreira Baptista não está apenas limitado à investigação, pois a jovem de 25 anos também está a recuperar de uma anorexia. “Queria perceber muita coisa que não entendia, só tinha vivido a experiência na primeira pessoa”, revela, pela primeira vez. Também ela, tal como uma das suas entrevistadas, ainda não é capaz de comer pão ou massa.
No seu caso, “o fascínio pela magreza” começou por volta dos oito anos, altura em que engordou mais um pouco. No entanto, só começou realmente a praticar algumas restrições alimentares durante a adolescência ao ficar “obcecada por comida saudável”, explica. Até que, em 2020, durante o primeiro confinamento, começou a perder muito peso, mais do que deveria: “Não conseguia controlar nada, porque nenhum de nós conseguia, e isso depositou-se no controlo da minha alimentação. Viemos todos para casa em Março e eu perdi seis quilos num mês e meio.” Até Agosto perdera dez quilos.
Para Carolina, o que a separa hoje das suas interlocutoras é o reconhecimento dos problemas de saúde (físicos e psicológicos) que as restrições alimentares lhe provocaram. “As pessoas que entrevisto ainda não conseguem muito bem ser honestas, isso é denunciado pelas coisas que dizem. Dizem que já estão muito bem e que se sentem muito bem, mas que ainda só conseguem comer três ou quatro coisas”, revela. Sente, por isso, que ainda não encaram a alimentação de uma forma muito saudável, ao afirmarem coisas como “eu ainda continuo a contar calorias, mas já conto como contava há um mês”.
Controlo e problemas com autoridade
A necessidade de descobrir pessoas com anorexia nasceu para suprir a solidão que sentia. E achou que a partilha de testemunhos e um podcast sobre o assunto poderiam ajudar outros como ela.
Enquanto analisa os testemunhos, Carolina percebeu o motivo, muitas vezes camuflado, que conduziu estas dez pessoas à anorexia: a grande maioria tem relações mal resolvidas com episódios de autoridade durante a infância que, na vida adulta, se traduziram na necessidade de serem auto-suficientes. “Tudo isso passa pelos comportamentos alimentares, de exercício físico e de gestão das rotinas diárias”, acrescenta. Depois vem a sensação de solidão e incompreensão que colmatam ao não comer.
Da mesma forma, organização e disciplina são características comuns a todas. Conhecedora da doença, Carolina revela que o primeiro sinal de alerta a ter em conta é quando uma pessoa decide alterar subitamente os hábitos alimentares. Não comer hidratos de carbono é apenas o exemplo mais comum, mas também há quem se negue a optar por alimentos catalogados como saudáveis, como cenoura ou abacate. “Para aquela pessoa, aquele alimento vai engordá-la. E ao engordá-la vai polui-la, vai torná-la numa pessoa mais suja, menos digna, menos capaz de se controlar a si e aos seus impulsos.”
Depois começa a fase do isolamento social: a certa altura, o amigo ou familiar que comia connosco passa a querer fazê-lo sozinho e em casa, longe do olhar dos outros, sinaliza. “Deixa de ir a festas e depois percebemos que aquela pessoa desapareceu.” Quando acaba por reconhecer o problema, o estado de saúde já está demasiado avançado e é necessária a intervenção de terceiros. A recuperação, porém, só acontece se o próprio quiser. E, por isso, a investigadora deixa o aviso: nunca se deve dizer à pessoa que está muito magra de uma forma directa e bruta, mas fechar os olhos perante um cenário de magreza extrema também não ajuda. No fundo, o indicado é confrontar, “criando um espaço de confiança, segurança e de algum amor e afecto”.
É um dos conselhos que mais se ouve no podcast, com o mesmo nome que a plataforma, onde a investigadora conversa com especialistas, terapeutas, desportistas, professores universitários, entre outros. Esta quinta-feira, 2 de Junho, sai um novo episódio, desta feita com a investigadora Danielle Miranda, que vai falar sobre como é que o corpo pode ser um espaço de reivindicação politica, não só na luta das ruas, mas também como “elemento performativo”. Também já recebeu contactos de quem, ao ouvir um dos cinco episódios, resolveu procurar apoio para a doença que está a enfrentar. Sem nunca saberem que Carolina passa pelo mesmo, perguntam se conhece terapeutas. “É algo que me enche de orgulho, porque percebo que pedir ajuda é muito difícil e as pessoas sentirem que podem confiar em mim… engrandece o projecto.”
Depois da recuperação, a doença desaparece?
O assunto divide os médicos, mas quando questionada sobre se a anorexia permanece mesmo depois do período de recuperação, Carolina tem a resposta preparada. “Não estou a falar na qualidade de investigadora, mas fica. É qualquer coisa que continua pulsante em nós independentemente de termos tido uma anorexia há 40 anos ou há seis meses”, defende.
De todos os testemunhos que recolheu até agora, só se identificou com uma mulher, uma jovem médica, que também está em fase de recuperação. E porquê? Sabia reconhecer quando estava ou não feliz e quando se comportava de uma forma errada. Carolina também o percebe. “Provavelmente vou viver sempre com qualquer coisa, mais não seja com a memória que vivi algo de profundamente traumático para o meu corpo e saúde cognitiva.”
A anorexia, defende, não tem necessariamente que ser uma coisa má. Pode-se “escolher ficar doente a vida inteira” ou optar pela recuperação e, neste caso, explica a investigadora, a pessoa mantém alguns comportamentos de restrição alimentar, ainda que mais controlados. Viver de forma saudável depois da anorexia é possível. “É assumir que passamos por esse trajecto e que isso até nos enriqueceu e nos tornou numa pessoa mais completa. Ficamos com coisas e isso não tem mal nenhum.”