Ricardo Rocha: “Se perdermos esta riqueza biológica, há muito pouco que possamos fazer para voltar atrás”

A destruição de habitats é uma das principais razões para a extinção de espécies, mas também para o aparecimento de novas doenças e possíveis pandemias. Comer menos carne e manter os gatos dentro de casa podem ser formas de reduzir este risco, diz o biólogo Ricardo Rocha.

Foto
Ricardo Rocha na Amazónia brasileira Madalena Boto

A natureza fascina o biólogo Ricardo Rocha. Seja o azul do Funchal, onde vive, seja o verde profundo que viu na Amazónia, onde esteve dois anos e meio em trabalho de campo. Trabalha na área da conservação da natureza e também já passou por Madagáscar, pelo Quénia, pela China, pela Malásia, por Cabo Verde ou São Tomé e Príncipe.

O biólogo do Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos, associado à Universidade do Porto e à Universidade de Lisboa, tem 36 anos e estuda a forma como as espécies sobrevivem em ambientes humanizados. Descobriu, por exemplo, que os morcegos não estavam extintos da ilha de Porto Santo, na Madeira.

Quando recebeu uma bolsa da National Geographic para fazer investigação na área da ecologia e conservação da natureza passou a ser um “explorador” da organização – e é agora um dos oradores das conferências National Geographic Summit, que decorrem nesta terça-feira (31 de Maio) em Lisboa. Esta profissão, diz, não é só para alguns: deveria haver mais diversidade na ciência.

Fala-se muitas vezes na promiscuidade humana de invadirmos e destruirmos a natureza e da forma como isso pode aumentar o risco de doenças e até pandemias no futuro. O que é que podemos fazer hoje para evitar que isso aconteça?
Podemos fazer imensas coisas. Uma das coisas que está mais ao acesso do comum dos cidadãos é uma mudança de hábitos alimentares. Uma das principais causas de doenças emergentes, de surtos pandémicos e de novos elementos patogénicos a circular de populações de animais selvagens para populações humanas está relacionada com a perda de habitat – não só a perda, como a fragmentação, a destruição e degradação – e muito disso está ligado ao consumo de carne, à criação de pastagens. Grande parte da população tem uma alimentação ainda muito carnívora. Uma coisa que podemos fazer, porque comemos todos os dias, é tentar reduzir a quantidade de carne que consumimos. Com isso, temos um contributo bastante positivo.

Outra coisa que está muito ao acesso de grande parte da população é, por exemplo, manter os gatos dentro de casa. Quando falamos em doenças zoonóticas, pensamos principalmente em três grupos de animais: nos primatas, que têm muitas doenças que podem transitar para os humanos e são muito próximos do ponto de vista evolutivo; mas depois há o grupo dos roedores e o grupo dos morcegos, que são conhecidos por terem muitos elementos patogénicos que eventualmente podem saltar para a espécie humana. Isto está relacionado também com o facto de estes dois grupos serem os grupos, dentro dos mamíferos, com maior número de espécies. Como têm mais espécies, têm mais elementos patogénicos, há uma certa correlação. Os gatos, que nós temos em casa e que muitas vezes saem, caçam tanto roedores como morcegos. E caçam outros animais, como aves. Se estão a caçar e estão em interacção próxima com os humanos, poderá haver um risco de transitarem doenças do meio selvagem para os humanos. Não só que os humanos estejam necessariamente a ir para o meio selvagem, mas animais que convivem com os humanos estão a ir para o meio selvagem.

Tem alguma consideração sobre a varíola-dos-macacos?
No que toca a doenças zoonóticas, há outro factor importante que está relacionado com a circulação nos humanos. Ao passo que doenças zoonóticas são algo transversal à nossa história como humanos, o que não é transversal à nossa história é esta movimentação à escala global e esta facilidade de estarmos hoje em Portugal, amanhã nos Estados Unidos, depois de amanhã em África. Não é apenas a movimentação singular, é o facto de que, além de nos movimentarmos muito, nunca fomos tantos no planeta. Então a probabilidade de aparecerem novas coisas é proporcional ao número de humanos no planeta. Estamos a entrar cada vez mais em habitats onde tradicionalmente não interagíamos tanto ou não estávamos tão presentes, mas, acima de tudo, somos muitos e movimentamo-nos muito. Isto para pandemias, para novos surtos é quase a tempestade perfeita.

