“Vivemos na ilusão de que água na paisagem é simplesmente o cenário das nossas vidas”

Guilio Boccaletti , climatólogo, físico e um dos maiores peritos mundiais em recursos naturais e sustentabilidade, descreve a água como o “agente mais poderoso do sistema climático da Terra”.

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Em Água, uma biografia, Guilio Boccaletti , climatólogo, físico e um dos maiores peritos mundiais em recursos naturais e sustentabilidade, descreve a água como o “agente mais poderoso do sistema climático da Terra”. Apesar disso, diz, hoje vivemos alheios a ela, numa ilusão de controlo total, de emancipação em relação à natureza.

“Pensamos que não temos uma relação com a água. Estamos prestes a descobrir que ainda temos”, disse ao PÚBLICO nesta entrevista a pretexto do lançamento do seu livro. Do papel da água na guerra da Ucrânia às alterações climáticas, Boccaletti alerta que a resposta das sociedades aos desafios da água não vai ser visível em soluções de engenharia, mas sim na resposta social e política que provocarem. Uma lição que a história da água revela.

Mais do que contar a história da água, neste livro fala-nos da ligação entre as sociedades e a água. Qual é hoje, no século XXI, a nossa relação com este recurso natural?
É uma história de duas relações diferentes, na verdade. Há uma parte do mundo, de que qualquer pessoa que viva na Europa, Estados Unidos, faz parte, qualquer parte do mundo desenvolvido e rico. Nós vivemos numa ilusão de controlo total. Tanto que acreditamos que não temos uma relação com a água.

Vivemos na ilusão que água na paisagem é simplesmente o cenário das nossas vidas, não interagimos propriamente com ela. Vamos trabalhar e não atravessamos um rio a pé, abrimos a torneira e temos água, tomamos um duche de manhã - mas não temos esta noção de que a água é uma força na paisagem que pode transformar a nossa vida. E isso é uma ilusão que resulta de mais de um século de investimentos em infra-estruturas e instituições, particularmente ao longo do séc. XX. Deu-nos a ideia de que estamos separados da natureza, quando de facto não estamos. E essa ilusão está a começar a desfazer-se.

E depois há outras pessoas no planeta - a maioria na verdade - que vivem nos países mais pobres, não tiveram a oportunidade de fazer os investimentos em infra-estruturas e instituições que nós fizemos, e para essas pessoas essa ilusão nunca existiu. Para elas, a água é a expressão do sistema climático na paisagem, basicamente experienciam secas e cheias quando elas acontecem. Agora mesmo, cerca de 13 milhões de pessoas sofrem de insegurança alimentar no Corno de África porque as secas reduziram as colheitas deste ano.

A vasta maioria do planeta não vive numa ilusão de controlo. E para eles as coisas estão progressivamente a piorar. Enquanto nós - que pensamos que não temos uma relação com a água - estamos prestes a descobrir que ainda temos.

Temos justamente a guerra na Ucrânia que é muitas vezes descrita como a “guerra da energia”, mas não será também uma guerra sobre água? Ou sobre o que a água possibilita, como a produção alimentar?
Se lermos os discursos de (Vladimir) Putin nos últimos dez anos, vemos que ele sempre teve este objectivo de segurança alimentar e tornar-se novamente um grande exportador de cereais, de trigo. E esta é uma história que encontra as suas raízes nos sonhos imperialistas que a Rússia sempre teve. A Rússia é um país muito vasto, com muita terra e muita água, mas há um senão: estão no sítio errado.

A maioria da água da Rússia, com excepção do (rio) Volga, está sobretudo no norte do país onde não se pode cultivar. Por outro lado, os solos férteis estão no sul do país que é bastante seco e precisa de irrigação. Durante o período soviético, o problema foi como produzir alimentos suficientes nesta grande área para abastecer o país. E no final a União Soviética colapsou porque ficaram sem dinheiro, tiveram de importar alimentos dos Estados Unidos, ironicamente, e isso foi em última análise algo que os levou à falência.

Putin sempre teve isto em mente. Recordo-me que em 2015 ele fez um discurso na assembleia russa, celebrando o facto de pela primeira vez a Rússia ter voltado a ser um dos grandes exportadores do mundo, exportando mais colheitas, em valor, do que armas. Nesta história, a Ucrânia sempre teve um papel importante porque é a única parte da antiga União Soviética que tem uma paisagem incrivelmente fértil.

