Dominique Gonçalves: “Os elefantes na Gorongosa têm um passado sombrio”, mas agora estão a “recuperar muito bem”

A ecóloga moçambicana veio a Lisboa falar sobre a importância da coexistência entre as comunidades e a natureza. Além do estudo de elefantes, participa num projecto de educação de raparigas.

Foto
A ecóloga moçambicana Dominique Gonçalves Charlie Hamilton James/NationalGeographic

A ecóloga moçambicana Dominique Gonçalves está pela primeira vez em Portugal para falar sobre a importância da coexistência entre pessoas e a natureza. Nascida na Beira, lidera actualmente o Projecto de Ecologia de Elefantes e dedica-se tanto à conservação das espécies do Parque Nacional da Gorongosa (em Moçambique) quanto ao desenvolvimento das comunidades ao seu redor. Falámos com a ecóloga para percebermos qual o estado actual dos elefantes neste parque, que trabalho está a fazer num projecto para a educação de raparigas e que mensagem traz a Lisboa. Dominique Gonçalves é uma das vozes da 4.ª Conferência da National Geographic, que decorre esta terça-feira, no Teatro Tivoli, em Lisboa.

Qual é o estado de conservação dos elefantes no Parque Nacional da Gorongosa? Qual é o número de indivíduos e como tem sido a evolução ao longo do tempo?
Neste momento, a população de elefantes na Gorongosa está a recuperar muito bem. Como é sabido, os elefantes na Gorongosa têm um passado muito sombrio. Dos 2500 elefantes que havia em toda a área, depois da guerra civil e de tanta matança, tivemos cerca de 200 que sobreviveram. Quando o projecto de restauração começou, deu protecção aos elefantes e eles começaram a se reproduzir. Hoje temos 1000 elefantes. É um crescimento muito rápido, depois de termos só 200 há cerca de 30 anos.

Mas hoje, como consequência daquela matança e selecção por causa das presas e do marfim, podemos ver ainda sinais na cara deles e a falta de presas. Os nossos elefantes têm também certas características mais distintas: cerca de 33% das fêmeas não têm presas. Um dos nossos estudos mais recentes revelou que isso está ligado a um gene que foi praticamente seleccionado através da caça e da matança intensas que houve.

Ameaças existem sempre, mas na Gorongosa os fiscais têm feito um grande trabalho e as comunidades também. Neste último ano, não tivemos nenhum caso de caça de elefante dentro do parque. Temos perdido elefantes por pressões naturais e por razões que não identificamos como sendo de proveniência humana. Tirando isso, [os elefantes] têm um habitat, comida, protecção, mas também muita gente ao redor deles, o que complica.

Que trabalho tem sido feito ao nível da conservação no Projecto Ecologia de Elefantes?
O Projecto Ecologia de Elefantes faz a monitoria a longo prazo da população de elefantes que está a recuperar na Gorongosa e nas áreas afins. Olhamos para a ecologia, o comportamento, o conflito e a coexistência, à medida que a população de elefantes cresce e retoma a locais onde antes existia e foi dizimada. Agora há mais gente ali e há mais gente ao redor do parque.

Na monitoria a longo prazo usamos coleiras de GPS, o que ajuda muito não só a saber onde os elefantes estão, o que estão a fazer e em que área, mas também a alocar esforços de protecção a certos habitats ou a evitar e mitigar conflitos. À medida em que fazemos isso, conseguimos determinar que [por exemplo], na estação chuvosa, os elefantes usam mais esse [ou outro] local e temos mesmo de ter mais atenção ao conflito e coexistência nesta comunidade e não noutra.

Foto
A moçambicana Dominique Gonçalves Charlie Hamilton James/National Geographic

Como podem as comunidades locais coexistir melhor com os elefantes?
A coexistência não é feita de uma só maneira. Depende de muita coisa: da cultura, do contexto, do local e de que comunidade estamos a falar. O mais importante é ouvir, ajudar as pessoas da comunidade a que sejam ouvidas e [contribuir] em termos de tecnologia ou fundos. São as pessoas que estão perto dos elefantes todos os dias que têm de ter o poder de agir muito rapidamente caso necessitem.

Muitas vezes, o que fazemos é usar ideias que antes eram feitas tradicionalmente, mas agora com um bocado mais de tecnologia e modernidade. Por exemplo, na Gorongosa, testámos uma prática que já estava a ser usada noutros países e usamos colmeias de abelhas para travar a entrada dos elefantes nas comunidades. Tem provado ser um sucesso. Ao mesmo tempo, não só trava os elefantes de entrar nas comunidades e nos campos agrícolas, como no fim da estação dá mel. Isto cria uma maior conexão das pessoas da comunidade com a natureza.

