Chegou a hora de aproveitar as fontes de água menos convencionais. Porque cada gota conta

A população mundial já enfrenta problemas graves de escassez de água, e esse cenário vai piorar nas próximas décadas. É urgente, dizem os especialistas, olhar para as fontes de água não convencionais, que podem disponibilizar mais água - e ainda são pouco utilizadas.

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REUTERS/Christophe Van Der Perre

Recolher água do nevoeiro, reutilizar águas residuais, dessalinizar, mover icebergues. Perante o cenário de escassez de água à escala global que se agrava, é preciso aproveitar toda a água que existe, esteja onde estiver. É esse o alerta que lança o Instituto de Água, Ambiente e Saúde da Universidade da Califórnia (UNU-INWEH), apoiado pela Organização das Nações Unidas (ONU), no novo livro Recursos Hídricos Não Convencionais.

​“A verdade é que as abordagens convencionais de abastecimento de água que dependem da queda de neve, da chuva e do escoamento dos rios não são suficientes para atender à crescente procura de água doce em áreas com escassez de água”, alerta, em comunicado, Vladimir Smakhti, director do UNU-INWEH.

Na publicação que é lançada esta quinta-feira, um grupo de especialistas e cientistas reúne informação sobre as fontes de água que não estão a ser aproveitadas em todo o seu potencial e que podem ser cruciais no combate à escassez hídrica que a humanidade enfrenta.

“Chegou a altura da humanidade explorar as fontes de água não convencionais amplamente subutilizadas”, defende Manzoor Qadir, vice-presidente da UNU-INWEH. O livro deixa, no entanto, um alerta: as políticas nacionais de água e os planos de acção para explorar essas fontes exigem não só novas fontes de financiamento mas também uma avaliação dos impactos ambientais.

​É essencial, defendem os especialistas em recursos hídricos da ONU, que a água - em todas as suas formas - seja monitorizada e contabilizada, incluindo o seu valor para os alimentos, ecossistemas e para a saúde, e o seu papel no apoio à segurança alimentar e às necessidades básicas da humanidade e ao desenvolvimento económico.

​“A crescente escassez de água é agora reconhecida como uma das principais causas de conflito, agitação social e migração e, ao mesmo tempo, a água é cada vez mais considerada um instrumento de cooperação internacional para alcançar o desenvolvimento sustentável. Ao explorar recursos hídricos não convencionais, muitas vezes focamos apenas nos custos das acções. Mas também temos que calcular os custos da inacção”, ressalva Edeltraud Guenther, co-editora do livro e directora do Instituto para Gestão Integrada de Fluxos de Materiais e Recursos (UNU-FLORES).

Uma em cada quatro pessoas em todo o mundo já sofre com a escassez de água, seja para beber, para o saneamento ou para a agricultura. E até 2030, a previsão é de que as necessidades globais de água da humanidade aumentem 40%.

O cenário agrava-se nas regiões do Médio Oriente e do Norte de África, zonas já profundamente afectadas pela falta de água e que contam apenas com 1% dos recursos de água doce do mundo. “As alterações climáticas aumentam essa complexidade, criando incerteza e secas prolongadas, principalmente em áreas áridas”, acrescenta Vladimir Smakhti.

O livro identifica seis grandes categorias de fontes de água não convencionais:

1. “Semear nuvens” e recolher gotículas do nevoeiro

A atmosfera contém cerca de 13 milhões de litros​ de vapor de água, e parte desse volume pode ser capturado através de uma técnica conhecida como “semear nuvens”: utilizando aviões ou drones (mas também é possível através de estações terrestres) são depositadas nas nuvens partículas de iodeto de prata que modificam a estrutura das nuvens, aumentando a probabilidade de chuva ou queda de neve. Nas condições certas, este processo pode aumentar a precipitação em 15%.

Quanto à recolha de água do nevoeiro ou da neblina é um processo que já acontece em países como o Chile, Marrocos ou África de Sul, através de redes de malha vertical. Os custos de instalação são relativamente baixos, tal como o impacto ambiental, e o retorno bastante positivo: num dia de nevoeiro intenso é possível recolher mais de 20 litros de água.