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Produção de trigo na região de Kiev, Abril de 2020 REUTERS/Valentyn Ogirenko

A Ucrânia produz cerca de 10% do trigo do mundo, mas além disso é atravessada - divida ao meio - pelo rio Dniepre, que é um dos únicos rios que estava acessível ao bloco soviético na altura, escoa para o Mar do Norte e chega ao resto do Mundo. A Ucrânia é uma anomalia na esfera de influência russa. É um lugar muito fértil, com muita água e também um rio para transporte.

Uma das razões pelas quais isto é tão importante é que apesar de falarmos deste conflito como uma guerra da energia, para muitos países, em particular os países pobres em África, as colheitas, a alimentação, são bens muito mais importantes.

Uma família média no Egipto gasta um terço do seu rendimento em alimentação. E o trigo é uma grande parte dessa cadeia de valor. Por isso quem controlar a produção de trigo tem uma enorme influência numa grande parte do mundo e a Rússia e a Ucrânia juntos controlarão um um terço de toda a produção de trigo no mundo. Esta guerra, claro, é movida por pessoas, mas conseguimos ler neste conflito o que o potencia em termos de colheitas e, dessa forma, em termos de água.

No seu livro descreve como a água, ao longo da história, revela o poder institucional, mais do que ao nível das infra-estruturas ou de engenharia. Para a Rússia, não se trata apenas de, recorrendo a uma solução de engenharia, por exemplo, levar água do norte do país para o sul. A procura é pelo poder de influência?
A história da Rússia e as suas tentativas de moldar a paisagem através da engenharia para aumentar a sua produtividade - que é essencialmente a história do séc. XX - é muito comum. No final do séc.XX, o Oeste dos EUA era ainda pouco habitado e o governo federal fez investimentos enormes para apoiar o movimento das populações para lá. E foi assim que acabámos por ter hoje uma Califórnia com 4 milhões de habitantes. Transformou-se um deserto num jardim, e isso foi feito através de infra-estruturas e muito dinheiro.

Estabeleceu um padrão que toda a gente tentou seguir, incluindo a União Soviética. Lenine costumava dizer que o comunismo era o poder dos soviéticos - a par da electrificação. Electrificação na Rússia, tal como noutras partes do mundo nessa altura, passava por energia hidráulica. Esta lógica de aplicar engenharia na paisagem ao serviço da economia industrial. E foi o que a Rússia e a União Soviética tentaram fazer com os seus rios a Norte, houve vários planos a partir de 1950 para desviar os rios do norte para escoar para sul. Após o colapso da União Soviética descobriu-se que tinham contemplado inclusivamente usar uma bomba nuclear para mudar o curso dos rios, o que teria sido completamente absurdo.

Mas eis o seguinte: essa ideia modernista ainda está viva. Porque essa é exactamente a base do novo desenho de engenharia da paisagem chinesa hoje.

Há um projecto massivo que os chineses têm tentado concretizar nas últimas duas décadas para transferir água da bacia de Yangtze para a bacia do rio Yellow a norte, que é muito mais seco e é onde historicamente a maior parte dos cereais são cultivados na China. A barragem das Três Gargantas, que é uma enorme obra construída no início dos anos 2000, é apenas um exemplo de como esta ideia modernista, esta “recanalização” do planeta é ainda muito a forma como alguns países pensam a sua paisagem e o seu futuro.

Olhando para a sua investigação, e sabendo que hoje as alterações climáticas vieram alterar as dinâmicas da água, há lições que podemos retirar para gerir os desafios que o planeta enfrenta?
No livro começo a história há 10 mil anos, quando a humanidade, na sua grande maioria, se tornou sedentária. E esse foi o momento em que percebemos que tínhamos de agir colectivamente para confrontar a força da água na paisagem. Cheias podem transformar territórios, secas podem mudar os ecossistemas. Quando decidimos parar num mundo de água em movimento percebemos que tínhamos de construir diques para nos proteger das cheias, ou construir canais ou barragens para armazenar água e utilizá-la.

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A barragem das Três gargantas foi concluída em 2012, 18 anos depois de começar a ser construída. A maior central hidroeléctrica do mundo obrigou a deslocar pelo menos 1,3 milhões de pessoas. REUTERS/Stringer

Podemos pensar que a história da água é uma história de engenharia, e hidráulica - e há uma dose disso - mas fundamentalmente este livro revela a história política entre as pessoas e a água. Uma das coisas que emerge muito rapidamente, olhando para 10 mil anos de história, é que essa relação entre água e as pessoas se traduz em instituições políticas.

