Em busca da grande migração de herbívoros no vale do Côa
A Rewilding Portugal quer reconstituir um corredor natural na bacia hidrográfica do rio Côa. É um pensamento de longo prazo que se inspira nas gravuras rupestres daquela região para tornar o futuro mais resiliente aos incêndios. Há desafios pela frente.
A bacia hidrográfica do rio Côa estende-se desde o Norte da serra da Malcata até à foz daquele rio, 200 quilómetros mais a norte, no rio Douro. É um território ermo, fronteiriço, que nos últimos dias de Maio revela a secura de um ano de pouca chuva nos planaltos e no topo dos montes, apesar do verde mais evidente continuar a percorrer os vales, junto das linhas de água. Mas isso parece importar pouco para a dezena de cavalos sorraia que mastigam a vegetação amarela e rasteira, entre as sombras dos carvalhos, no topo do Vale Carapito, perto de Vilar Maior.
Uma das éguas sustenta um enorme abdómen e é alvo de comentários da equipa da Rewilding Portugal. Ela está na fase mais tardia da gestação e corre uma aposta de quando é que o potro irá nascer. Os vários elementos da organização que tinham apostado o acontecimento para os dias anteriores não tiveram sorte. A previsão de Pedro Prata está hoje na berlinda e ele olha com alguma expectativa para a égua. “Ainda não perdi a aposta”, afirma o líder da equipa.
Mas ninguém deseja acelerar o nascimento do futuro potro, até porque os sorraias já estão a fazer o trabalho a que foram chamados para fazer ali, no Vale Carapito: pastorearem um terreno vedado de cerca de 60 hectares. Deste modo, os cavalos ajudam a prevenir os incêndios e retomam um papel natural que faz parte destas paisagens, mas parece esquecido. “No Mediterrâneo, o ecossistema desenvolveu-se com incêndios, mas também com grandes herbívoros. Estes são uma ferramenta para se gerir grandes áreas”, explica Pedro Prata.
A grande herbivoria é um dos pensamentos-chave que está por trás da linha de acção da Rewilding Portugal, que começou a funcionar em 2019, está ligada à Rewilding Europe e conta com financiamentos do Programa Life da Comissão Europeia e do Programa Paisagens em Perigo da Universidade de Cambridge, financiada pelo Fundo Arcadia, do Reino Unido, entre outros. A organização quer trazer de volta ao corredor do Côa as dinâmicas originais deste ecossistema, algumas delas implícitas nas gravuras rupestres que se encontram naquela região e documentam um passado onde o cavalo selvagem, o auroque (um antepassado selvagem do boi) e a cabra-montez viviam livres.
“Do ponto de vista da Rewilding Portugal e da minha pessoa, acho que há um compromisso geracional. Isto é um trabalho a longo prazo, se calhar vai durar 20 ou 30 anos a acontecer. Mas isso é possível, e às vezes as coisas acontecem mais rápido do que estamos à espera”, sustenta o biólogo, de 40 anos. “Se um dia conseguirmos ter os grandes herbívoros, os cavalos, as cabras, os substitutos dos auroques a migrarem neste corredor, fazendo a migração sazonal, e isto funcionar, então encontrámos um equilíbrio do ponto de vista ecológico que seria bastante satisfatório.”
Esta dinâmica está ligada a uma vegetação mediterrânica diversa capaz de sustentar várias espécies de herbívoros, como o coelho, a perdiz, o javali, o corso e o veado, e expande-se para animais carnívoros de topo, como o lobo e o lince, permitindo ainda a vida de necrófagos como o grifo. “Na dinâmica destes ecossistemas a floresta não é uma floresta densa e alta, é esparsa, com espaços abertos, em que boa parte da sua biomassa está disponível nas espécies de animais, tanto aves como mamíferos”, explica Pedro Prata.
A relação entre o pastoreio e o tipo de floresta que alimenta a visão de Pedro Prata começa a despontar no Vale Carapito, onde foi instalada uma vedação que impede os herbívoros de entrar num terreno quadrado de 20 por 20 metros, e que funciona como controlo.
Desde há um ano, quando os sorraias foram trazidos para ali, que o terreno quadrado se desenvolveu sem interferência, protegido pela vedação. O resultado é contrastante. No quadrado há um prado de espigas secas que ultrapassam o joelho, com poucas espécies herbáceas presentes. As duas ou três árvores dentro do quadrado estão com ramos crescidos em todas as direcções. Se um fogo fosse ateado ali, rapidamente se espalhava por toda a área, lançando carbono para a atmosfera e anulando o dióxido de carbono acumulado naquele pequeno prado.
Fora desse quadrado, onde os cavalos puderam se alimentar, a vegetação está rasteira, há diversas espécies de plantas, algumas ainda em flor, e as árvores tendem a não ter ramos e folhas até determinada altura, expandindo-se apenas na vertical. “A região de fora fica mais limpa e com mais diversidade. É o que os herbívoros fazem”, resume o biólogo para o grupo de jornalistas convidado pela organização para conhecer os seus espaços. Aqui, “o fogo tem muito menos capacidade de progredir de árvore para árvore.”
Além dos 60 hectares vedados onde estão os cavalos, a organização tem ali mais 50 hectares em terrenos mais pequenos. Neste espaço, espécies selvagens como o coelho-bravo (Oryctolagus cuniculus), que está em perigo de extinção devido à mixomatose e à doença hemorrágica viral, podem ficar protegidas de ameaças como a caça. “Não há justificação científica para se caçar coelhos, têm um estatuto de conservação mais baixo do que um panda”, diz Pedro Prata, com alguma revolta na voz.
Juntamente com alguns gestores cinegéticos, a Rewilding Portugal definiu aquele local como área de refúgio, de não caça. Sendo uma espécie essencial para vários predadores, como o lince-ibérico (Lynx pardinus), a esperança é que a partir destas zonas seguras as populações de coelhos tenham a capacidade de restaurar os seus números. Neste momento, existe apenas um coelho em cada dez hectares naquela região. Uma população de lince-ibérico necessita que haja três a quatro coelhos por hectare, segundo o biólogo.
Pôr o pé na porta
O Vale Carapito é um dos terrenos que a Rewilding Portugal adquiriu na região do grande vale do Côa para estabelecer a sua visão de renaturalização, em que o papel da conservação é dar pequenas ajudas para a natureza fazer o resto. Além daquele terreno, a organização comprou o Ermo das Águias, com 800 hectares, perto de Vale de Madeira, no concelho de Pinhel, e a Quinta da Azilheira, com 400 hectares, que fica entre o concelho da Guarda, de Almeida e do Sabugal. E detém ainda a gestão de duas outras áreas: o paul de Toirões, uma antiga zona mineira com 300 hectares, situada a poucos quilómetros a noroeste de Vilar Maior, e a Ribeira do Mosteiro, com cerca de 400 hectares, em Freixo de Espada à Cinta.
Até 2023, o desejo de Pedro Prata é adquirir mais dois terrenos no valor total de 1000 hectares, ficando assim com pequenas porções de território ao longo dos 312.000 hectares da bacia hidrográfica do Côa. Parece pouco, mas a sua função é estratégica. Aproveitando-se de zonas que já têm uma protecção naquela região, como o sítio da Malcata e a Zona de Protecção Especial do vale do Côa, ambos integrados na Rede Natura 2000, além do Parque Natural do Douro Internacional, as áreas da Rewilding Portugal permitem à organização implementar uma política de renaturalização e monitorização da biodiversidade, que em último caso ajudará a fauna a percorrer toda aquela região, funcionando como pedras que permitem atravessar um ribeiro.
Mas os terrenos comprados e geridos também são importantes do ponto de vista social. “São áreas para termos um pé dentro, um pé na porta, ser um igual entre outros proprietários, encontrar soluções diferentes para problemas comuns e dar exemplos de alternativa ao entorno”, explica o responsável. “Este território é todo privado, não há outra maneira de cá entrar, não vale a pena dizer às pessoas como fazer as coisas, é preciso ou fazê-las para demonstrar ou esperar que elas nos copiem.”
Muitos dos terrenos daquela região são de baixa produtividade, segundo Pedro Prata, e por isso bons para a renaturalização. No entanto, uma das dificuldades da organização é convencer outros proprietários a aderirem à gestão proposta pela Rewilding, de modo a tornar o corredor natural do vale do Côa livre e seguro para a passagem da fauna. Para isso, a instituição quer propor a uma série de proprietários a possibilidade de lançarem um pedido de certificação em conjunto para o mercado de carbono. Este mercado serve para as empresas e entidades poluidoras pagarem pelo dióxido de carbono que emitem para a atmosfera, responsável pelo efeito de estufa e pelas alterações climáticas.
Nestes terrenos, o certificado teria de contabilizar a quantidade de dióxido de carbono que um pedaço de terra como Vale Carapito absorve ao longo do ano, tendo em conta não só o crescimento do coberto vegetal, mas também a massa de carbono que vai saltando para os herbívoros que se alimentam da vegetação, depois para os carnívoros que predam os herbívoros e assim sucessivamente. O pedido de certificação é caro e o modo de fazê-lo é complexo, mas poderá ser uma opção que rentabiliza estes terrenos e, ao mesmo tempo, ajuda na preservação do ecossistema.
“Estamos à procura de modelos que permitam partilhar os benefícios desta gestão do território com os demais”, adianta o biólogo. “Uma das formas pode ser o mercado de carbono. Neste momento, o mercado é benéfico para quem vende, porque há mais procura do que oferta. Tenho esperança que consigamos cerca de 100 euros por hectare por ano.”
Deixar a vida vir
Antes de Vale Carapito, visitámos o paul de Toirões, uma antiga mina de estanho e titânio concessionada pela Porstin-Minas de Estanho, empresa luso-espanhola que deixou de explorar o terreno há pouco mais do que uma década. O terreno foi comprado por um mecenas estrangeiro, que quer doar a gestão à Rewilding Portugal.
Na entrada do paul, vêem-se os edifícios abandonados, que são agora usados pela coruja-das-torres (Tyto alba). Pedro Ribeiro, biólogo e técnico da Rewilding Portugal, traz-nos um pedaço de regurgitação de coruja-das-torres, já completamente seca, para podermos observar o seu conteúdo, onde há pequenos ossos e crânios de roedores. “Dá para ver as espécies que as aves caçam e que existem na área”, explica Pedro Ribeiro, que é especialista em aves.
A exploração mineira acabou por escavar várias depressões no solo que, com a chuva, se encheram de água e tornaram-se lagoas, permitindo a chegada de várias espécies de aves, como a garça-real (Ardea cinerea) e o pato-real (Anas platyrhynchos), além de cágados. Num dos primeiros lagos é possível ver, ao longe, uma pequena população de cágados a apanhar sol na encosta quase vertical, criada artificialmente.
Alguns indivíduos pertencem à espécie do cágado-de-carapaça-estriado (Emys orbicularis), um réptil raro que está em perigo de extinção, e apresenta uma carapaça arredondada e pintas na cabeça e nas patas. Outros indivíduos pertencem à espécie do cágado-mediterrânico (Mauremys leprosa), menos ameaçada em Portugal, que tem uma carapaça mais achatada. Como chegaram aqui? “Por expansão natural. Se não houver distúrbio e houver tempo suficiente, eles chegam cá”, explica Pedro Ribeiro.
Foi neste paul que uma câmara que se activa pelo movimento, colocada pela organização, conseguiu capturar a imagem de um veado, o que deu muita alegria à equipa. Uma das grandes barreiras ao longo do corredor ecológico do vale do Côa são as várias vedações de arame farpado que condicionam o movimento da fauna e dos grandes herbívoros. Nesse sentido, a visita de um veado no paul deu alguma esperança.
“Este paul é um ponto médio por causa da água e da sua situação geográfica”, diz Pedro Prata, referindo-se à posição estratégica do terreno em relação ao corredor do vale do Côa. Uma das acções será fazer alterações no lago maior, que tem as margens verticais, muito escavadas. “A forma do lago não ajuda a vinda de biodiversidade”, explica o biólogo. Por isso, a organização quer tornar as margens mais suaves, criar meandros, ilhas na lagoa e ligá-la a uma ribeira que passa perto. Será um investimento entre 15.000 a 17.000 euros, prevê o responsável. Depois, como no resto, é deixar o tempo acontecer: “Não há muita coisa para fazer, apenas manter o espaço sossegado e deixar que a vida venha.”