Na Índia, o calor roubou às flores a oportunidade de virem a ser mangas
As ondas de calor no Sul da Ásia foram tão fortes que fizeram murchar as flores das mangueiras. Fica assim comprometido um sector responsável pela produção de metade das mangas do planeta.
As recentes ondas de calor no Sul da Ásia foram tão fortes que fizeram murchar as flores nas árvores. Assim, as mangueiras que ocupam vastos territórios no Norte da Índia mal puderam ser polinizadas. Fica assim duramente comprometido um sector importante para a economia do país, onde são produzidas metade das mangas do planeta. Estima-se que as colheitas deste ano no estado de Uttar Pradesh, uma zona de referência para o cultivo desta fruta no Norte do país, sofrerão uma queda da ordem dos 70%.
“Nunca testemunhei um fenómeno como este em toda a minha vida”, confessou ao New York Times Mohammed Aslam, agricultor em Malihabad, no distrito de Lucknow, em Uttar Pradesh, um dos sete principais estados indianos que cultivam mangas. Normalmente, Aslam colhe por ano mais de 11 mil quilos de manga. Desta vez, acredita que vai colher apenas 5% desse total. “Não haverá mangas nem para os meus filhos”, afirmou à mesma fonte. As dificuldades são tantas que Aslam acabou por ter de adiar os festejos do casamento da filha.
Grandes porções da Índia e do Paquistão foram assoladas por episódios de ondas de calor nos últimos meses. O mês de Março de 2022 foi mais quente desde há 122 anos, quando o Departamento Meteorológico da Índia (IMD) começou a monitorizar as temperaturas no país. Estes eventos climáticos extremos obrigaram ao racionamento de energia eléctrica, uma vez que a população teve de recorrer em massa à utilização de ventiladores e sistemas de ar condicionado. As temperaturas subiram tanto que houve registos de aves a cair do céu. No dia 1 de Maio, por exemplo, satélites europeus registaram na Índia e no Paquistão máximas de 47,1 e 49,5 graus Celsius, respectivamente. A temperatura do solo chegou aos 62 graus Celsius.
Os estragos causados pelas ondas de calor na fruticultura adicionam uma camada de dificuldade a um sector que, durante a pandemia, já tinha sofrido um grande abalo. Com a perturbação das cadeias de abastecimento mundiais, as exportações de manga diminuíram cerca de 50%. Havia uma esperança de que 2022 viesse a ser o ano da recuperação, mas estes fenómenos climáticos extremos vieram deitar por terra as ambições de produtores e exportadores. Parte das mangas cultivadas na Índia é destinada ao consumo interno; a outra parte segue para destinos como os Emirados Árabes e o Reino Unido. Maio é o mês de ouro das exportações desta fruta indiana – mas, em 2022, o calor roubou às flores a oportunidade de se tornarem frutos.
“Aquilo que mais interfere na floração das mangueiras é precisamente a temperatura e a humidade”, explica ao PÚBLICO a Maria Aparecida Mouco, investigadora da Empresa Brasileira de Pesquisa Agro-pecuária. Como o calor excedeu em muito a temperatura ideal para a florescência – que podem rondar os 18 graus Celsius à noite e 28 durante o dia –, terá ocorrido na Índia algo a que a cientista brasileira chama de “aborto de flores”. “O calor extremo causa nas plantas uma tensão semelhante ao stress hídrico. Se você consegue obter a floração e depois a temperatura sobe muito, há um aborto de floração”, refere a cientista especializada em fitotecnia e no manejo de floração e produção da mangueira.
O Brasil tem um peso importante no sector: a manga foi a fruta mais exportada pelo país em 2021, tendo sido despachadas mais de 272 mil toneladas do produto, segundo dados da Associação Brasileira dos Produtores e Exportadores de Frutas e Derivados.
“Esta é uma planta que precisa de pequenas variações de temperatura para a indução da floração. Variações bruscas quer de temperatura quer de precipitação vão perturbar não só a floração como também a maturação”, afirma ao PÚBLICO Manuel Teles de Oliveira, professor do Departamento de Agronomia da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro. O docente, recentemente reformado, acrescenta que estas mudanças bruscas também podem “favorecer a incidência de determinadas pestes”. O excesso de humidade causado por chuvas intensas, por exemplo, pode criar as condições ideias para o crescimento de fungos.
As recentes ondas de calor na Ásia são um exemplo de como a crise climática pode ter um impacte não só na vida daqueles que dependem da agricultura, mas também em toda a cadeia alimentar. Da mesma forma que o preço da manga disparou, segundo o jornal indiano Economic Times, o mesmo pode acontecer com outros vegetais produzidos em locais que venham a ser afectados por eventos climáticos extremos.
“Estamos habituados a encontrar no supermercado durante o ano todo frutas exóticas, ou seja, que não são produzidas em Portugal ou na Europa. Teremos num futuro próximo uma surpresa desagradável porque há espécies que vão ser mais difíceis de produzir e transportar e, por isso mesmo, o preço vai subir – e muito. Não acredito que os portugueses vão passar fome, mas teremos certamente hábitos de consumo diferentes”, antevê o Manuel Teles de Oliveira.