A lição fundamental do livro é que temos uma enorme capacidade de nos adaptarmos. Mas isto não é sobre planos científicos ou uma planta de engenharia. É sobre instituições políticas e como elas permitem aos cidadãos participar num processo que depois determina como transformamos a nossa paisagem para vivermos juntos, protegermo-nos da força da água enquanto aproveitamos o que ela nos dá.

É uma questão política, será também do modelo económico? O modelo de produção do sistema capitalista é muitas vezes apontado como o responsável pelo aquecimento global e pelo desastre ecológico. É preciso repensar esse sistema, tendo em conta a relação com a água que queremos para o futuro?
A minha crítica não é uma crítica do capitalismo. Penso que o capitalismo está para ficar, e não penso que a resposta para a pergunta “como é que nós nos adaptamos às alterações climáticas” passe por restringirmos a discussão ao capitalismo. Tem a ver com justiça. Podemos ter uma sociedade justa que é uma sociedade capitalista, é uma questão política, não económica. A questão é que já temos instituições desenhadas para lidar com estas questões. O que tento dizer no livro é que temos de redescobrir as raízes dessas instituições. Na República democrática estão as instituições que estão melhor desenhadas para nos ajudar a mediar as nossas ambições pessoais com uma abordagem colectiva da paisagem.

Qual é a alternativa?
A alternativa é o despotismo, que é, em grande parte, para onde a China caminha. Mas penso que as repúblicas democráticas têm um papel muito importante na criação de uma alternativa, tendo em mente que somos cidadãos antes de sermos consumidores. As repúblicas funcionam se as pessoas não acharem que é tudo sobre direitos individuais. Não dão apenas direitos, requerem deveres por parte dos cidadãos, obrigação de participar nos processos políticos, de se envolverem, pagar impostos. O que é diferente, já agora, de um sistema liberal tradicional, anglo-saxónico. Acho que temos de redescobrir as nossas raízes republicanas, é assim que vamos juntar-nos colectivamente e redesenhar as nossas paisagens quer seja Portugal, Espanha, Itália, o Reino Unido, ao serviço de uma res publica, um bem público, ao mesmo tempo que preservamos as nossas identidades.

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No verão de 2021, a Alemanha sofreu as cheias mais devastadoras das últimas décadas. REUTERS/Wolfgang Rattay

No livro realça um número: a quantidade de água na terra é a mesma há 4 mil milhões de anos. Mas a sua distribuição não é equitativa – e está a mudar. Em Portugal secas severas fazem repensar o uso da água, nomeadamente na agricultura. As soluções estão na tecnologia ou em alterar modelos e práticas?
Penso que a solução não será apenas de engenharia. Os valores que temos hoje são diferentes do que tínhamos há 100 anos quando essa foi a resposta. Ou parecia ser. Suspeito que daqui a 100 anos vamos descobrir que as escolhas que fazemos hoje não são consistentes com o que vamos querer nessa altura. Isso é uma coisa que se torna evidente quando olhamos para 10 mil anos de história desta relação, é que é sempre a segunda melhor situação, fazemos sempre escolhas que em perspectiva criaram problemas.

Em relação ao problema de sustentabilidade que mencionou: temos de nos lembrar que as infra-estruturas da água - a capacidade de armazenar água quando não há suficiente a cair do céu, e proteger pessoas de cheias quando ela é demais - é uma plataforma fundamental para o desenvolvimento. Nós temos muito disso, em Portugal, Espanha, Itália construímos muito. Podemos imaginar mais soluções de engenharia mas, no fim de contas, vai ser mais barato mudar as práticas agrícolas.

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Índio do povo índigena Guajajara retira água de um poço no estado do Maranhão, Brasil REUTERS/Ueslei Marcelino

Mas há uma grande parte do mundo onde essa infra-estrutura tem de ser construída. Porque nunca a tiveram. E sabemos que não podem almejar a ter uma sociedade moderna - e isso quer dizer que as pessoas vivem mais tempo, têm saneamento, controlo de doenças que afectam ainda os países pobres. 1 milhão de crianças todos os anos morre por doenças relacionadas com a má qualidade da água, é ainda uma realidade para a maioria das pessoas neste planeta.

Parte do problema da abordagem ideológica às questões da água é que não reconhece que a resposta vai ser diferente em diferentes sítios. E a resposta mais urgente, o problema mais urgente, é aquele que as pessoas que nunca passaram pela tal ilusão de modernismo do séc. XXI enfrentam, nunca tiveram as infra-estruturas de que nós beneficiamos. Olham para nós e dizem: “também quero”.