Falou um bocadinho sobre o que é que cada um de nós pode fazer, mas ia perguntar também o que é que os governos e empresas podem fazer.
Uma coisa que os governos podiam fazer era incentivar uma alimentação com menos carne, em particular carne oriunda de zonas problemáticas. Não só a carne, mas produtos que dão origem à carne. Vamos pensar no gado, que precisa de soja para se alimentar e a soja está associada a desmatamento ou na Amazónia ou numa outra qualquer zona que é importante do ponto de vista de conservação da natureza e de biodiversidade. Para consumirmos essa carne o produto final temos de ter matéria-prima que está a destruir habitats. Essa destruição é um risco bastante grande. Podemos estar a cortar uma floresta e a mudar uma estrutura biológica e, com isso, dar novas combinações de espécies, que dão origem a novas combinações de vírus. É difícil elaborar. Uma medida não muito difícil do ponto de vista de implementação pelos governos poderia ser o aumento do número de refeições vegetarianas nas cantinas, como têm vindo a tentar fazer. Ajuda na questão das doenças zoonóticas, mas também do que podemos fazer para minimizar as alterações climáticas. E mesmo em questões de ética e bem-estar animal. Há uma grande congruência de razões pelas quais isto poderia ser uma boa medida.

Esse desmatamento também pode levar à extinção de espécies, certo?
Sem dúvida, a perda de habitat é a principal causa do declínio de espécies.

E essa extinção de espécies pode também afectar os humanos, de certa forma?
É quase certo que vai afectar muito os humanos. Podemos pensar na riqueza biológica como uma biblioteca: não sabemos para que é que determinado livro nos vai dar jeito no futuro, mas pode vir a dar jeito. As espécies e o património genético, os compostos químicos associados às diferentes espécies podem-nos vir a ser úteis num determinado ponto. Não sabemos. Esta riqueza resulta do acumular de milhões e milhões e milhões de anos de evolução e, se perdermos esta riqueza biológica, há muito pouco que possamos fazer para voltar atrás. Há que conservar o que temos agora. Podemos pensar muito facilmente naquilo que são as espécies selvagens que deram origem às espécies que domesticámos para a nossa alimentação. O milho, o trigo, o centeio, bananas. Utilizamos uma versão domesticada, mas isso é apenas uma versão muito reduzida do património genético daquela espécie que tem parentes selvagens. Essa diversidade genética pode conferir resistências a doenças dessa espécie, mas se perdermos o elemento selvagem, podemos perder essa resistência que nos pode vir a dar jeito no futuro.

Seria ainda triste se perdêssemos estas espécies por causa da acção humana.
Sim, sem dúvida. Infelizmente é isso que tende a acontecer.

Faz acompanhamento de espécies que permanecem em ambientes humanizados. Como é que estas espécies se adaptam às alterações impostas pelos humanos?
Há espécies que têm essa capacidade de usar os habitats criados pelo homem. Nos morcegos, isso acontece com várias espécies, não com todas. Ao fim do dia, muitas vezes vemos os morcegos em torno das luzes a caçar insectos. Quando estudo espécies em habitats humanizados, não é apenas no contexto urbano, é muitas vezes num contexto agrícola. Grande parte da biodiversidade europeia está associada a zonas agrícolas. Se formos a pensar em Portugal, muitas das aves mais emblemáticas (as abetardas, por exemplo) estão associadas às pseudo-estepes, que são zonas agrícolas. Podemos pensar nos arrozais na zona do Tejo e nas salinas, que são super-importantes para aves limícolas. E tudo isto são paisagens alteradas pelo homem, muitas delas estão associadas a práticas mais tradicionais. Muitas vezes, em particular no contexto europeu, temos muitas espécies que estão quase dependentes de habitats que são criados pelo homem e práticas que foram desempenhadas durante milénios (ou centenas e centenas de anos). E essas espécies, privadas do seu habitat original, ainda encontram refúgio nestes habitats criados pelo homem.

Acabam por beneficiar dessas condições humanas?
Algumas sim.

É natural da Madeira e tem estudado morcegos na região. O que descobriu sobre os morcegos aí?
Este foi o projecto que fiz com financiamento da National Geographic e estivemos durante os últimos dois anos e meio a estudar os morcegos que há na Madeira e já sabíamos que tínhamos três espécies, mas não sabíamos muito bem qual era a distribuição e abundância. O nível de conhecimento era muito reduzido. Conseguimos ter um mapa de distribuição das diferentes espécies de morcegos na Madeira. Os morcegos pensavam-se extintos no Porto Santo. Estivemos lá à procura e não estão extintos. Ainda existe. Existe apenas uma espécie: o morcego-da-madeira, que não existe apenas na Madeira. É uma espécie que só existe em ilhas. O Porto Santo é quase três vezes mais antigo do que a Madeira. Conseguimos descobrir fêmeas grávidas e juvenis. É uma população pequena, mas a situação não é tão crítica como pensávamos.