As pessoas precisam de espaço e os elefantes também. Não nos podemos ver no topo da pirâmide. Temos de aceitar que temos de dividir esse local. Os dois têm de se comprometer e os dois têm de perder alguma coisa. Se do lado das pessoas não é justo que os elefantes estraguem tudo, também não é justo que os elefantes percam todo o habitat por causa das pessoas. Temos de ter limites, porque no fim do dia vamos todos sofrer muito com a falta de elefantes. Eles são uma espécie-chave e engenheiros do nosso ecossistema.

O que deve ser prioritário no trabalho com os elefantes no Parque da Gorongosa?
É fazer com que o conflito entre as comunidades locais e os elefantes não se torne em caça furtiva ao marfim, por exemplo. [É fazer com que] o conflito não se torne a maior causa do declínio da população de elefantes.

Nestes anos em que tem estudado os elefantes, quais têm sido as maiores aprendizagens sobre estes animais?
Aprendi muito em termos de comportamento, porque foi como comecei. Comecei a observar muito e a ficar muito tempo com os elefantes. Aprende-se com cada coisa… Quando estou perto de elefantes, vejo quanto nós, humanos, somos pequenos e o quanto somos nada comparando com todas estas outras espécies, principalmente o elefante, que é majestoso. Naquele momento, tenho consciência de que, na verdade, sou simplesmente mais uma peça neste ecossistema todo. Quando se está imersa na natureza, com animais como os elefantes, nota-se mesmo quão grandiosos os elefantes são e que nós não somos assim tanto. Nós podemos é ter ferramentas que nos fazem parecer ser capazes de muita coisa, mas quando voltamos ao nosso meio natural, ao nosso meio selvagem, aí é que se tem consciência.

No que consiste o projecto Clubes das Raparigas [da Gorongosa] e que trabalho tem sido feito?
Visa ajudar a manter as raparigas na escola e evitar casamentos prematuros para que as raparigas tenham mais oportunidades na vida. A rapariga estuda de dia e vai ao clube à tarde ou vice-versa.

Quando comecei a visitar os clubes, partilhava a minha própria história. Depois vi o quanto aquilo mudava o interesse das meninas. Visitei alguns clubes e diziam-me: “Vens falar com as meninas porque és uma role model [um modelo a seguir]”. Depois pensei que não deveria ser só eu e que temos muitas mulheres e raparigas no parque que são role models. Como é que posso ajudar? Com o Projecto Ecologia dos Elefantes e os Clubes das Raparigas, temos a iniciativa de mulheres-modelo. Temos material educacional, visitas e mentoria. O que é o material educacional? Pedi a todos os departamentos [da Gorongosa] que nomeassem role models. E foi uma coisa linda! Contava só com uns dez nomes, mas cada departamento nomeou muito mais e tenho 25 mulheres. Numa brochura temos a biografia delas e um conselho para as raparigas. É uma brochura das mulheres-modelo da Gorongosa. [Ao todo] tenho 1500 brochuras que vão ser distribuídas por cada uma das raparigas nos clubes. Quero que cada uma delas tenha uma, porque quero que vão para casa com elas e que mostrem aos irmãos e aos pais. Depois disso, vão aprender sobre cada uma das mulheres. No fim, quando tiverem a noção de quem são, vão conhecer essas role models.

É uma ideia meio romântica, mas espero que ajude a que tenham mais incentivo a continuar a estudar. O nosso lema é: se ela pode ver, ela pode ser. Esperamos que possam ver que outras carreiras podem ter na conservação.

Qual a mensagem que veio a Lisboa sobre o planeta e os elefantes?
Esta é a primeira vez que venho a Portugal. É um bocado emocionante. Moçambique e Portugal têm um passado em comum. As áreas de conservação que temos em Moçambique, a Gorongosa pelo menos, foi feita pelo Governo colonial, mas na altura era tudo muito diferente.

A minha mensagem é bem clara: o bem-estar das pessoas que vivem perto da natureza que queremos preservar deve ser uma prioridade para que haja coexistência. Só assim podemos garantir que a preservação da natureza possa acontecer. Se estamos a falar dos elefantes, é importante que tenhamos mesmo de dar prioridade ao bem-estar das comunidades que estão ao lado dos elefantes. Assim, podemos ter coexistência e, a seguir, podemos continuar a preservar.