Portugal cada vez mais longe de ter rios livres, alertam ambientalistas

Lisboa recebe esta quinta-feira seminário internacional sobre a remoção de barreiras fluviais. Ambientalistas esperam que este encontro coloque Portugal na tendência que vemos na Europa.

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Aldeia da Estrela, com a subida das aguas provocada pela barragem do Alqueva, a povoacao ficou situada numa peninsula Nuno Ferreira Santos

Já alguma vez se abeirou de um rio livre? Esta não é uma pergunta com rasteira. Em Portugal existem cerca de 250 grandes barragens e perto de 8100 infra-estruturas – parte delas obsoletas – que atrapalham a livre circulação de um rio. Por isso, não é fácil encontrar um rio que flua livremente, a maioria está represado. Um seminário internacional, que começa esta quinta-feira em Lisboa, vai abordar a necessidade da remoção de barreiras fluviais, como barragens, açudes, diques e galerias que estejam obsoletos, para aumentar o número de quilómetros com rios livres em Portugal e por toda a Europa.

Nos últimos anos, o movimento de remoção de barreiras de rios tem vindo a ganhar força. Um dos motivos para esta mudança é a estratégia para a biodiversidade da União Europeia (UE), que determinou que até ao fim da década a UE teria que tornar livres pelo menos 25.000 quilómetros dos seus rios. Em 2021, foram retiradas 239 barreiras que obstruíam rios e cursos de água em 17 países europeus, um recorde. Mas Portugal removeu apenas uma barreira em 2021, o que mostra o atraso do país em relação a este problema. Ao mesmo tempo, estão em marcha vários projectos para a construção de barragens.

“Há uma série de planos e projectos aprovados em Portugal que estão completamente contra as linhas traçadas pela União Europeia”, diz ao PÚBLICO Lorenzo Quaglietta, consultor da Associação Natureza Portugal em Associação com o Fundo Mundial da Natureza (ANP/WWF), referindo-se às barragens. A nível nacional, um dos objectivos do encontro é tentar reverter este quadro. “Queremos inspirar os decisores políticos com os vários casos de sucesso de remoção de barreiras fluviais de outros países europeus”, diz o biólogo.

A ANP/WWF foi uma das associações que organizaram os três dias de seminário, juntamente com a World Fish Migration Foundation (WFMF) - algo como a Fundação Migração Piscícola do Mundo, a Wetlands International, uma organização não-governamental para a protecção das zonas húmidas, e a The Nature Conservancy, uma organização de protecção e conservação ambiental. O WFMF originou o projecto Dam Removal Europe (Remoção de Barragens da Europa), que dá o nome ao seminário.

Os primeiros dois dias do encontro, que ocorrem no Laboratório Nacional de Engenharia Civil, em Lisboa, vão contar com a apresentação de alguns casos internacionais de sucesso de remoção de barreiras fluviais, e também com a situação portuguesa. No sábado, último dia, ocorrerá uma saída de campo com visitas a vários lugares do rio Tejo.

“Foi este seminário que incentivou as autoridades de outros países a iniciarem a remoção de barreiras fluviais”, diz Catarina Miranda, coordenadora do projecto Rios Livres, do GEOTA - Grupo de Estudos de Ordenamento do Território e Ambiente, que vai fazer uma das apresentações no seminário. “A minha esperança é que isso aconteça também em Portugal”, refere a bióloga.

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Alto Douro Vinhateiro foi classificado como Patrimonio Mundial da UNESCO em 2001 Nelson Garrido

Águas paradas

As barragens e outras barreiras dos rios têm efeitos nefastos não só para a biodiversidade, mas também para a erosão costeira e as alterações climáticas. Estima-se que 70% dos sedimentos dos rios fiquem retidos naquelas barreiras e não cheguem ao mar. Isto não só deixa as praias mais vulneráveis à erosão costeira, mas também diminui a quantidade de nutrientes que vão fertilizando, a jusante, os terrenos agrícolas ao longo do curso dos rios.

Além disso, as águas paradas das albufeiras, ao acumularem sedimentos, podem provocar a multiplicação de algas e a redução do nível de oxigénio. Tudo isto acaba por gerar a emissão de gases com efeito de estufa, alimentando as alterações climáticas. Com as barreiras fluviais, “passamos de rios com uma água que corre, que tem uma temperatura baixa e com alto teor de oxigénio, para uma água estagnada, mais quente e com menos oxigénio”, resume Lorenzo Quaglietta.

Animais como a lampreia, o salmão, o sável e a enguia são muito afectados pelas barreiras, já que necessitam de subir os rios para a desova e podem desaparecer localmente quando são impedidos por aquelas barreiras. Mas a própria mudança da qualidade de água põe em causa as espécies endémicas, que muitas vezes acabam por ser substituídas por espécies exóticas.

