“Não há vacina contra as alterações climáticas”, mas há soluções – é o que se diz em Davos

Há milhões de pessoas a passarem fome por todo o mundo e a crise energética afectará sobretudo os mais vulneráveis. No Fórum Económico Mundial, na Suíça, falou-se da necessidade imperiosa de se fazer frente à crise climática.

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“Não estamos no caminho em que precisamos de estar”, denunciou John Kerry Reuters/ARND WIEGMANN

O que está em cima da mesa são as alterações climáticas, uma pandemia e uma guerra. Por causa disso, muito do debate desta terça-feira no Fórum Económico Mundial, que decorre em Davos, na Suíça, apontou a lupa à crise energética e à crise de segurança alimentar. Ainda assim, a guerra não deve ser usada como pretexto para travar a luta contra as alterações climáticas: “Não devemos deixar que se crie uma narrativa falsa de que o que está a acontecer na Ucrânia altera a necessidade de seguirmos em frente para lidar com a crise climática”, alertou o enviado especial para o clima dos Estados Unidos, John Kerry.

É preciso que haja vontade política porque “esta batalha tem de ser combatida agora”, disse ainda o antigo candidato presidencial norte-americano. Sendo uma crise criada por humanos, também pode ser resolvida por humanos. “Mas precisamos de nos mexer, precisamos de nos apressar, precisamos de fazer mais.” Essa responsabilidade é tanto maior nos 20 países que mais contribuem para as emissões de gases com efeito de estufa, disse John Kerry. “Estou completamente convencido de que conseguiremos atingir uma economia neutra em carbono, não estou é convencido de que o consigamos fazer a tempo.”

Muitos alertas foram sendo deixados ao longo do dia para a crise alimentar – e pela forma como as alterações climáticas a agravam, ainda que também o sector alimentar seja um dos que mais contribuem para as emissões de gases com efeito de estufa. A população mundial está a aumentar e precisará de cada vez mais alimento, mas os sistemas naturais já se estão a degradar. Há que encontrar forma de garantir um sistema alimentar mais sustentável para as gerações vindouras, pedem os especialistas – e há já milhões de pessoas a passarem fome, portanto a mudança tem de começar já. “Temos de mudar a forma como pensamos”, afirmou a activista climática Elizabeth Wathuti num dos painéis. “A nossa forma de fazer as coisas está a causar sofrimento.”

“Não há vacina contra as alterações climáticas”, disse o presidente do Fórum Económico Mundial, Borge Brende – mas há soluções, mesmo que não sejam fáceis. Num painel sobre como “salvaguardar o planeta”, o antigo ministro do Ambiente da Noruega deixou ainda outro alerta: “O custo da inacção é bem superior ao da acção.” Já em Janeiro, o relatório anual de risco do Fórum Económico Mundial definia a crise climática como a maior preocupação global e como a ameaça mais perigosa dos próximos dez anos. A perda de biodiversidade e o aumento de desastres climáticos lideram a lista.

O programa desta terça-feira, que juntou governantes, peritos, membros de organizações e investidores privados, teve vários fóruns dedicados à crise climática: como é que os países em desenvolvimento conseguem fazer uma transição climática, como se consegue alcançar a neutralidade carbónica, como podemos proteger o planeta, a segurança energética e o uso que damos aos solos. Com menos de uma hora por sessão, as respostas a estas questões são vagas e muito fica por dizer.

Uma crise energética global

O Fórum Económico Mundial decorre desde domingo até quinta-feira, dia 26. Com duas novidades: o evento voltou a ser presencial depois de dois anos de interrupção por causa da pandemia de covid-19 e os magnatas e políticos russos ficaram de fora destes encontros por causa da invasão na Ucrânia. Ao mesmo tempo que os multimilionários debatem na cidade suíça de Davos, a organização Oxfam divulgou um relatório em que revela que a fortuna dos mais ricos cresceu tanto nos últimos 24 meses de pandemia como nos 23 anos anteriores. Os 20 mais ricos têm também mais do que o PIB somado dos 46 países da África subsariana.

Apesar da ausência russa do fórum, o fantasma da guerra e do impacto que teve a nível energético e alimentar não ficou de fora das discussões. “Acho que há uma Europa antes de 24 de Fevereiro deste ano e outra depois. As coisas mudaram profundamente e mesmo que o mundo acabasse amanhã, a mudança seria permanente”, analisou o vice-presidente para o Pacto Ecológico Europeu, Frans Timmermans.

Como a Europa deixou de poder depender dos combustíveis fósseis da Rússia, a transição para a energia renovável tem de ser rápida, assevera Timmermans, mas sempre evitando o preço elevado da energia para os consumidores. Ainda assim, tal não significa que os combustíveis fósseis fiquem de fora da questão: por vezes, é preciso “substituir alguns combustíveis fósseis por outros combustíveis fósseis”. Fatih Birol, presidente da Agência Internacional de Energia (AIE), concorda com o impacto gigantesco da guerra: “Eu acredito que a invasão russa na Ucrânia levou a uma gigantesca crise energética. Do meu ponto de vista, esta é a primeira crise energética global”, asseverou.

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O presidente da Agência Internacional de Energia (AIE), Fatih Birol (à esquerda), e o vice-presidente para o Pacto Ecológico Europeu, Frans Timmermans LAURENT GILLIERON/EPA

A presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, afirmou esta terça-feira em Davos que existem “sinais óbvios” de uma crise alimentar mundial por causa da guerra na Ucrânia e acusou a Rússia de chantagem ao impedir a saída de cereais da Ucrânia, que é um dos principais fornecedores dos mercados mundiais. “Temos de agir com urgência”, declarou. “As consequências destes actos vergonhosos estão à vista de todos”, disse ainda, e a Rússia está a usar “a fome e os cereais para exercer o poder”.

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Ursula von der Leyen em Davos

O chefe do Programa Alimentar Mundial (PAM), David Beasley, alertava já na segunda-feira, também em Davos, que a crise alimentar causada pela guerra só irá agravar-se se o bloqueio a exportações da Ucrânia persistir. “Estaremos perante um problema complexo porque os armazéns podem estar cheios, mas sem navios para os transportar poderemos assistir a situações de fome em todo o mundo”, disse Beasley.

Há batalhas menos visíveis. Frans Timmermans acredita que “a natureza está em perigo” e que há uma crise que está a ser esquecida: a da biodiversidade. “A crise de segurança alimentar que estamos agora a enfrentar é criada em parte pela guerra, em parte pelas alterações climáticas, mas também é causada pela crise de biodiversidade”, afirmou. E argumentou que é preciso lutar contra todas estas crises em conjunto. “Se não uma delas vai literalmente matar-nos.”