Quem está a apoiar esses países a construir as infra-estruturas de que precisam?
Na maioria, a China. O problema é que a China vem com uma bagagem política. Não sabemos bem em que é isso se pode traduzir, não têm sido particularmente abertos na sua agenda política. Na agenda económica estão claramente a financiar grandes infra-estruturas de água por toda a América Latina, África e Sudeste Asiático. Temos de garantir que essa transformação se faz ao mesmo tempo que desenvolvem instituições políticas que não se tornem despóticas. Nesse caso teremos milhões e milhões de pessoas que vivem debaixo de regimes autoritários. Isso seria uma tragédia.

São essas também muitas vezes as nações mais vulneráveis às alterações climáticas. E no livro fala dos impactos das deslocações dessas populações. Quais são as áreas do globo mais críticas a que devemos prestar atenção?

Do ponto de vista da Europa, África e a África subsariana continuam a merecer muita atenção. Primeiro porque tem explodido demograficamente, quase mil milhões de pessoas no continente. Em 1950, a Europa tinha o dobro da população de África e agora África tem o dobro da população europeia. Muito do crescimento do mundo virá de África, eventualmente. África está a urbanizar-se, crescer, e não é apenas uma história de pobreza, é também uma história de desenvolvimento - e rápido.

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O conflito na Etiópia provocou a morte de vários milhares de pessoas e fez mais de dois milhões de deslocados, deixando centenas de milhares de etíopes em condições de quase fome, de acordo com a ONU REUTERS/Mohamed Nureldin Abdallah

Com isso vêm grandes benefícios -populações que saem da pobreza - mas também muitos riscos. Emerge muita corrupção, opressão. Muitos desses estados são incrivelmente frágeis. Trabalhei na Etiópia há uma década, e nessa altura a Etiópia era governada por um tipo chamado Meles Zenawi desde os anos 90. E presidiu a um período de crescimento assinalável e estabilidade. E também incrivelmente autoritário.

Estamos a falar de 100 milhões de pessoas, o segundo maior país em África. Parte desse progresso passou por construir infra-estruturas de água, uma barragem famosa no Nilo, a Renascença, alvo de tensão com o Egipto. Há cerca de dois anos o país entrou numa guerra civil e muito desse progresso foi perdido. E agora com uma seca intensa que criou um nível elevado de insegurança alimentar. Toda a gente se foca na Ucrânia, e é importante, mas há milhões de pessoas a morrer de fome no Corno de África.

Esse é um exemplo onde houve um grande foco em infra-estruturas de água e depois muito desse crescimento perdeu-se. São estados frágeis e se falharem completamente então as pessoas vão deslocar-se. Já estamos a ver este inverno cerca de 1 milhão de pessoas na Somália foi deslocada pela seca. As pessoas que atravessam o mediterrâneo a caminho de Itália e da costa da Europa são apenas uma amostra do que pode acontecer se não ajudarmos esses países a um clima que muda rapidamente.

Olhando para 10 mil anos de história, há razões para ser optimista?
O que se aprende ao olhar para esta relação que desenvolvemos ao longo de milhares de anos é que aprendemos a adaptar-nos. Constantemente e a diferentes condições hídricas. Algumas dessas adaptações tiveram consequências difíceis, mas temos ao nosso alcance essa adaptação.

Não vamos ficar sem água. Temos a mesma quantidade de água no planeta nos últimos 4 mil milhões de anos. A questão central é como é que organizamos a sociedade, os recursos, a soberania de modo a garantir que nos protegemos de catástrofes como cheias ao mesmo tempo que armazenamos água para quando e onde precisamos. Quando resultou particularmente bem foi quando o processo de desenhar essa adaptação foi um processo em que os indivíduos puderam expressar a sua opinião e estiveram em controlo sob o que lhes acontecia. O que não quer dizer que podiam fazer o que lhes apetecesse. Mas significa que são parte de um processo, significa que a sua voz é ouvida.

Temos muitas escolhas, mas não são todas iguais. Algumas delas, e corremos esse risco, parecem-se com “bem, chama um engenheiro, um cientista, eles resolvem”. Essa é a resposta errada. Ao longo da história, isso levou a respostas despóticas em que as pessoas não tinham controlo. Hoje há processos políticos onde as pessoas participam. Como colectivo podemos adaptar-nos, desde que nos comportemos como cidadãos e não consumidores distraídos que delegam o problema nas mãos da tecnologia. Essa não vai ser o caminho da solução.

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Em 2018, a Cidade do Cabo esteve perto de se tornar a primeira metrópole a ficar sem água REUTERS/Mike Hutchings