Da Azoia ao Faralhão, o pão é um assunto sério

As farinhas já não serão todas provenientes de moinhos de pedra, mas os processos de feitura de muitas padarias da Península de Setúbal continuam a ser tradicionais, razão pela qual muita gente vai ao fim-de-semana abastecer-se de pão entre o Faralhão e o Cabo Espichel.

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Pão da Azoia, na Padaria Anabela Teixeira (Azoia, Sesimbra) Marisa Cardoso
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Pão da Azoia, na Padaria Anabela Teixeira (Azoia, Sesimbra) Marisa Cardoso
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Pão da Azoia, na Padaria Anabela Teixeira (Azoia, Sesimbra) Marisa Cardoso

Na véspera da visita, Anabela Teixeira mandou-nos estar na sua padaria, na Azoia (Sesimbra), por volta das 5 da manhã. Perante o nosso silêncio, condescendeu: “Pronto, 5h30, pode ser?”

No dia da visita, ainda antes das cinco, em simultâneo com o despertador aos berros, um telefonema de Anabela: “Estão muito atrasados?” A resposta ensonada, “Mas é só às 5h30, certo?”. Continua Anabela: “Pois, mas o tempo virou, a massa veio mais cedo, o forno já está pronto e temos de meter o pão.” Portanto, saída da cama aos trambolhões e uma viagem em marcha acelerada para as imediações do Cabo Espichel.

À chegada à padaria Anabela Teixeira, gerida pela própria, pelo marido (Nelson) e pela filha (Beatriz), a azáfama era grande. Já havia pão fresco altamente aromático e outro à espera de entrar nos dois fornos a lenha. Aqui produz-se mais do que um tipo de pão, mas aquele que dá fama à casa é o chamado pão da Azóia – feito a partir de um lote de farinhas de trigo, massa mãe da fornada anterior com um pouco de fermento padeiro, água e sal. Nada mais.

Por falar em fama, convém fazer aqui um parêntesis para registar o quanto o pão é importante na Península de Setúbal, que vai do Cabo Espichel às margens do rio Sado (Faralhão), passando pela Quinta do Anjo (Palmela). Um pequeno exemplo. A partir de um pedido feito à Câmara Municipal de Sesimbra sobre o número de padarias no concelho, recebemos um ficheiro com 21 padarias, com a ressalva de que uma ou outra poderão já não estar em actividade. Ainda assim, não deixa de impressionar tanta padaria para uma área com cerca de 50 mil habitantes e com várias cadeias de distribuição com produção própria de pão a preços mais baixos.

A tradição de pão nesta região que chega até ao Sado tem que ver com a existência de algumas manchas de solos bons para a produção de cereais, ventos constantes e fortes para fazer trabalhar moinhos e (hoje menos) abundância de lenha para acender os fornos. Depois, uma certa competição entre os pães de cada freguesia – com algumas alterações técnicas de produção – acabou por criar uma espécie de clubes de fãs dos pães daqui ou dali, da padeira A ou da padeira B.

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A temperatura do ar, a origem da lenha e a qualidade das farinhas são factores críticos, a somar a detalhes que a experiência ensina. Por exemplo: "No tempo de ir aos pássaros", explica Nelson Teixeira, "os fornos demoram mais tempo a aquecer". Marisa Cardoso

Como sabemos, os portugueses têm opiniões muito fortes sobre o que é bom pão e sobre quem faz o melhor pão. Por exemplo, entre a Azóia e Alfarim (concelho de Sesimbra) vão uns 7 quilómetros. Nas duas terras usam-se, grosso modo, as mesmas farinhas e fornos idênticos, mas os pães são diferentes. Qual é o melhor? Deus nos livre de responder a semelhante pergunta, porque isso dos gostos é o que se sabe. Há quem só use um tipo de farinha e quem faça mistura de farinhas, há quem use água fria e há que use água morna na massa, há quem só use fermento de padeiro (ou holandês) e quem opte por uma mistura deste tipo de fermento com massa mãe da fornada anterior. E, claro, no meio de tudo isso há a interpretação de cada padeiro ou padeira, que em linguagem popular se designa como a “mão” do padeiro. É um mundo que não acaba.

A família de Anabela Teixeira, na Azoia, resume esta cultura organizacional. No tempo da sua avó, Carmina Lopes, quase toda a gente cozia o pão em casa. No tempo da mãe, Maria Virgínia, que aprendeu a arte com a sua mãe, as coisas mudaram, visto que muitas mulheres começaram a aceder ao mercado do trabalho e, em consequência, deixaram de ter tempo para fazer fornadas. Como tinham memória do que era bom pão, passaram a comprá-lo àquelas mulheres que ficaram sempre naquela condição de domésticas e cujos pães tinham a fama que passa de boca em boca.

Uma dessas mulheres era Maria Virgínia, que começou a receber encomendas de pão das vizinhas. A coisa correu tão bem que, a dada altura, era padeira profissional, ainda que sem grandes formalismos empresariais. Estes só apareceram quando Anabela decidiu levar o negócio a sério. Tão a sério que, hoje, ela, o marido, a filha e uns pouco colaboradores fazem cerca de 500 pães de trigo por dia, fora outras criações com centeio, chouriço ou passas.