Esta mudança tem também um impacto na relação das comunidades ribeirinhas com o rio. “Se olharmos para a maior parte do país, vemos rios que não correm”, alerta Catarina Miranda. “Há uma frase muito gira de um pescador de Vila Velha de Ródão que diz: ‘Isto não é um rio, isto é uma albufeira.’”

Das 1,2 milhões barreiras que se contabilizaram nos rios europeus, 150.000 estão velhas, obsoletas ou já perderam a sua função, mas continuam a bloquear cursos de água por todo o continente e a ter um custo de manutenção. Em Portugal, esta proporção não está determinada para todo o território. Mas um estudo coordenado pela GEOTA, em parceria como a Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, contabilizou 1201 barreiras na parte portuguesa da bacia do rio Douro. Destas, cerca de um quarto estão abandonadas.

Na sexta-feira, José Carlos Pimenta Machado, vice-presidente da Agência Portuguesa do Ambiente (APA), que também apoia o seminário, irá falar no encontro sobre os planos do Governo para a remoção de barreiras fluviais em Portugal.

Há alguma expectativa sobre o que o responsável vai dizer. “Seria uma grande conquista ter algum compromisso da APA que nos indicasse proximamente uma estratégia de remoção sistemática de barreiras fluviais a curto prazo”, diz Catarina Miranda.

Nos últimos anos, a política para a remoção destas infra-estruturas tem estado praticamente parada. Em 2016, um despacho do Ministério do Ambiente determinou a constituição de um grupo de trabalho para a análise da situação das barragens e açudes portugueses, com o objectivo de propor um plano de remoção de infra-estruturas obsoletas.

No despacho já estavam definidas oito infra-estruturas sem função socio-económicas para serem removidas: Riba Côa, Foz do Sousa, Sernada, Drizes, Peneireiro, Misericórdia, Sardinha e Lapão. Destas, as barragens de Peneireiro e Sardinha já estavam desmanteladas no ano seguinte, de acordo com o relatório de 2017 produzido pelo grupo de trabalho. As outras seis ainda estão por ser removidas, assegura Lorenzo Quaglietta.

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Aldeia da Estrela, com a subida das aguas provocada pela barragem do Alqueva, a povoacao ficou situada numa peninsula Nuno Ferreira Santos

Desconstruir barragens

O biólogo explica que em Portugal a importância das barragens está muito associada à existência de reservatórios de água locais. No entanto, “70% da água em Portugal é usada para a agricultura”, recorda. Neste sentido, o regadio pode ser um problema. “Não podemos fazer agricultura intensiva em zonas que são áridas, como o Algarve”, defende Lorenzo Quaglietta.

Catarina Miranda carrega na mesma tecla. “A pressão para o regadio é imensa”, diz a bióloga. Há “a expansão de monocultura intensiva usando culturas que têm um gasto enorme de água”, sublinha, dando o exemplo do abacate, a laranja e até o cultivo de manga no Algarve.

“Não somos pelo fim da agricultura de regadio, mas temos que pensar que espécies plantar”, refere, lembrando que as directivas da UE são pela transição de uma agricultura sustentável. Por isso, a apresentação que a bióloga vai fazer no seminário será sobre desconstruir as barragens em Portugal, não só fisicamente, mas também relativamente à ideia que se tem da sua importância.

Sabia que...

Há mais de mil barreiras na bacia do rio Douro. Um estudo coordenado pela GEOTA, em parceria como a Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, contabilizou 1201 barreiras na parte portuguesa da bacia do rio Douro. Destas, cerca de um quarto estão abandonadas.

A ANP/WWF tem nas mãos a destruição física de uma barreira: o açude de Galaxes, em Alcoutim, no Algarve. A estrutura tem 37 metros de largura e dois de altura. Construído entre 2011 e 2012, o açude não cumpre o seu objectivo de retenção de água, explica Lorenzo Quaglietta. Entre Junho e Julho, dez anos depois de ter sido finalizado, o açude irá desaparecer.

O custo da desconstrução do açude vai ser de 40.000 euros, entre saídas de campo, demolição e transporte de sedimentos, monitorização das espécies de peixes e os trabalhos de envolvimento da comunidade.

A ANP/WWF foi buscar o dinheiro à Open Rivers Programme. O programa internacional, que arrancou no ano passado, tem 42,5 milhões de euros para financiar a remoção de barreiras fluviais e restaurar rios europeus que estejam em perigo. Mas não chega, os governos também terão que fazer a sua parte. “O programa nunca poderá cobrir todos os governos de toda a Europa para a remoção de todas as barreiras”, constata Lorenzo Quaglietta.