Os morcegos acabam por ser muitas vezes mal vistos. Qual é a importância destes animais?
São importantes por várias razões: têm um papel a desempenhar nos ecossistemas. Aqui na Europa, praticamente todos os morcegos são insectívoros, se bem que há uns que se alimentam de aves e que comem peixes muito pequenos. Também têm essa componente mais carnívora. A grande maioria é herbívora. Se formos para a Amazónia, temos morcegos que se alimentam de néctar ou fruta. Dispersam as sementes e plantam novas árvores. Muitas espécies plantam tantas árvores que acabam, literalmente, por plantar florestas. São importantes para gerar habitat para outras espécies, mas também se estivermos a pensar num contexto de alterações climáticas em que estamos a dizer às crianças que é bom plantar árvores para sequestrar carbono, os morcegos estão a fazer isso todas as noites. Milhões e milhões de indivíduos de forma gratuita, um pouco por todo o mundo; então são grandes aliados. E muitos dos morcegos insectívoros alimentam-se de pragas agrícolas. Além disso, estão a consumir vectores de doenças, incluindo várias espécies de mosquitos, como o vector da malária. Também há esse eventual contributo para a saúde pública através do consumo dos vectores de doenças. Ainda estamos a começar a perceber.

Contribuem então mais para o controlo dessas pragas do que para uma possível propagação?
Pelo menos destas doenças. Os morcegos têm um elevado dispêndio de energia. Deslocam-se a voar, mas seria o equivalente a nós estarmos a correr o tempo todo. Teríamos de comer muito. Os morcegos têm de comer muito. Há espécies que, numa noite normal, comem quase o equivalente ao seu peso corporal em insectos. É multiplicarmos isso pela quantidade de morcegos que existe. Só para dar uma ideia: há uma gruta nos Estados Unidos, no Texas, que tem 17 milhões de morcegos de uma única espécie a viver nessa gruta. É o maior ajuntamento de mamíferos do planeta.

Falou da Amazónia, já viajou em trabalho para muitos lugares, como Madagáscar. De quais gostou mais?
Tenho um carinho muito especial pela Amazónia brasileira, passei lá dois anos e meio a fazer trabalho de campo. Foi onde fiz grande parte dos estudos científicos nos quais participei. Pensamos na Amazónia como algo intimidante. Sou da Madeira e estou habituado a ver o mar: olho para o horizonte e vejo azul. Na Amazónia temos o mesmo, só que vemos verde até ao horizonte. É uma sensação de imensidão quase que indescritível. Quando trabalhamos à noite na Amazónia é totalmente distinto. Estamos habituados ao dia, à luz, a ver onde é que nos movimentamos. Quando entramos na floresta, mesmo durante o dia, a nossa visão é reduzida pela densidade de florestação, então não conseguimos ver muito além de uns poucos metros. À noite, como há a canópia das árvores que bloqueia quase toda a luz que entra, acabamos por não ver praticamente nada. Ficamos muito sensíveis aos sons, aos cheiros. É uma experiência muito intensa. A minha primeira experiência nos trópicos foi no Quénia, na savana africana, naquilo que vemos nos documentários das manadas de elefantes e de zebras e girafas e aquele pôr do Sol gigante e avermelhado. É um sítio muito especial.

O que mais o preocupa quando está no terreno?
A interacção com os locais preocupa-me bastante. Como é que somos vistos, o que é que levamos e o que é que deixamos.

Também tem falado na falta de diversidade na ciência. Considera que é um problema?
É um problema a falta de diversidade não só racial e étnica, mas de género, também. Quando pensamos em diversidade na ciência, muitas vezes pensamos na diversidade de género, que é uma componente extremamente importante que temos de equacionar e em que há muito trabalho a fazer. O que tem é que nós como seres humanos somos seres multidimensionais. Temos uma religião, uma nacionalidade, uma etnia. Se formos fazer uma análise, devíamos ver a mesma proporção de pessoas de diferentes etnias que vemos no metro como professores, médicos, cientistas. No entanto, isso não acontece. Se isso não acontece, tem de haver algo que está a barricar o sistema. Há algo aí que devia chamar à atenção de todos, não é só àqueles a quem a temática literalmente toca na pele.

Para questões tão importantes e tão complexas como conservação da natureza, temos de capitalizar em todo o conhecimento que consigamos mobilizar. Se nós estamos, de forma directa ou indirecta, a excluir um segmento da população de contribuir com o seu conhecimento para a causa, podemos comprometer a causa. A conservação - o que queremos fazer é alterar o comportamento humano, porque a principal causa do declínio da biodiversidade é a acção humana. Se quisermos contribuir para a não-perda da biodiversidade, temos de trabalhar com pessoas. Precisamos de uma mensagem forte e também de um mensageiro. Muitas vezes a assimilação da mensagem depende do mensageiro. As características do mensageiro, o género do mensageiro, a aparência do mensageiro podem ter alguma influência. Se uma parte significativa da população não é branca e apenas recebe informação referente à conservação da natureza de pessoas brancas, pode pensar que conservação da natureza é algo que está exclusivamente associado a pessoas brancas. E isso está errado. É importante trabalhar com comunidades desfavorecidas e junto a minorias. E ainda temos um longo caminho a percorrer em Portugal.