Leonid Kravchuk (1934-2022), pai da Ucrânia e coveiro da União Soviética

O primeiro Presidente da Ucrânia é recordado por ter sido um dos obreiros do colapso da União Soviética e por ter renunciado a ser uma potência nuclear.

Foto
Leonid Kravchuk, o primeiro Presidente da Ucrânia independente (1991-1994) Olena Khudiakova/Getty Images

O mais importante acto da carreira política de Leonid Kravchuk aconteceu poucos dias depois de ter sido eleito como primeiro Presidente da Ucrânia, em Dezembro de 1991. Num chalé de caçadores na floresta de Belavezha, na Bielorrússia, Kravchuk encontrou-se com outros dois homens: os presidentes dos Sovietes Supremos da Bielorrússia e da Federação Russa, Stanislav Shushkevich e Boris Ieltsin, respectivamente. Foi ali que os três homens acordaram a dissolução da União Soviética, pondo um ponto final na Guerra Fria e mudando a História.

Kravchuk morreu a 10 de Maio, aos 88 anos, após uma longa doença na sequência de uma cirurgia ao coração em Junho do ano passado. Nunca tendo sido um ideólogo ou sequer um líder impoluto, todos lhe reconhecem uma capacidade valiosa para qualquer político: esteve no lugar certo à hora certa.

Nasceu a 10 de Janeiro de 1934 na cidade de Veliki Zhitin, na província de Rivne, que na altura pertencia à Polónia, numa família de camponeses. O pai morreu a combater pelo Exército polaco durante a II Guerra Mundial. Depois de passar por uma escola técnica, Kravchuk mudou-se para Kiev para estudar Economia Política Marxista na Universidade Taras Shevchenko.

Foto
Leonid Kravchuk, Stanislav Shushkevich e Boris Yeltsin - foram estes três dirigentes que assinaram a "certidão de óbito" da União Soviética, em Dezembro de 1991 Wikimedia Commons

Daria aulas de Economia em Chernivtsi, mas rapidamente se dedicou à carreira política, juntando-se ao Partido Comunista Ucraniano. Ascendeu na máquina partidária, sempre ligado ao departamento de propaganda e agitação e no decisivo ano de 1989 é promovido ao Politburo como secretário ideológico.

No ano seguinte, Kravchuk é eleito presidente do Soviete Supremo ucraniano, tornando-se na figura mais importante da Ucrânia no contexto soviético. Em Moscovo, a tentativa de golpe de Estado em Agosto de 1991 para derrubar Mikhail Gorbachov fá-lo afastar-se em definitivo do Partido Comunista e a abraçar a independência ucraniana.

O papel de Kravchuk na persuasão dos deputados comunistas no parlamento ucraniano a apoiar a convocatória de um referendo foi decisivo. A 1 de Dezembro, 92% dos ucranianos escolhem a independência e, no mesmo dia, elegem Kravchuk, o antigo secretário ideológico do Partido Comunista, como primeiro chefe de Estado do país. “A Ucrânia nasceu”, disse naquele dia.

Poucos dias depois, Kravchuk viaja até Belavezha e ajuda a decretar o fim da União Soviética com a sua assinatura. Mais de duas décadas depois, numa entrevista à BBC, recordava que a antiga super-potência “estava a ser destruída por contradições, o seu povo estava cansado de crises, conflitos, guerras e filas”. O acordo firmado na floresta bielorrussa era visto então como a forma mais pacífica e indolor de consumar o divórcio que a todos parecia irreversível. “A URSS deixa de existir como sujeito de direito internacional e realidade geopolítica”, estabeleceu o documento.

Foto
Kravchuk em Dezembro de 1991, um ano de viragem no Leste da Europa e no mundo Peter Turnley/Corbis/VCG via Getty Images

Não foi preciso esperar muito tempo para que Kravchuk voltasse a ter de usar a caneta para uma decisão histórica e, por isso, complexa. Em 1992, num encontro com o Presidente George Bush, Kravchuk aceita abrir mão do arsenal nuclear ucraniano a troco de um acordo de segurança. Na altura, a escolha foi aplaudida em todo o mundo como um passo importante para a causa da não-proliferação nuclear — à data da independência, a Ucrânia dispunha do terceiro maior arsenal a nível mundial.

Porém, era o próprio Kravchuk que sublinhava o pragmatismo da decisão. Numa entrevista, vários anos depois, à emissora alemã Deutsche Welle comparou a Ucrânia e as armas nucleares herdadas da era soviética como “um macaco com uma granada”. “Todos os sistemas de controlo estavam na Rússia. A mala preta com o botão estava com o Presidente russo, Boris Ieltsin”, recordava.

Em 1994, o Memorando de Budapeste era assinado. A Ucrânia concordava em ceder o arsenal nuclear à Rússia e recebia garantias de respeito pela sua integridade territorial e soberania pelos restantes signatários: EUA e Reino Unido. À luz da anexação da Crimeia, em 2014, e, mais recentemente, da invasão russa do resto do seu território, são muitos os que criticam este acordo pela facilidade com que veio a ser quebrado.

Foto
Leonid Kravchuk no Parlamento ucraniano, em Kiev, em Janeiro de 2014 Gleb Garanich/Reuters

A nível interno, Kravchuk ficou associado à traumática transição da economia planificada para a abertura ao mercado livre. Durante os anos da sua presidência, um punhado de empresários bem relacionados aproveitou a torrente de privatizações para construir a classe dos oligarcas, com influência sobre todos os aspectos da sociedade ucraniana até aos dias de hoje. Ao mesmo tempo, a generalidade da população empobrecia e aprendia a viver com a escassez: o carrinho de compras vazio passou a ser designado popularmente como “kravchuchka”.

Não foi propriamente uma surpresa quando os ucranianos decidiram não reeleger Kravchuk, no Verão de 1994, escolhendo o seu primeiro-ministro, Leonid Kuchma. Mas, mesmo na derrota, Kravchuk voltou a mostrar sabedoria ao aceitar os resultados, dando lugar à primeira transição pacífica de poder na Ucrânia independente.

Sem outra vocação que não a de político, Kravchuk manteve-se activo e continuou como deputado até 2006. Há dois anos, o Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, nomeou-o para chefiar a delegação ucraniana nas negociações de paz sobre o Donbass no âmbito dos Acordos de Minsk. Na hora da sua morte, e enquanto o seu país trava uma guerra pelo seu direito a existir, Zelensky lembrou Kravchuk como alguém “que soube o custo da liberdade e que, com todo o seu coração, sempre quis a paz para a Ucrânia”.

Sugerir correcção
Ler 4 comentários