Pão da Azoia, na Padaria Anabela Teixeira (Azoia, Sesimbra) Marisa Cardoso
Pão da Azoia, na Padaria Anabela Teixeira (Azoia, Sesimbra) Marisa Cardoso
Pão da Azoia, na Padaria Anabela Teixeira (Azoia, Sesimbra) Marisa Cardoso
Pão da Azoia, na Padaria Anabela Teixeira (Azoia, Sesimbra) Marisa Cardoso
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Pão da Azoia, na Padaria Anabela Teixeira (Azoia, Sesimbra) Marisa Cardoso

Tempo, temperatura e outras variáveis

Anabela é sempre a primeira a chegar à padaria – paredes-meias com a sua casa –, por volta da uma da manhã (“é o único defeito que esta profissão tem, uma pessoa ter de sair da cama a uma hora dessas”). Junta as farinhas, a água morna, a massa mãe retocada com fermento de padeiro e o sal, e deixa a batedeira fazer o seu trabalho. A massa fica a levedar durante o tempo que for necessário, para depois ser tendida e enviada para os fornos.

Esta história do tempo é das coisas mais fascinantes na arte de fazer pão, visto que o padeiro tem a necessidade de dominar diferentes variáveis para que o pão saia perfeito ou, melhor dizendo, com o perfil que é a imagem de marca da casa. Sim, a temperatura do ar, a origem da lenha e, claro, a qualidade das farinhas são os factores críticos. Nelson Teixeira, homem bem-disposto e com uma linguagem muito própria para explicar a importância das tais variáveis, exemplifica: “No tempo de ir aos pássaros, já sei que os fornos demoram mais tempo a aquecer.” Perante a nossa cara de caso, Nelson lá explica que o tempo de ir aos pássaros é Setembro, por ser este o mês em que, noutros tempos, se caçava uma determinada espécie de pássaros de arribação que aterravam no restolho. Como em Setembro o tempo arrefece, é preciso dar mais calor aos fornos.

Quanto às farinhas, o assunto dá para muitas horas de conversa. Mas, para irmos ao essencial, Anabela e Nelson não fazem pão com farinhas de um único fornecedor. A farinha de um deles tem peso preponderante, “mas o que dá um aroma, sabor e textura ao pão é a junção de farinha de trigo moída em moinhos de pedra”, realça Anabela. Farinha inteira, como dizem os antigos.

Mais, as exigências com as farinhas são de tal ordem que Nelson não gosta de fazer pão com farinha que foi entregue pelo fornecedor uns dias antes de ser usada. Porquê? “Porque a farinha, quando descansa, dá um pão mais saboroso”. Esta não sabíamos.

No resto, Nelson usa o forno para fazer experiências um tanto ou quanto fora da caixa, como é o caso do pão de cozido à portuguesa, que por vezes prepara para almoços com os amigos. “Desfio os restos do cozido, espalho pela massa, que depois é enrolada. Vai forno e fica um pão do cozido. É uma coisa simples, mas muito saborosa.”

Enquanto Nelson conta histórias, Anabela prepara os ingredientes para provarmos o seu pão da Azoia. Manteiga e queijos frescos e curados de leite de ovelha da queijaria do produtor Sabino Rodrigues [ver caixa], que é familiar de Anabela. O pão, com côdea fina, aroma a cereal, boa elasticidade e poucos olhos, quase se come sem nada. Com manteiga, ainda por cima açoriana, é a prova dos nove. Com os tais queijos amanteigados de ovelha, é aquele pecado de gula que exigirá uma penitência longa.

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Padaria Anabela Teixeira (Azoia, Sesimbra). À direita, os proprietários, Nelson e Anabela Teixeira. Marisa Cardoso

Comer umas sardinhas e levar pão do Faralhão

Outro ícone da região da Península de Setúbal é o pão do Faralhão, cuja fama se pode ver aos fins-de-semana com as filas que se fazem num ponto de venda dentro do Mercado do Livramento, em Setúbal. Ou então na própria padaria que fica na localidade do Faralhão, próxima do rio Sado.

Esta padaria esteve em risco de fechar, até que Olivério Mirador, da pastelaria Docinho de Mel, resolveu apostar numa casa que continua a fazer pão à moda antiga. Isto é, com farinha, água, sal e massa mãe. Como nos disse, “é tudo tão artesanal que só duas pessoas conhecem o processo”.

O certo que, num fim-de-semana, só no ponto de venda do Mercado do Livramento podem vender-se entre 600 e 700 pães. Não só para os residentes de Setúbal porque, como refere Olivério, “há muita gente que vem do Pinhal Novo ou do Montijo de propósito comprar este pão para a semana toda”. E outros aproveitam para ir ao Faralhão comer sardinhas (no tempo delas) ou caldeiradas e, depois do almoço, comprar o pão na própria padaria. Quando um português cisma com um determinado pão, o caminho nunca é longe.


Este artigo foi publicado no n.º 3 da revista Solo.

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