2. Dessalinização

A dessalinização já abastece 5% da população mundial e este valor deverá duplicar até 2030. Existem mais de 15 mil centrais dessalinizadoras em todo o mundo, que geram 86 milhões de metros cúbicos de água por dia (o equivalente a 34 mil piscinas olímpicas, que levam 2,5 milhões de litros de água cada). Mas o processo de transformação de água salgada em água potável tem custos - energéticos e ambientais. A chave estará no avanço da tecnologia para reduzir as necessidades energéticas e encontrar soluções para a salmoura, o resíduo que fica depois de se obter a água dessalinizada. Novas tecnologias que podem extrair sais, magnésio e outros metais da salmoura para produzir produtos comercialmente viáveis ​​podem compensar o custo da produção de água dessalinizada na próxima década, acreditam os especialistas.

3. Reutilização de águas no sector urbano e agrícola

Ao nível das cidades, os sistemas de tratamento de águas residuais municipais têm mostrado ser uma fonte de água viável ao mesmo tempo que protegem as águas superficiais e subterrâneas de alta qualidade. Têm sido, de resto, utilizadas também para recarregar aquíferos, as massas de água subterrâneas. Actualmente, cerca de 70% das águas residuais municipais nos países desenvolvidos são tratadas, mas esse valor cai para 8% nos países mais pobres. Nos EUA, em cidades como San Diego ou Califórnia, grande parte da água potável já é obtida através do tratamento de águas residuais. Em Israel, essas águas já são responsáveis pelo abastecimento de ¼ das necessidades agrícolas de água, por exemplo.

Apenas 1/5 de todas as terras cultivadas a nível mundial são irrigadas, mas são responsáveis pela produção de 40% dos alimentos que consumimos globalmente. Em comparação com a agricultura de sequeiro, a agricultura irrigada é, em média, pelo menos duas vezes mais produtiva por unidade de terra, pois permite a intensificação da produção e a diversificação das culturas.

E ainda mais alimentos podem ser cultivados usando a mesma quantidade de água através de uma melhor conservação e reutilização da água de drenagem agrícola: um processo de remoção natural ou artificial do excesso de água que se encontra no solo. A água de drenagem será sempre, no entanto, mais salina do que a água de irrigação da qual é gerada o que implica envolver culturas tolerantes ao sal.

4. Aproveitamento de águas subterrâneas frescas e salobras

As águas subterrâneas, por serem um recurso renovável, são uma reserva hídrica valiosa. Mas grande parte dessa água tende a ser salobra, isto é, salgada. O fundo do mar perto da costa tem volumes consideráveis ​​de água doce a salobra. Actualmente já existem novos métodos de exploração electromagnética marinha que fornecem imagens detalhadas de água doce offshore. Mas até hoje, nenhum recurso offshore de água doce foi desenvolvido.

5. Captura em micro-escala da água da chuva (que de outra forma evaporaria)

Em ambientes secos, é provável que mais de 90% da água da chuva se perca por evaporação. A captação de água da chuva em microbacias pode ser uma oportunidade relevante de captar água para a produção agrícola, por exemplo. É uma prática antiga que usa a recolha de água em telhados ou cisternas até sistemas agrícolas e paisagísticos, incluindo diques ou pequenas bacias de escoamento.

6. Mover a água fisicamente nos porões dos navios ou rebocar icebergues

Os navios transportam cerca de 90% das mercadorias comercializadas em todo o mundo e descarregam cerca de 10 mil milhões de toneladas de água de lastro todos os anos. A água de lastro é utilizada para dar equilíbrio aos navios: quando a embarcação está sem a carga, os tanques recebem água de lastro para manterem a estabilidade. Quando o navio é carregado, a água é lançada ao mar.

Existe uma convenção internacional que obriga todos os navios a ter opções de tratamento a bordo para dessalinizar a água de lastro, remover organismos aquáticos invasores e compostos químicos insalubres. O que quer dizer que essa água poderia estar a ser utilizada para outros fins, como a irrigação, e poderia ser vendida em cidades portuárias das regiões mais áridas.

No que toca a rebocar icebergues para levar água onde ela escasseia, a questão complica-se. Os mais de 100 mil icebergs do Árctico e da Antárctida que derretem no oceano a cada ano contêm mais água doce do que o mundo consome. Por isso, a recolha de icebergs para água doce é uma solução discutida há muito, mas não é consensual.

Apesar de já existirem experiências - no noroeste da Gronelândia já há icebergues que são rebocados para fornecer água a 700 pessoas - o reboque de icebergues de longa distância nunca foi tentado devido à perda significativa de volume de água e potencial quebra do gelo durante o processo. Além disso, há o desafio de transformar um icebergue em água potável no seu destino final e os impactos ambientais associados a esses processos.