A minha Raquel
Há pessoas que inspiram com o seu brilhantismo científico e humano. Há forças da natureza que teimam em levar a sua avante num vendaval imparável. Tendem a ser realidades pouco compatíveis; a Raquel Seruca reunia-as.
Um dos (poucos) problemas de não ter algo que o meu amigo José Carlos Fernandes denomina como “as redes (ditas) sociais” é apenas saber de certas notícias pelos jornais. Foi desse modo que me chegou eco da morte da Raquel Seruca, e ainda não consigo acreditar que estou a escrever esta frase. Uma coisa é lamentar a partida de referências que nos habituámos a admirar ao longo de décadas, e sem as quais as nossas carreiras dificilmente teriam sido as mesmas (António Xavier, José Mariano Gago, Maria de Sousa, só para dar três exemplos pessoais). Bem diferente é chorar por quem começou connosco, e estava longe de ter terminado a sua história.
Na década de 1980 encontrámo-nos em campos de férias do MOCAMFE, e esse momento marcou-nos de tal modo que era tema recorrente nos múltiplos reencontros ao longo dos anos. Nessa altura já ela estava a tirar Medicina, enquanto eu só sabia que não queria tal curso. Quase mudei de ideias quando a conheci, porque era impossível ficar indiferente à Raquel Seruca, aos planos concretos de investigação clínica assistencial que já tinha, ao seu entusiasmo vertiginoso na sua grandiosidade e ambição. Era possível, em Portugal, ser-se assim? Dizer o que se pensa, apenas porque deve ser dito? Transcender a mera vontade de estar calado e “encaixado” algures? Renunciar ao constante miserabilismo lamuriento, invejoso e cobarde? Construir coisas exigindo o impossível, porque achamos a definição de “impossível” demasiado rasteira?
Há pessoas que inspiram com o seu brilhantismo científico e humano. Há forças da natureza que teimam em levar a sua avante num vendaval imparável. Tendem a ser realidades pouco compatíveis; a Raquel Seruca reunia-as.
Apetece-me dizer duas coisas sobre a Raquel, não porque sejam mais importantes do que a sua brilhante carreira científica, felizmente reconhecida e premiada, mas porque não sei quantas pessoas as poderão dizer publicamente. Desde logo, apesar de (inevitavelmente) ter chegado a cargos de gestão, a Raquel jamais temperou as suas convicções com platitudes, ou cedeu em nome de supostos consensos que nunca levam a lado nenhum. Melhor dizendo: quando se via obrigada a ceder (porque faz parte), ficava chateada, e toda a gente o sabia. Em (lamentáveis) reuniões com o então ministro Manuel Heitor no âmbito da política em ziguezague dos Laboratórios Associados – representando ela o Ipatimup/Instituto de Investigação e Inovação em Saúde (i3S), eu o Centro de Neurociências e Biologia Celular/Centro de Inovação em Biomedicina e Biotecnologia (CNC/CIBB) –, e em que a tutela prometia muito e cumpria pouco (quando não tirava), havia muita gente a aceitar tudo em silêncio ou a negociar paliativos nos bastidores, poucos a ousar serem cientistas, a promover a crítica aberta (construtiva), a exigir opções globais claras e previsíveis. Penso não precisar de dizer de que lado ambos estávamos.
Noutra perspetiva, a Raquel sentiu na pele o que significa vivermos numa sociedade ainda patriarcal e machista. Na sua vida profissional e pessoal, o que no género masculino seriam consideradas meras bizarrias de caráter perfeitamente aceitáveis (até charmosas), no seu caso tiveram por vezes uma conotação bem menos positiva. Sei que ela não acharia piada nenhuma ao que acabo de escrever, porque lho disse em vida, e ouvi das boas, que a Raquel nunca aceitava algo que pudesse parecer uma desculpa. Mas não me desmentiu, porque não podia.
Há uns anos a Raquel Seruca demitiu-se do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV), por não concordar com posições tomadas, e com a dinâmica do órgão. Num dos muitos acasos que teimavam em nos associar fui designado para a substituir. Usando um daqueles chavões que se repetem porque são mesmo verdade, essa seria sempre uma tarefa impossível. Na altura, agora, sempre. Morreste-nos Raquel, e só me apetece barafustar e dizer asneiras! Fazes muita falta!
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico