Antigo director do Museu do Louvre suspeito de tráfico de antiguidades
Autoridades francesas acreditam que Jean-Luc Martinez pode estar envolvido numa rede internacional. Historiador de arte foi detido a 23 de Maio e assim continuou, pelo menos, até esta quarta-feira à noite. Em causa está a proveniência de uma estela egípcia comprada para a extensão do Louvre em Abu Dhabi.
O antigo director do Museu do Louvre e historiador de arte Jean-Luc Martinez foi detido pela polícia francesa sob suspeita de envolvimento numa rede de tráfico de antiguidades. Entre os crimes de que é acusado estão o de fraude e o de lavagem de dinheiro, noticia a imprensa francesa.
No centro do processo está uma estela egípcia com inscrições relativas a Tutankhamon, o mais mediático de todos os faraós, que terá sido roubada e está hoje em exposição no Louvre Abu Dhabi, a extensão do museu parisiense nos Emirados Árabes Unidos.
Jean-Luc Martinez ficou detido no dia 23 de Maio, assim como o conservador do departamento de antiguidades egípcias, Vincent Rondot, e o egiptólogo Olivier Perdu. Ao início da noite de quarta-feira, o antigo responsável do Louvre estava ainda sob a alçada das autoridades.
A notícia foi avançada pelo jornal satírico semanal Le Canard enchaîné com o curioso título “L’ancien patron du Louvre frappé par la malédiction de Toutankhamon” (Antigo patrão do Louvre atingido pela maldição de Tutankhamon) e está a ser profusamente citada.
A estela com mais de 3300 anos em granito rosa, com 1,60 metros de altura, que está agora no centro de um complexo inquérito internacional “é, a vários níveis, um objecto excepcional”, garantiu ao diário Le Monde o egiptólogo Marc Gabolde, professor da Universidade Paul-Valéry, de Montpellier. A peça, que tem o selo do jovem faraó, foi comprada pelo Louvre Abu Dhabi em 2016, por oito milhões de euros, segundo o canal francês BFMTV.
Aos olhos do juiz de instrução parisiense Jean-Michel Gentil, que conduz o processo que levou à detenção de Jean-Luc Martinez e de dois alegados cúmplices, a proveniência deste objecto levanta muitas e sérias dúvidas. A polícia e o tribunal acreditam que a estela terá sido obtida e comercializada ilegalmente por Christophe Kunicki, um negociante de antiguidades, e por um marchand que estava já no radar das autoridades, Roben Dib.
Ainda segundo o Le Monde, a investigação levada a cabo por uma equipa especializada em tráfico de bens culturais apurou que Kunicki e Dib terão falsificado documentos relativos a centenas de peças arqueológicas pilhadas em diversos países do Médio Oriente, atribuindo-lhes uma origem que está longe de corresponder à real.
Christophe Kunicki também já tinha chamado a atenção das autoridades nos Estados Unidos, quando, em 2017, vendeu ao Museu Metropolitan de Nova Iorque o sarcófago dourado do sacerdote Nedjemankh por 3,5 milhões de euros, uma peça que, garantia o negociante, tinha saído do país legalmente em 1971. Ora o sarcófago, veio a apurar-se mais tarde, tinha sido roubado no Cairo em 2011.
As dúvidas de um egiptólogo
Foi Marc Gabolde, autor de um longo artigo científico sobre a estela que classifica como um “tesouro” do mundo antigo, cuja importância é reforçada pelo facto de estar intacta, “algo pouco comum em se tratando [de um artefacto com inscrições] de um rei”, quem pôs as autoridades a duvidar do percurso da peça exposta nos Emirados.
O egiptólogo reparou que no seu historial de proveniência era dito que tinha sido comprada nos anos 1930 por um oficial da marinha mercante alemã a um antiquário egípcio de nome Habib Tawdros, o mesmo que aparecia envolvido no caso do sarcófago vendido ao Metropolitan, cuja origem havia sido adulterada.
Este dado, que Gabolde considerou relevante, aparentemente não suscitou qualquer inquietação no curador de antiguidades egípcias e no director do Louvre, que, mesmo tendo comprado a peça em 2016, podiam ter posteriormente alertado as autoridades para a estela que tinham adquirido antes de rebentar o escândalo envolvendo Christophe Kunicki, uma estela que partilhava parte da sua proveniência com o sarcófago do sacerdote Nedjemankh.
Que papel desempenhou Jean-Luc Martinez neste processo? As autoridades tentam agora obter resposta a esta e a outras perguntas: o que sabia o antigo director do Louvre sobre a origem da peça e sobre os negociantes envolvidos no processo? Por que razão não alertou as autoridades depois de se ter apurado que o sarcófago vendido ao Metropolitan sob mediação de Christophe Kunicki, especializado em peças arqueológicas do Mediterrâneo, tinha, na realidade, sido roubado?
Em França, Kunicki e o marchand Richard Semper estão sob investigação da Brigada de Tráfico de Bens Culturais desde Junho de 2020, escreve o canal BFMTV no seu site, enfrentando várias acusações, entre elas associação criminosa, branqueamento de capitais e falsificação de documentos.
Em Março último, a rede de investigação alastrou e apanhou na sua malha um marchand alemão e um galerista e um coleccionador franceses. Segundo esta unidade de investigação especializada, o tráfico de antiguidades do Médio Oriente intensificou-se com a convulsão gerada pela Primavera Árabe, a onda revolucionária que, a partir de Dezembro de 2010, clamou por mudanças de regime em países como a Tunísia, o Egipto, a Síria, a Líbia e o Iraque.
De acordo com o jornal Le Figaro, o eventual envolvimento de Jean-Luc Martinez e dos peritos em egiptologia Vincent Rondot e Olivier Perdu surpreendeu tudo e todos. Marc Gabolde, o egiptólogo que levantou a lebre sobre a origem da estela e que aparece citado em várias publicações nos últimos dois dias, acredita que os três homens agora visados pelas autoridades, tal como o Estado egípcio, são vítimas e não cúmplices desta rede internacional de tráfico de antiguidades.
Le Canard enchaîné, o jornal que primeiro divulgou a detenção do director do Louvre, diz ainda que, no mesmo ano em que a estela foi comprada, 2016, o Louvre Abu Dhabi adquiriu ainda outros quatro artefactos cuja origem importa apurar, em transacções que envolveram “milhões de euros”.
Numa primeira reacção, Jean-Luc Martinez fez saber, através dos seus advogados, Jacqueline Laffont e François Artuphel, que “contesta com a maior firmeza” as acusações que o envolvem. A equipa encarregada da sua defesa acrescenta que o ex-director do Louvre só prestará, por enquanto, declarações à Justiça, mas "não duvida que a sua boa-fé irá ser demonstrada”.